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terça-feira, 27 de agosto de 2013

Geertz, Sahlins, Clifford e a Alegoria da Caverna de Platão





Clifford Geertz 



“Uma boa interpretação de qualquer coisa – um poema, uma pessoa, uma estória, um ritual, uma instituição, uma sociedade – leva-nos ao cerne do que nos propomos interpretar. Quando isso não ocorre e nos conduz, ao contrário, a outra coisa – a uma admiração da sua própria elegância, da inteligência do seu ator ou das belezas da ordem euclidiana -, isso pode ter encantos intrínsecos, mas é algo muito diferente do que a tarefa que temos – exige descobrir o que significa toda a trama...” (Geertz Clifford, a interpretação das culturas, p.28).

Os riscos de se parar na admiração com a elegância de A Alegoria da Caverna e com a inteligência de Platão são grandes. Afinal, essa obra tem conquistado a admiração das mentes mais privilegiadas do nosso tempo, e dos tempos passados, desde que foi escrita. E até mesmo algumas dessas mentes fantásticas – se levarmos a sério o pensamento de Clifford Geertz - não foram além dessa admiração. O desafio aqui é tentar compreender, como defendia Geertz, toda a trama com os carneiros. Ou melhor, com os prisioneiros da caverna; tentar descobrir se a narrativa atribuída por Platão a Sócrates é uma narrativa superficial ou densa. Queremos saber se Sócrates ao narrar a estória dos prisioneiros da caverna está realmente “pensando e refletindo”; se está praticando “o pensar dos pensamentos”na visão de Gilbert Ryle, tomada emprestado por Geertz no seu a interpretação das culturas (p. 15,16). E ainda, o que Sócrates quis dizer ao adotar a parábola? O uso de uma ficção para retratar duas formas diferentes de ver e entender o mundo. Quais implicações para uma compreensão da alteridade terá a Alegoria desse filósofo quando examinada à luz da antropologia. Examinaremos essas, e outras questões ao longo deste texto. 

Agora, procuremos saber se existem teias de significado tecidas pelos homens em questão, os acorrentados da caverna, da alegoria narrada por Sócrates. E se elas existem, como procedeu o filósofo diante das mesmas? Eis a questão mais relevante a que nos ateremos nesse trabalho. Se encontrarmos estas teias tecidas pelos próprios sujeitos da caverna atribuindo sentido, a si mesmos, e a suas ações, segundo a visão de Geertz, estaremos diante da cultura dos aprisionados da caverna de Platão. E poderemos examinar como se deu a análise de Sócrates em relação a esta cultura.

“... Assim sendo, os homens que estão nessas condições não poderiam considerar nada como verdadeiro, a não ser as sombras dos objetos fabricados...” (Sócrates – A Alegoria da Caverna).

Considerar algo como verdadeiro é atribuir valor a algo. E fazê-lo, mobiliza toda uma teia de significados que podem ter a ver com crenças, experiências sensoriais, condicionamento social, questões psicológicas, enfim. O que é verdadeiro, ou não, só o é, em relação ao significado que tem para o sujeito e para o mundo em que ele vive. Essa definição do que é verdadeiro depende da mobilização de todo um sistema de símbolos que tem seus significados relacionados e relativos ao contexto em que se desenvolvem. Definir o que é verdadeiro, ou não, é de grande relevância para a atribuição de significados do sujeito em relação a si próprio e ao mundo à sua volta. E se para fazê-lo, o sujeito tem que mobilizar uma teia de significados tal qual compreende Geertz, então, nos vemos diante de elementos da cultura desse sujeito.

“Veja agora o que aconteceria se eles fossem libertados de suas correntes e curados de sua desrazão.” (Sócrates – A Alegoria da Caverna).

Se o filósofo Sócrates estivesse praticando uma “descrição densa” consideraria o conhecimento gerado no interior da caverna pelos aprisionados, como uma desrazão? 

Essa é uma questão para ser vista sob a luz do pensamento de Geertz. Sócrates ao analisar o comportamento dos aprisionados da alegoria da caverna teria se confrontado com uma estratificada hierarquia de estruturas significantes? Ou teria, o filósofo, construído ele próprio, uma estrutura significante, a exemplo das falsas piscadelas abordadas por Geertz. Teria Sócrates encarado os seus dados como sua construção da construção dos prisioneiros da caverna? Ou teria tomado os seus dados como suficientemente verdadeiros e bastando eles próprios a si; e se limitado a olhar para a superfície do que via, guiando-se pela busca de leis, ao invés de assumir uma postura interpretativa à procura de significados?

Vivendo fora da caverna e livre, sem jamais ter experimentado as mesmas condições dos prisioneiros de sua alegoria, Sócrates, aos olhos de Geertz, não estaria familiarizado com o universo imaginativo daqueles prisioneiros. E, portanto, estaria de certa forma impedido de entender corretamente o que os personagens da alegoria pretendiam. Clifford Geertz afirma em a interpretação das culturas (p.23):

“O que impede a nós, que crescemos piscando outras piscadelas ou cuidando de outros carneiros, de entender corretamente, num lugar como o Marrocos, que o que pretendem as pessoas não é a ignorância sobre como atua a cognição (mas principalmente porque, presume-se, ela atua da mesma maneira que entre nós, e seria bem melhor se pudéssemos passar também sobre isso) como a falta de familiaridade com o universo imaginativo dentro do qual os seus atos são marcos determinados.”

Talvez esteja ai a explicação para o que levou Sócrates a considerar desrazão o que ele mesmo chama de ciência em outra passagem da Alegoria da Caverna:

“Nesse momento, se ele se lembrar de sua primeira morada, da ciência que ali se possuía e de seus antigos companheiros...”.

Se nos orientarmos pelo pensamento de Clifford Geertz vamos identificar em Sócrates a dificuldade de situar-se entre os prisioneiros de sua alegoria. Uma dificuldade derivada de sua postura intencional de gerar uma oposição entre a sua forma de ver o mundo e a forma do outro ver o mundo. Esta postura de Sócrates é diferente do exemplo utilizado pelo autor, do visitante em um País estranho - com tradições e costumes estranhos - que mesmo sendo conhecedor do idioma local, não compreende o povo por não poder se situar entre eles. A diferença está que em Sócrates não se encontra a vontade ou a disposição para compreender os costumes dos outros se situando entre eles. Sua intenção primeira é afirmar a diferença e hierarquizar os conhecimentos, elegendo o seu próprio como o ponto mais alto da hierarquia e o do outro como o ponto mais baixo. Por não colocar os acorrentados da caverna – como fez Geertz com os marroquinos – no quadro de suas próprias banalidades, talvez Sócrates não tenha conseguido (para ficar com outros termos do próprio Geertz) dissolver determinadas opacidades em relação aos costumes, cultura, ciência e o que pretendiam seus personagens.

Desde o início a descrição de Sócrates se pretendeu antropológica. Isso, se ficarmos com a concepção de que descrições deste tipo, “partem de um sistema em desenvolvimento de análise científica” como Geertz via as descrições antropológicas. O fato de ser aplicada a uma ficção em nada depõe contra ela. Geertz via a cultura como um texto a ser interpretado e o trabalho do etnógrafo comparado ao fazer de um crítico literário. Como também percebia toda descrição etnográfica como uma ficção, uma interpretação de interpretações. Como o discurso dos acorrentados da caverna sendo interpretado por Sócrates; o discurso de Sócrates sendo interpretado por Platão; o discurso de Platão sendo interpretado por mim quanto leitor; e o meu discurso sendo interpretado pelo leitor deste texto, todos a partir do que (fazendo alusão à pergunta de Paul Ricoeur citada por Geertz na página 29) a escrita fixou. 

O antropólogo não estuda a caverna da alegoria de Sócrates, ele estuda na caverna. O lócus do estudo, para Geertz, não é o objeto do estudo. Para o autor de a interpretação das culturas, “o que é importante nos achados antropológicos é a sua especificidade complexa, sua circunstancialidade”. Por isso a caverna hipotética descrita por Platão através de Sócrates representa um lócus privilegiado com um achado específico e bastante complexo em relação às circunstâncias em que se dá.

Geertz desconfia _ pois afirma não saber se é exatamente dessa forma que acontece _ que todos os conceitos científicos se desenvolvam como se deu em relação ao conceito de cultura. Ou seja, a partir da força com que certas ideias surgem e se instalam no panorama intelectual, substituindo ideias anteriores e se tornando absolutas. Sendo empregadas por muitos na solução de vários ou quase todos os problemas levantados no âmbito da investigação científica. Essas ideias, ao se encontrarem no nível de familiarização científica, ou seja, estando elas dogmatizadas, se tornam partes do que o autor chamou de suprimento geral de conceitos teóricos. Nessa condição seria possível discernir entre as suas dimensões reais e a apropriação e exploração exageradas que alguns mais bitolados fazem dela. Geertz acredita que a aplicação ampliada dessas ideias dogmatizadas e absolutizadas geram conceitos limitados e incapazes de fundamentar de modo correto, uma análise abrangente do fenômeno estudado. Principalmente se estivermos falando das ciências sociais e das suas necessidades relacionadas à investigação científica. Aos resultados gerados por essas aplicações exageradas de certos conceitos, Clifford Geertz chama de pseudociências. O autor afirma ainda que passado esse primeiro momento das aplicações generalizadas e absolutas das ideias em praticamente todos os campos da ciência, é possível entender a onde elas realmente se aplicam e onde não.

Essa visão de Geertz poderia nos dar mais pistas importantes para tentar entender como o experimentado filósofo Sócrates só conseguiu enxergar a ciência ou a cultura, geradas no interior da caverna, como uma desrazão. Estaria o filósofo trabalhando com ideias absolutizadas e generalizadas e tentando com elas dar conta da realidade dos acorrentados de sua alegoria? Há fortes indícios de que sim. Afinal, o que é ou não verdade, segundo Sócrates, para o egresso da caverna, é definido segundo o conceito de verdade do próprio Sócrates a partir do seu próprio suprimento geral de conceitos teóricos, construídos em circunstâncias e complexidades muito diferentes daquelas, as quais, o egresso estava submetido. Talvez a realidade dos acorrentados da alegoria de Sócrates representasse um daqueles casos onde a ideia generalizada e absoluta de verdade que o filósofo estava usando em sua análise, não se aplicasse. A verdade para os acorrentados poderia muito bem ser outra. Sua verdade poderia ser a verdade das sombras, dos vultos e dos sons distorcidos pelo eco. Se assim fosse, Sócrates não teria percebido. Pois havia olhado para a verdade dos seus personagens a partir da sua própria noção de verdade forjada nas suas circunstancialidades e especificidades. Neste caso, o filósofo evitou o que Geertz caracterizou como “um negócio enervante que só é bem sucedido parcialmente”. Ou seja, Situar-se.

Sócrates não parece ter se empenhado em descobrir as estruturas conceptuais que informavam os atos dos sujeitos na caverna, os “ditos” nos discursos sociais dos mesmos. Não parece ter se preocupado em “construir um sistema de análise em cujos termos o que é genérico a essas estruturas, o que pertence a elas porque são o que são, se destacam contra outros determinantes do comportamento humano”. (p.38). Dessa forma, o grande filósofo da antiguidade por mais profundo que tenha imergido filosoficamente, em se tratando da antropologia interpretativa de Clifford Geertz, pode amargar um resultado muito mais inexpressivo do que o autor sintetizou na seguinte fala:

“Não cheguei nem perto do fundo da questão. Aliás, não cheguei próximo do fundo de qualquer questão sobre a qual tenha escrito, tanto nos ensaios abaixo como em qualquer outro local”. (Geertz, Clifford, a interpretação das culturas, p.39).

Sócrates parece – retomando a história indiana citada por Geertz – não ter ido além da primeira tartaruga que sustentava em suas costas o elefante que por sua vez apoiava a plataforma na qual repousava o mundo.

Do conjunto de paradigmas dos quais o pensamento de Geertz confronta e se afasta, tais como:

  • A visão de que “a cultura consiste em fenômenos mentais que podem”..., ou poderiam segundo Geertz, “... ser analisados através de métodos formais similares aos da matemática e da lógica” de Stephem Tyler; 
  • Ou do paradigma de Clyde Kluckhohn que terminou por conceituar cultura em 11 definições, gastando 27 páginas do primeiro capítulo de seu livro e gerando o que Clifford Geertz caracterizou como uma “espécie de difusão teórica”;
  • Também o que poderia se aplicar perfeitamente aos Arapesh do Sexo e Temperamento de Margaret Mead, quando Geertz afirma “que nada contribui mais para desacreditar a análise cultural do que a construção de representações impecáveis de ordem formal, em cuja existência verdadeira praticamente ninguém pode acreditar”;
  • Ainda a crítica implacável aos modelos que os próprios antropólogos elaboram para justificar a mudança de verdades locais para visões gerais, tem sido de fato, tão responsável em minar o esforço como qualquer coisa que seus críticos – sociólogos obcecados com tamanhos de amostragens, psicólogos com medidas ou economistas com outras medidas – foram capazes de inventar contra eles. Crítica com a qual alcança não só alguns modelos citados, como também o grande precursor dessa tradição científica, o fundador da antropologia estruturalista Claude Lévi-Strauss.
Do ponto de vista antropológico, a abordagem filosófica de Sócrates em relação à Alegoria da Caverna, parece apresentar uma familiaridade maior com Lévi Strauss e seus modelos abstratos para compreensão das realidades locais ou como definiu Geertz, mudança de verdades locais para visões gerais. De onde é possível concluir que, se examinando à luz do pensamento de Clifford Geertz, na interpretação que Sócrates faz da  Alegoria da Caverna, o filósofo clássico não praticou uma descrição densa.

Marshall Sahlins

Para Sahlins, “os homens criativamente repensam seus esquemas convencionais. É nesses termos que a cultura é alterada historicamente na ação” (Sahlins, “Ilhas de História”, p.7). Esta visão de Marshall Sahlins nos possibilita imaginar todo um complexo processo de mudanças que poderia ocorrer na “Sociedade dos acorrentados da caverna” da alegoria de Sócrates a partir do retorno para o seu meio, do homem que foi ao mundo exterior e aprendeu uma nova cultura, ou novas culturas. Ele de fato enfrentaria resistências, talvez até as mesmas que previu Sócrates, quando tentasse, inspirado pelo que aprendeu na sua estada no mundo exterior, sugerir e levar a termos mudanças na estrutura da “sociedade” da caverna. Mas, as alternativas não se resumiriam somente àquelas marcadas pela tragédia sugerida pelo filósofo. A cultura da caverna poderia ser alterada historicamente pela ação do homem. E assim, não restaria para o homem que conheceu outra cultura, apenas o mesmo dilema do herói de Homero como especulou Sócrates:

“Ele não pensaria antes, como o herói de Homero, que mais vale ‘viver como escravo de um lavrador’ e suportar qualquer provação do que voltar à visão ilusória da caverna e viver como se vive lá?”.

E Sahlins afirma: “Poderíamos até falar de ‘transformação estrutural’, pois a alteração de alguns sentidos muda a relação de posição entre as categorias culturais havendo assim uma ‘mudança sistêmica’ (p. 7)”.

Afinal, Sahlins considera as relações simbólicas de ordem cultural, chamadas pelos antropólogos de “estrutura”, também um “objeto histórico”. Tal posição do autor abre a perspectiva de tratarmos as mudanças hipoteticamente fomentadas pelo homem que conheceu o mundo da superfície, na sociedade dos acorrentados, como elemento corroborador do seu pensamento, que supera a noção de oposição entre “estrutura” e “história” existente nas ciências humanas. 

Ver possibilidades de mudanças na sociedade dos acorrentados da alegoria de Sócrates a partir dos conhecimentos adquiridos no mundo exterior por um dos seus membros é também concordar com a visão de Sistema Aberto de Sahlins. Pelo menos segundo a abordagem apresentada aqui. Sahlins via um possível atrelamento da riqueza do sistema dominante às sociedades tradicionais por meio do papel que estas cumpriam de reprodução e mesmo de transformação criativa em relação ao primeiro. Se substituirmos aqui o exemplo da ordem dominante europeia e das sociedades tradicionais, usado por Sahlins, pelo mundo exterior e pela sociedade dos acorrentados da caverna, respectivamente. Poderemos apresentar a sociedade dos acorrentados como um sistema aberto com capacidade de articular respostas locais para as questões geradas pelo mundo exterior dominante. Ao pensar assim, ofereceríamos alternativas para o dilema enfrentado tanto pelo homem que foi ao exterior e voltou querendo mudanças na sua sociedade, como pelos membros desta sociedade, que permaneceram no local e acreditam na sua forma tradicional. A sociedade dos acorrentados, funcionando como um sistema aberto poderia passar por mudanças, inclusive na sua estrutura. E dessa forma, poderíamos ter grandes mudanças na caverna sem que fosse necessário que se destruísse completamente a sua forma tradicional de vida. 

“o mesmo tipo de mudança cultural, induzida por forças externas, mas orquestrado de modo nativo, vem ocorrendo há milênios” (Sahlins, “Ilhas de História”, p.9).

Então o desfecho trágico cogitado por Sócrates, no qual, o homem que foi ao mundo externo sofreria grande repressão por parte dos prisioneiros da Alegoria; e que alguém tentando libertá-los e arrasta-los até a superfície, retirando-os do seu mundo, poderia inclusive ser por eles assassinado. Não obrigatoriamente, é a única opção possível para essa parábola. 

A “Estrutura” da sociedade dos acorrentados sendo um “objeto histórico” como acredita Sahlins, poderia sim mudar a partir das pressões do mundo exterior, mas orquestrando, segundos os seus interesses próprios, essas mudanças. 

A visão de Sahlins difere da visão de Sócrates num aspecto muito importante: O filósofo encara o seu conhecimento - tratado neste estudo também como cultura - como o único possível ou verdadeiro e hierarquicamente superior à cultura dos acorrentados da caverna. E vê o contato entre essas duas culturas como um confronto entre o verdadeiro conhecimento (o sol tal como é) e o falso conhecimento (o reflexo do sol na água ou em outra superfície lisa) e alimenta a esperança de que o seu conhecimento “superior” represente para o outro, como para si mesmo e para os seus pares, a “ascensão da alma até o lugar inteligível”. Vendo sua relação com o outro dessa forma, o pensamento de Sócrates não reserva nenhum lugar para a “sociedade tradicional dos acorrentados”. A cultura do outro, entendida como inferior e como “falso conhecimento” (o reflexo do sol na água ou em outra superfície lisa), tem como destino, na perspectiva do filósofo, desaparecer; ser substituída pela sua cultura; ceder lugar ao verdadeiro conhecimento (o sol tal como é). 

Já para Marshall Sahlins, a sociedade dos acorrentados vista como um sistema aberto tem a possibilidade de se modificar sob a influência do mundo exterior. Inclusive articular ela própria as respostas necessárias para as pressões externas. Sahlins, ao contrário de Sócrates, reserva um lugar e um papel para a sociedade tradicional como reprodutora e até como transformadora criativa. Se Sahlins pensa que a sociedade tradicional responde segundo seus próprios interesses; é concebível que o faça, segundo elementos próprios que vão sendo modificados numa relação de adequação com a força externa. Portanto a cultura dos acorrentados da caverna de Sócrates, não tem que, necessariamente desaparecer por completo e ceder lugar a cultura do mundo exterior. Mas sim, se transformar a partir de suas próprias respostas diante destes estímulos externos. E Sahlins vai mais longe. Ele vê como no caso da cultura europeia e das sociedades tradicionais, a possibilidade da riqueza da primeira está atrelada á reprodução e até mesmo à transformação criativa das sociedades tradicionais. Ou seja, partindo desse paradigma, o mundo externo poderia terminar com sua riqueza atrelada à sociedade dos acorrentados da caverna da alegoria de Sócrates.

“Os elementos dinâmicos em funcionamento – incluindo o confronto com um mundo externo, que tem determinações imperiosas próprias e com outros povos, que têm suas próprias intenções paroquiais – estão presentes por toda a experiência humana. A história é construída da mesma maneira geral tanto no interior de uma sociedade, quanto entre sociedades” (Sahlins, “Ilhas de História”, p.9).

E contra a superioridade do conhecimento do filósofo do mundo externo em relação à cultura dos acorrentados da caverna, poderíamos contrapor sem muita dificuldade a noção de Sahlins de que as diferenças entre as culturas são na verdade diferenças históricas. E que se essas diferenças históricas forem analisadas segundo a ótica das estruturas “performativas” ou “prescritivas” tomam “um banho” de relativização.

“Culturas diferentes, historicidades diferentes” (p.11).

Outro aspecto importante da análise da parábola de Sócrates em relação ao pensamento de Marshall Sahlins é o exame da ocorrência do “evento” como o caracteriza Sahlins. Ou seja, “a relação entre um acontecimento e a estrutura (ou estruturas): O fechamento do fenômeno em si mesmo enquanto valor significativo, ao qual se segue sua eficácia histórica específica” (p.15).

Com base na narrativa de Sócrates, é possível entender como “evento” a libertação de um dos acorrentados da caverna. A partir dessa libertação a estrutura da sociedade dos acorrentados estaria historicamente aberta a muitas possibilidades de mudanças. Pois segundo Sahlins, “O evento é a interpretação do acontecimento, e interpretações variam.” Se é assim, as categorias culturais têm o seu sentido original remodelado pela introdução de novos significados e símbolos, deflagrando alterações na forma de pensar e agir da sociedade como um todo. É exatamente sobre a interpretação deste acontecimento que tratam estes trechos da narrativa do filósofo:

“... Depois disso, poderá raciocinar a respeito do sol, concluir que é ele que produz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível, e que é de algum modo, a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna. Nesse momento, se ele se lembrar de sua primeira morada, da ciência que ali se possuía e de seus antigos companheiros, não acha que ficaria feliz com a mudança e teria pena deles? Quanto às honras e louvores que eles se atribuíam mutuamente outrora, quanto às recompensas concedidas àquele que fosse dotado de uma visão mais aguda para discernir a passagem das sombras na parede e de uma memória mais fiel para se lembrar com exatidão daquelas que precedem certas outras ou que lhes sucedem, as que vêm juntas, e que, por isso mesmo, era o mais hábil para conjeturar a que viria depois, acha que nosso homem teria inveja dele, que as honras e a confiança assim adquiridas entre os companheiros lhe dariam inveja?...”

“... Reflita ainda nisto: suponha que esse homem volte à caverna e retome o seu antigo lugar. Desta vez, não seria pelas trevas que ele teria os olhos ofuscados, ao vir diretamente do sol? E se ele tivesse que emitir de novo um juízo sobre as sombras e entrar em competição com os prisioneiros que continuaram acorrentados, enquanto sua vista ainda está confusa, seus olhos ainda não se recompuseram, enquanto lhe deram um tempo curto demais para acostumar-se com a escuridão, ele não ficaria ridículo? Os prisioneiros não diriam que, depois de ter ido até o alto, voltou com a vista perdida, que não vale mesmo a pena subir até lá? E se alguém tentasse retirar os seus laços, fazê-los subir, você acredita que, se pudessem agarrá-lo e executá-lo, não o matariam”?

Na narrativa de Sócrates sobre o “evento” fica evidente a presença entre este e a “estrutura”, do que Marshall Sahlins chamou de “Estrutura da Conjuntura”. Ou seja, nas palavras do próprio Sahlins, “a síntese situacional dos dois [...] a realização prática das categorias culturais em um contexto histórico especifico”. Estaríamos então, em se tratando deste “evento” e da sua relação com a “estrutura” da sociedade dos acorrentados da caverna, diante da práxis, tal qual, definiu o autor: “enquanto uma sociologia situacional do significado” (p.15).

Com a volta do liberto da caverna que conhecera o mundo externo, a sociedade da caverna, viu seus símbolos e significados serem questionados. E tem daí em diante, a possibilidade de passar por transformações estruturais através da reorganização de elementos culturais nativos e pela reprodução de elementos culturais do mundo externo e do seu próprio a partir de novas configurações e significados.  Esta “sociedade” tem, portanto, a chance de funcionar como reprodutora da cultura a partir dos seus próprios interesses.

Se a sociedade dos acorrentados da caverna e seus membros, libertos ou não, enfrentarão a tragédia especulada por Sócrates; ou se essa “sociedade” terá sua “estrutura” transformada e se acomodará como reprodutora local do Mundo Exterior, conseguindo inclusive, atrelar a riqueza deste à sua produção, com possibilidades de torná-la dependente. Será definido pela ocorrência, ou não, do alargamento das categorias que esta “sociedade” procura construir para tentar agir no mundo. Se isso ocorrer, a reprodução cultural acontecerá e a estrutura não mudará. Porém, se a partir do “evento” narrado por Sócrates, o que ocorrer, for a alteração, nas relações entre as categorias e não o seu alargamento, haverá transformação estrutural.

“O sistema é, no tempo, a síntese da reprodução e da variação” (Sahlins, Marshall, Ilhas de História, p.9).

Diante do pensamento de Sahlins e das várias questões aqui trabalhadas que submetem a “Alegoria da Caverna” a um exame, mesmo que superficial, à luz desse pensamento. Sócrates, sábio e filósofo, que trabalhou nessa parábola a ascensão do homem ao que acreditava ser o verdadeiro conhecimento. Poderia fazer - em relação à noção de oposição entre Estrutura e História que Marshall Sahlins cancela em “ilhas de História” – como fez ao reagir ao pronunciamento do oráculo de Delfos, que o apontara como o mais sábio de todos os homens. Ou seja, afirmar: “só sei que nada sei”.
 

James Clifford

Em “A Experiência Etnográfica: antropologia e literatura no século XX”, James Clifford, trata da autoridade etnográfica. O autor procura mostrar como se constrói ao longo da história a noção de autoridade etnográfica. Clifford fala da forma como o autor se faz presente no texto. Como o autor legitima um discurso sobre a realidade. Clifford diz que se trata do famoso “Eu estive lá”, que comprova a existência do que o pesquisador viu, e credibiliza como verdadeiro o que ele diz.

Ora, se tratarmos a descrição de “A Alegoria da Caverna” como um texto etnográfico, será possível fazer algumas especulações baseadas no pensamento apresentado por James Clifford em “A Experiência Etnográfica: antropologia e literatura no século XX”.

Primeiro, é necessário ressaltar que “A Alegoria da Caverna” é na verdade, parte integrante do Livro VII de A República de Platão. Esta informação é importante para discutirmos a relação entre Sócrates, Platão e os acorrentados da caverna nesse texto, tendo como base, a noção de autoridade etnográfica estudada por Clifford.

Platão relata em seu livro que Sócrates relata a parábola. O relato da Alegoria da Caverna se dá na forma de um diálogo metafórico, no qual, Sócrates tem como interlocutores, Glauco e Adimanto.

Se Platão é o autor da obra na qual aparece o relato de Sócrates, qual seria o papel de Sócrates em relação ao relato da Alegoria? Seria aceitável tratarmos Sócrates como informante-chave de Platão? Seria Sócrates o autor?

Primeiro devemos situar, para efeito de estudo, o relato da Alegoria da Caverna como descrição etnográfica.

“... a etnografia está do começo ao fim, imersa na escrita. Esta escrita inclui, no mínimo, uma tradução da experiência para a forma textual” (Clifford, “A Experiência Etnográfica”, p.21).

Também - a titulo de auxiliar no trabalho - atribuiremos a Sócrates o papel de informante-chave de Platão nessa etnografia da Sociedade dos Acorrentados da Caverna. E trataremos Platão como o autor.

Após definirmos os papéis hipotéticos dos diversos atores nessa nossa hipotética etnografia, nos veremos diante de algumas questões relevantes. A saber, primeiro, Platão como pesquisador, não realizou trabalho de campo, não visitou a caverna dos acorrentados, não conviveu com eles. Tampouco o fez o seu informante-chave. Sócrates não esteve no meio dos acorrentados da sua alegoria, nem se quer por imaginação.

Como na alegoria de Lafitau, citada por Clifford na página 18 de “A Experiência Etnográfica”, o relato de Platão também transcreve, não cria. “Seu relato é apresentado não como um produto de observação de primeira mão, mas como o produto da escrita em um gabinete repleto de objetos” (idem). Platão não poderá se valer, para provar a veracidade de seu relato, do que Clifford chamou de modo predominante e moderno de autoridade no trabalho de campo: “Você está lá... porque eu estava lá”. E na verdade, nem Sócrates poderá fazê-lo.

Poderíamos atribuir o “etnocentrismo” presente na narração da Alegoria da Caverna, em boa parte, à falta de trabalho de campo. A ausência desta forma consagrada de pesquisa que teve sua hegemonia estabelecida, segundo Clifford, nos Estados Unidos e na Inglaterra antes do que na França e que ganhou o mundo na década de 30 de forma consensual, poderia ter sido decisiva para a qualidade da alteridade que se observa na Alegoria da Caverna. Uma observação participante poderia mudar tudo.

“A observação participante obriga os seus praticantes a experimentar tanto em termos físicos quanto intelectuais as vicissitudes da tradução [...] ela requer [...] algum grau de envolvimento direto e conversação, e frequentemente um ‘desarranjo’ das expectativas pessoais e culturais” (p.20).

A relação de Platão e Sócrates no tocante à Alegoria da Caverna, aqui compreendida como uma etnografia, assemelha-se com o que observou Clifford na página 26 de “A Experiência Etnográfica”, sobre a distinção entre o antropólogo (o construtor de teorias gerais sobre a humanidade) e o etnógrafo (aquele que descrevia e traduzia os costumes) antes do final do século XIX. Muito embora, Sócrates tal qual Malinowski, tenha de certa forma modificado essa lógica e tornado menos distintiva essa relação. Pois Malinowski com sua tenda montada entre as casas da aldeia de Kiriwina leva o antropólogo ao campo e ocupa o espaço antes reservado ao etnógrafo. E Sócrates ao filosofar de forma generalizada sobre o homem, sua relação com o conhecimento e com os outros, elaborando sobre a “sociedade” estudada, aproxima o papel de etnógrafo do papel do antropólogo construtor de teorias gerais sobre a humanidade.

Mas, Sócrates seria um etnógrafo, e não um informante-chave como definimos anteriormente?

Vejamos: “Uma atitude prescrita de relativismo cultural distinguia o pesquisador de campo de missionários, administradores e outros, cuja visão sobre os nativos era, presumivelmente, menos imparcial” (p.28). Sócrates não parece se enquadrar nessa descrição. E mais, para Dilthey, citado por Clifford, “a ‘experiência’ etnográfica pode ser encarada como a construção de um mundo comum de significados, a partir de estilos intuitivos de sentimentos, percepção e inferências”. Grosso modo, Sócrates não parecia estar empenhado na construção de um mundo comum com os acorrentados da caverna. Ao contrário, o filósofo se esforçava para construir uma diferenciação definitiva entre o seu e o mundo dos outros. Sócrates fez o que Leenhardt, também citado por Clifford, criticou dizendo que quando abordamos o nosso próximo usando apenas as categorias do nosso intelecto, nos escapa a possibilidade de “esboçar uma visão dele a partir de um detalhe simbólico, ou de um perfil, que contém um todo em si mesmo e evoca a verdadeira forma de seu modo de ser” (p.37). Por tudo isto, decididamente, Sócrates não é um etnógrafo. Pelo menos, não como entendia Dilthey e segundo a visão de Leenhardt.

E a narrativa de Platão poderia em muito contribuir para a antropologia que, segundo Clifford, desmistifica aquilo que antes passava sem ser questionado em relação à construção de tipos, descrições, narrativas, observações e descrições etnográficas. E que o autor tratou como “Antropologia Interpretativa”. Afirmando ainda que “ela contribui para uma crescente visibilidade dos processos criativos (e, num sentido amplo, poéticos) pelos quais os objetos ‘culturais’ são inventados e tratados como significativos” (p.39).

Outro aspecto interessante para analisarmos é a questão da autoridade na textualização da Alegoria da Caverna. Platão é o autor. Seria ele o detentor da autoridade? Sócrates, também não poderia sê-lo? Talvez pudesse o filósofo, ser entendido como um “autor generalizado”, aquele, descrito por Clifford como inventado para dar conta do mundo ou contexto dentro do qual os textos são ficcionalmente realocados. E mesmo que Sócrates seja visto como um desses autores “inventados” para falar pelos objetos estudados e, dizer em seu nome, o que na verdade, eles nunca disseram. Isso em nada altera a questão da autoridade que neste caso parece tratar-se de uma autoridade interpretativa. E esta autoridade parece estar com Platão. E essa questão da autoridade na Alegoria da Caverna, passa primordialmente pelo caráter dialógico, ou não, do texto de Platão. E aqui temos uma questão interessante. Para Clifford, a autoridade interpretativa está baseada na exclusão do diálogo. Mas o reverso também é verdade. Para o autor, “uma autoridade puramente dialógica reprimiria o fato inescapável da textualização” (p.46). É importante observar o que nos diz o autor a respeito das etnografias articuladas como encontros entre dois indivíduos. Ele diz que as mesmas podem dramatizar o dar-e-receber intersubjetivo do trabalho de campo introduzindo também um contraponto de vozes autorais, e mesmo assim, permanecerem representações do diálogo. Porém, o autor observa que como textos, elas podem não ser dialógicas em sua estrutura. No caso de Platão e da Alegoria é mantido textualmente um diálogo que se dá entre “informantes”. Se for possível considerar assim Sócrates, Glauco e Adimanto.

Sobre a relação de autoridade entre Sócrates e Platão, Clifford cita as palavras de Steven Tyler (1981) “embora Sócrates apareça como um participante descentrado em seus encontros, Platão retém o pleno controle do diálogo” (p.46). Tal afirmação é feita por Tyler para caracterizar certa abordagem relativa ao etnógrafo. Ele completa: “Este deslocamento, mas não, eliminação da autoridade monológica é característico de qualquer abordagem que retrate o etnógrafo como um personagem distinto na narrativa do trabalho de campo” (idem)

Aqui novamente, Sócrates parece ganhar ares de etnógrafo diante de um Platão “exclusivamente antropólogo” - como aqueles de antes do final do século XIX - no que se refere à Alegoria da Caverna. Porém, Crapanzano, também citado por Clifford, nos oferece um elemento novo para levarmos em consideração. Ele reconhece que “um terceiro participante, real ou imaginário, funciona como mediador em qualquer encontro entre dois indivíduos” (1980: 147-1510). Se olharmos por esse viés, vamos enxergar para Sócrates também esse papel de mediador entre Platão e os acorrentados da caverna no contexto da Alegoria. E isto pode relativizar, ou pelo menos, suavizar, a questão da autoridade, já que Crapanzano complementa: “Uma maneira alternativa de representar essa complexidade discursiva é entender o curso geral da pesquisa como uma negociação em andamento” (p.47).

Sócrates enfim, teria alguma autoridade nessa relação.

Para resolvermos o problema da falta de um campo para os acontecimentos da Alegoria da Caverna, já que sua “geografia” se situa no terreno da imaginação. Assumiremos como campo, esse mesmo terreno da imaginação. E nos restará mais um dilema. Imaginação de quem? 

Na página quarenta e seis de “A Experiência Etnográfica: antropologia e literatura no século XX”, Clifford aborda a experiência de “Escrita Direcionada” de Rosaldo, dizendo que ela propõe de um modo incisivo a fundamental questão: “Quem é na verdade o autor das anotações feitas no campo?”

Mas ainda estamos tentando definir de quem é o campo. Ou melhor, de quem é a imaginação que adotaremos como campo para nossa hipotética etnografia. Optaremos por Platão. A sua imaginação será, devido a ele ser o autor de “A República” livro no qual o capítulo VII traz a Alegoria da Caverna, o campo, no qual, serão feitas as anotações. E agora sim, poderemos tentar, responder quem é o verdadeiro autor dessas anotações.

Platão é o autor do texto “etnográfico”, Sócrates contando com a colaboração de Glauco e Adimanto, é o informante. Mas Sócrates é um informante que fala; que tem sua fala registrada por inteiro juntamente com as falas de Glauco e Adimanto. As anotações no campo são feitas por Platão, afinal é na sua imaginação que se dá toda a etnografia e é nela também que existe inicialmente a Alegoria depois transportada para a mente de Sócrates por seu texto. Se o campo é a imaginação; se o aceitamos como válido para este estudo, então, tudo o que nele existir, inclusive Sócrates no papel de intermediário tal qual concebeu Crapanzano (que talvez seja um dos papeis que lhe cai melhor nesse contexto), e as anotações etnográficas, são primeiramente feitos imaginariamente por Platão.

Dessa forma, reconfiguramos toda a estratégia do nosso estudo antropológico. Ao definirmos o campo como a imaginação de Platão, temos a possibilidade de abusar um pouco mais da nossa criatividade imaginativa, ou da nossa imaginação criativa e caracterizar todos os demais personagens, inclusive Sócrates, como nativos nesse campo. E feito isto, podemos tratar Sócrates, como um misto de informante e escritor.

As intenções dos informantes são sobredeterminadas, suas palavras, política e metaforicamente complexas. Se alocadas num espaço textual autônomo e transcritas de forma suficientemente extensas, as declarações nativas fazem sentido em termos diferentes daqueles em que o etnógrafo as tenha organizado. A etnografia é invadida pela heteroglossia” (p. 55).

Parece-me ser este o caso do texto original da “Alegoria da Caverna” com uma extensa transcrição dos diálogos entre Sócrates, Adimanto e Glauco. E quem vai negar que as falas transcritas destes personagens não se expressam de forma autônoma no texto de Platão; e que também, elas evocam sentidos diferentes do conjunto da obra desse autor?

Platão terá cada vez mais que partilhar com Sócrates, seu texto no referente à fictícia etnografia da Alegoria da Caverna. Pois segundo afirma Clifford em relação aos antropólogos, estes também terão que fazê-lo com todos aqueles colaboradores para os quais, afirma James Clifford, o termo informante não é mais adequado (se é que algum dia foi, indaga o autor).

É claro que essa nossa abordagem fazendo jus ao tratamento dado por James Clifford a todas essas questões em “A Experiência Etnográfica: antropologia e literatura no século XX”. Não deve passar de uma opção entre todas as formas de abordagens possíveis.

“Os processos experimental, interpretativo, dialógico e polifônico são encontrados, de forma discordante, em cada etnografia, mas a apresentação coerente pressupõe um modo controlador de autoridade. Um argumento é que esta imposição de coerência a um processo textual sem controle é agora inevitavelmente uma questão de escolha estratégica” (P. 58).

“Uma vida não questionada não merece ser vivida.” (Platão). 

Por Johnson Sales