“De trás do barraco de Bill, o rádio de alguém que voltara do
trabalho levou até nós uma música que falava de loucura e destino, e lá
estava ela com sua beleza destroçada, as veias saltadas nas mãos
estreitas de adulta, a pele arrepiada nos braços brancos, as orelhas sem
viço, as axilas descuidadas, lá estava ela (minha Lolita!)
irremediavelmente gasta aos dezessete anos, com aquela criança que
dentro de seu ventre já sonhava em ser um sujeito importante e se
aposentar no ano 2020 – e fiquei olhando para ela, sabendo, tão
lucidamente como sei que vou morrer um dia, que eu a amava mais do que
tudo o que jamais vi ou imaginei neste mundo, ou o que possa esperar em
qualquer outro. Ela era apenas um traço fugaz de perfume, o eco de uma
folha morta, quando comparada à ninfeta sobre a qual eu rolara outrora
gemendo de prazer; um eco à beira de uma ravina acobreada, com uma
floresta longínqua sob o céu lívido, folhas marrons sufocando o riacho,
um derradeiro grilo nas ervas ressequidas.. mas, graças a Deus, não era
apenas esse eco que eu venerava. Aquilo que eu costumava acariciar entre
as vinhas emaranhadas de meu coração, mon grand péche radieux,
estava reduzido a sua essência: todo o resto, o vício estéril e
egoísta, fora abolido, amaldiçoado. Podem zombar de mim, ameaçar evacuar
o tribunal, mas até que eu seja amordaçado e semi-asfixiado continuarei
a proclamar aos brados minha pobre verdade. Insisto em que o mundo
saiba o quanto amei minha Lolita, esta Lolita, pálida epoluída,
carregando o filho de outro homem, mas ainda com os mesmos olhos
cinzentos, os mesmos cílios cor de fuligem, os mesmos tons de castanho e
amêndoa, a mesma Carmencita, ainda e sempre minha! Changeos de vie, ma Carmen, allons vivre qulque part où nous ne serons jamais séparés.
Ohio? Os ermos de Massachusetts? Não importa, mesmo que teus olhos
fiquem embaciados como os de um peixe míope, mesmo que teus mamilos
inchem e se rachem, mesmo que se macule e se rasgue teu jovem e adorável
delta, tão delicadamente aveludado.. mesmo então eu enlouqueceria à
simples vista de teu rosto amado e lúrido, ao simples som de sua voz
rouquenha, minha Lolita.”
(Lolita – Vladimir Nabokov. Pág 281, ed. Cia das Letras)
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