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sexta-feira, 17 de maio de 2013

De Gulliver a Marco Polo com aroma de perfume alemão



E eu percorria milhares de quilômetros de letras, virava a cada quina de livro, topava em várias semânticas, imaginava fonemas. A geografia do Chipre tomava forma mesmo que totalmente abstrata e situava-se exatamente no centro da minha imaginação, logo ao lado da economia do Peru e um pouquinho afastada da religião do Marrocos. E eu degustava a culinária japonesa enquanto me embriagava com a mais artesanal vodka do Cazaquistão. Nesses instantes singulares, um aroma costurava culturas e povos, nações e autores, o sensorial e o racional, tratava-se do cheiro inconfundível de COLÕNIA 4711, produto alemão da cidade de colônia. Livros! Eles nos fazem Gulliver e Marco Polo. Leia mais e viva muitas vidas ao mesmo tempo e em dimensões sobrepostas.


Don Johnson de Sales.

Em Jerusalem (Tamim al-Barghouti)



Passamos na casa do amado, mas pela lei do inimigo e por seu muro fomos barrados.

Disse a mim mesmo: talvez seja uma benção; o que verá em Jerusalém afinal?

Verá tudo que não suporta ver, quando suas casas começam a aparecer ao lado da via.

Nem tudo no encontro do amado é alegria, e nem toda ausência o magoa.

Já que alegria do encontro cessa com a partida, tal alegria não era então garantida.

Se seus olhos virem Jerusalém uma vez, só verão a Jerusalém por onde olhar.


Em Jerusalém, um quitandeiro da Geórgia, entediado com sua mulher, pensa em tirar férias ou pintar a casa;

Em Jerusalém, uma Torá, e um homem de meia-idade, vindo de Alto Manhattan, ensina os jovens poloneses como ler a Torá;


Em Jerusalém, um policial da Etiópia fecha uma rua no mercado;


  uma metralhadora no ombro de um colono adolescente,

  um chapéu cumprimentando o Muro das Lamentações,


  turistas europeus loiros que não veem absolutamente nada de Jerusalém, mas você os vê tirando fotos uns dos outros ao lado de uma mulher que vende nabo nas praças  todo dia.

Em Jerusalém, há cercas de manjericão

Em Jerusalém, há barricadas de cimento

Em Jerusalém, soldados marcham com suas botas sobre as nuvens;

Em Jerusalém, rezamos sobre o asfalto;

Em Jerusalém, qualquer um está em Jerusalém, exceto você.

A História me olhou sorrindo:

“Você pensou mesmo que sua vista os perderia e notaria somente os outros?

Lá estão eles, diante de você, o texto principal,

do qual você é a nota e a margem.

Pensou, meu filho, que uma visita afastaria da face da cidade o denso lenço da realidade, apenas para você ver o que bem desejar?”

Em Jerusalém, estão todos os jovens, exceto você.

E ela, gazela ao longe, seu destino é perdê-la;

Persegue-a desde sempre, desde o primeiro olhar de adeus.

Meu filho, tenha pena de si, pois o vejo esvair.

Em Jerusalém, qualquer um está em Jerusalém, exceto você.

Ó escriba da História, espere.


A cidade tem dois tempos:

Um estrangeiro, confiante, de passo igual feito sonâmbulo.

E outro, coberto, mascarado, caminha sem voz.

Jerusalém se conhece, pergunte lá a qualquer um, lhe dirá

Toda coisa na cidade fala, se você perguntar, ela fala.

Em Jerusalém o Crescente curva-se, como feto,

sobre seus semelhantes, fincados nos domos;

entre eles, ao longo do tempo,

laços paternais se firmaram. Em Jerusalém, há construções cujas pedras são citações da Bíblia e do Alcorão Em Jerusalém, a beleza é um octógono azul coberto, meu prezado, por um domo dourado, que me parece um espelho convexo, que vê o céu nele abreviado,

Acariciando-o, aproximando-o, distribuindo-o

qual cestas básicas aos cercados —

fieis de braços erguidos após o sermão de sexta-feira.


Em Jerusalém o céu se espalha sobre as pessoas.

Protetor e protegido; carregamo-lo nos ombros, sim, se um dia os tempos oprimirem suas luas. Em Jerusalém, há colunas de mármore escuro, de fumaça parecem ser as veias.

Há janelas mais altas que mesquitas e igrejas,

que puxam a manhã pela mão,

mostrando-lhe como se pinta em cores:

A manhã diz: “não, é assim”.

“Não, não, é assim”, as janelas dizem.

Após longa discussão, acordo firmado:

a manhã é livre fora os limites das soleiras,

mas se quiser entrar terá que acatar

as leis das janelas do Misericordioso.

Em Jerusalém há uma escola erguida por um mameluco

que do além-rio era;

e no mercado de escravos em Isfahan foi vendido

para um mercador de Bagdá que em Alepo vivia,

mas cujo príncipe temia o azul que havia

em seu olho esquerdo e por isso fora entregue à caravana que para o Egito partia.

Poucos anos se passaram, Conquistador dos Mongóis tornou-se e Soberano dos soberanos.

Em Jerusalém há aromas que sintetizam Babel e Índia num boticário no bairro de Khan Ezzeit

Juro que o aroma fala uma língua que se você presta atenção chega a compreender

Quando lançaram suas bombas de gás em minha direção, aquele aroma me disse: “ignore-os”.

Dissipado o gás, o aroma espalhou-se e me disse: “viu?”

Em Jerusalém, contradições serenam;

milagres não são negados,

de pano se parecem: retalhos, velhos e novos;

Os milagres aqui são palpáveis

Em Jerusalém, se apertar a mão de um ancião,

ou tocar numa edificação, verá, meu prezado,

que em sua palma, um poema foi gravado — quiçá dois.

Em Jerusalém, apesar das seguidas desgraças,

há inocência no ar, há ar de infância,

Vê pompas anunciando um país

ao vento entre duas balas. Em Jerusalém, os túmulos em fileiras,

linhas na história da cidade sendo a terra, seu livro.


Todos passaram por aqui. Jerusalém recebe a todos, fieis e infiéis.

Caminhe por ela e leia seus testemunhos em todos as línguas da terra.

Nela estão negros, turcomanos, eslavos e bósnios;

tártaros, turcos, gente do bem e do mal;

pobres, abastados; devassos e devotos.

Nela estão todos que na terra pisaram,

E que eram do livro as margens,

mas que no texto principal se transformaram.

Ó, escriba da História, o que houve para nos excluir?

Acaso a cidade ficou tão pequena só para nós?

Ó velho, reescreva e releia, vejo que cometeu um grave erro!


O olho se fecha e se abre

O motorista do carro amarelo nos conduz ao norte

Os portões se distanciam

Jerusalém fica para trás


Vejo-a no espelho do lado

Mudando de cor ao sol antes de sumir


Um sorriso me surpreendeu

Não sei como conseguiu se infiltrar,

e quando, atento, mirei-o de perto, disse me:

“Você, quem chora atrás do muro, é tolo ou enlouqueceu?

Não deixe seu olho chorar;

você, parte esquecida do texto principal

Não chore, ó árabe, e saiba que:

Em Jerusalém, qualquer um está em Jerusalém,

Mas eu só vejo você, em Jerusalém”.



(Tradução de Safa A.C. Jubran)

A monarca, o efeito e o tempo



Será que se perdem as lembranças no mesmo ritmo que fogem as horas para os mais remotos recantos do arquivo atemporal da memória? E se isso se dá assim, quais conexões serão poupadas quando a Danaus plexippus fizer agir suas asas, modificando os destinos humanos e redobrando espaço e tempo sobre si?

Don Johnson de Sales. 

Lolita - declarações de amor podem ser tristes



“De trás do barraco de Bill, o rádio de alguém que voltara do trabalho levou até nós uma música que falava de loucura e destino, e lá estava ela com sua beleza destroçada, as veias saltadas nas mãos estreitas de adulta, a pele arrepiada nos braços brancos, as orelhas sem viço, as axilas descuidadas, lá estava ela (minha Lolita!) irremediavelmente gasta aos dezessete anos, com aquela criança que dentro de seu ventre já sonhava em ser um sujeito importante e se aposentar no ano 2020 – e fiquei olhando para ela, sabendo, tão lucidamente como sei que vou morrer um dia, que eu a amava mais do que tudo o que jamais vi ou imaginei neste mundo, ou o que possa esperar em qualquer outro. Ela era apenas um traço fugaz de perfume, o eco de uma folha morta, quando comparada à ninfeta sobre a qual eu rolara outrora gemendo de prazer; um eco à beira de uma ravina acobreada, com uma floresta longínqua sob o céu lívido, folhas marrons sufocando o riacho, um derradeiro grilo nas ervas ressequidas.. mas, graças a Deus, não era apenas esse eco que eu venerava. Aquilo que eu costumava acariciar entre as vinhas emaranhadas de meu coração, mon grand péche radieux, estava reduzido a sua essência: todo o resto, o vício estéril e egoísta, fora abolido, amaldiçoado. Podem zombar de mim, ameaçar evacuar o tribunal, mas até que eu seja amordaçado e semi-asfixiado continuarei a proclamar aos brados minha pobre verdade. Insisto em que o mundo saiba o quanto amei minha Lolita, esta Lolita, pálida  epoluída, carregando o filho de outro homem, mas ainda com os mesmos olhos cinzentos, os mesmos cílios cor de fuligem, os mesmos tons de castanho e amêndoa, a mesma Carmencita, ainda e sempre minha! Changeos de vie, ma Carmen, allons vivre qulque part où nous ne serons jamais séparés. Ohio? Os ermos de Massachusetts? Não importa, mesmo que teus olhos fiquem embaciados como os de um peixe míope, mesmo que teus mamilos inchem e se rachem, mesmo que se macule e se rasgue teu jovem e adorável delta, tão delicadamente aveludado.. mesmo então eu enlouqueceria à simples vista de teu rosto amado e lúrido, ao simples som de sua voz rouquenha, minha Lolita.”


(Lolita – Vladimir Nabokov. Pág 281, ed. Cia das Letras)

Leia o livro!

O mito de Ulisses nas nossas "odisséias" cotidianas




Há momentos na vida em que mesmo os mais decididos e virtuosos homens não podem, por si só, dar conta de certas tentações. E sem providências adequadas e às vezes radicais, tendem a sucumbir diante de atrações e forças que vão muito além de suas próprias resistências. Quantos Ulisses tem que se amarrar ao mastro dos navios da vida e contar com amigos e companheiros com ouvidos tampados para seus apelos desesperados por riscos, perigos e dores iminentes na direção das quais insistem em seguir? Afinal, de sereias dos mais variados tipos, a vida está repleta. E o mito de Ulisses permanece vivo em muitas das nossas "odisséias" cotidianas. (Don Johnson de sales)

 Ulisses e as Sereias

Um dos mais terríveis perigos que Ulisses teve de enfrentar em seu regresso a Ítaca foram as sereias, demônios marinhos com rosto de mulher, mas dotados de asas e garras de aves de rapina. Seu canto era tão melodioso e sedutor que atraía irresistivelmente todos os marujos que passavam pelas vizinhanças da ilha onde elas viviam. Os navios aproximavam-se então imprudentemente da costa pontilhada de escolhos agudos e de íngremes rochedos e rachavam os cascos, soçobrando nas águas pardacentas. Os náufragos que porventura conseguissem alcançar terra eram impiedosamente devorados por seres demoníacos. Advertidos por Circe, Ulisses e seus companheiros sabiam perfeitamente o que deviam fazer mal avistassem a ilha das sereias. Tinham de trabalhar rápido antes que uma só nota de seu harmonioso canto viajasse pelos ares.

Vedaram, pois, cuidadosamente os ouvidos com pedaços de cera de abelha, que haviam recolhido na ilha de Eeia, e depois amarraram Ulisses ao mastro com cordas sólidas. Fora essa a forma que o herói havia imaginado para, de maneira segura, satisfazer a sua insaciável curiosidade, um dos traços marcantes do seu espírito.


Mal tinham os companheiros acabado de cingir o corpo de Ulisses com os últimos nós, as sereias,  enxergando ao longe o barco dos gregos, iniciaram o seu canto mavioso e aliciante:


— Venha, Ulisses, honra e orgulho da nobre Grécia! Aproxime-se para ouvir a nossa voz! Quem por aqui passa deleita-se com nossas melodias, escuta os feitos gregos na altiva Troia e penetra os segredos do universo.


Seduzido por tais apelos, o herói ordenou asperamente aos companheiros que o soltassem, mas estes, com os ouvidos entupidos pela cera, continuavam tranquilos a remar. Percebendo, porém, que Ulisses fazia esforços desesperados para libertar-se, dois deles se levantaram e foram reforçar ainda mais os laços. Apenas quando a ilha das cruéis sereias desapareceu no horizonte é que os marujos, cientes de que já não havia perigo, retiraram a cera que lhes tapava os ouvidos e cortaram as cordas que prendiam o astuto Ulisses ao mastro da nau.


Homero. Odisseia. Adaptação de Roberto Lacerda. São Paulo: Scipione, 2008. p. 31-32
 
 
 

A Idade da Razão

"Toda a sua liberdade acabava de retroceder sobre ele.
Pensou: Não, não é cara ou coroa. O que quer que aconteça, 
é através de mim que há‑de acontecer."

"Ainda que se deixasse levar, desamparado, desesperado, mesmo que se deixasse transportar como um saco de carvão, tinha escolhido a sua perdição. 

Era livre, livre, para tudo, com liberdade de ser um animal ou uma máquina, de aceitar, de recusar, de hesitar, casar, desaparecer, de se arrastar durante anos com aquela cadeia aos pés. 

Podia fazer o que quisesse, ninguém tinha o direito de aconselhá‑lo. Só havia para ele Bem e Mal se os inventasse. 
Em volta dele as coisas tinham‑se agrupado, esperavam sem um sinal, sem a menor sugestão. Estava só no meio de um silêncio monstruoso, só e livre, sem auxílio nem desculpa, condenado a decidir‑se sem apelo possível, condenado à liberdade para sempre."

Sartre (trecho de "A Idade da Razão") 


Amizade - Condicionantes preponderantes



Há uma qualitativa diferença entre os vários tipos de amizade que se pode cultivar ou pelo menos aspirar na vida. Toda relação amistosa é desejável. Porém, as amistosidades seguem,via de regra, outros conjuntos de condicionantes que terminam por modelar essa ou aquela forma de amizade. Interesses políticos, sentimentais, econômicos e até sexuais, costumam se entrelaçar e atuar em espiral no interior das amizades. Sendo que uma dessas condicionantes se torna preponderante e dá o tom; e define a forma perceptiva da amizade. Mais a condicionante preponderante é variável no tempo e nas situações que a vida orquestra como pano de fundo de dada amizade.

Afirmar se determinado tipo de amizade marcada por certa condicionante preponderante é boa ou ruim, construtiva ou não, melhor ou pior, é querer definir de forma absoluta algo indefinível na forma do absoluto; é querer absolutizar a relatividade das condições, contextos, momentos e estados de espírito característicos do universo complexo no amâgo do qual nascem, se desenvolvem e perecem as amizades.

De qualquer forma, mais do que examinar, definir e teorizar sobre a amizade, o mais importante, e talvez a única coisa realmente essencial, seja viver as amizades sempre que se julgue que elas valham realmente a pena. E isto também é muito relativo.

Se algo lhe faz bem, convém manter perto de você. Se algo lhe faz mal, o recomendável é que busque afastar de seu convívio. O resto, não tem lá muito significado ou relevância fora do abstracionísmo e do idealísmo que pouco ajudam na difícil e rara arte de bem viver.


Don Johnson de Sales.