Clifford Geertz
“Uma boa interpretação de qualquer coisa – um
poema, uma pessoa, uma estória, um ritual, uma instituição, uma sociedade –
leva-nos ao cerne do que nos propomos interpretar. Quando isso não ocorre e nos
conduz, ao contrário, a outra coisa – a uma admiração da sua própria elegância,
da inteligência do seu ator ou das belezas da ordem euclidiana -, isso pode ter
encantos intrínsecos, mas é algo muito diferente do que a tarefa que temos –
exige descobrir o que significa toda a trama...” (Geertz Clifford, a
interpretação das culturas, p.28).
Os riscos de se parar na admiração com a
elegância de A Alegoria da Caverna e com a inteligência de Platão
são grandes. Afinal, essa obra tem conquistado a admiração das mentes
mais privilegiadas do nosso tempo, e dos tempos passados, desde que foi
escrita. E até mesmo algumas dessas mentes fantásticas – se levarmos a sério o
pensamento de Clifford Geertz - não foram além dessa admiração. O
desafio aqui é tentar compreender, como defendia Geertz, toda a trama com os
carneiros. Ou melhor, com os prisioneiros da caverna; tentar descobrir se a
narrativa atribuída por Platão a Sócrates é uma narrativa superficial ou
densa. Queremos saber se Sócrates ao narrar a estória dos prisioneiros
da caverna está realmente “pensando e refletindo”; se está praticando
“o pensar dos pensamentos”na visão de Gilbert Ryle, tomada
emprestado por Geertz no seu a interpretação das culturas (p. 15,16).
E ainda, o que Sócrates quis dizer ao adotar a parábola? O uso de
uma ficção para retratar duas formas diferentes de ver e entender o mundo.
Quais implicações para uma compreensão da alteridade terá a Alegoria desse
filósofo quando examinada à luz da antropologia. Examinaremos essas, e outras
questões ao longo deste texto.
Agora, procuremos saber se existem teias de
significado tecidas pelos homens em questão, os acorrentados da caverna, da
alegoria narrada por Sócrates. E se elas existem, como procedeu o filósofo
diante das mesmas? Eis a questão mais relevante a que nos ateremos nesse
trabalho. Se encontrarmos estas teias tecidas pelos próprios sujeitos da
caverna atribuindo sentido, a si mesmos, e a suas ações, segundo a visão de
Geertz, estaremos diante da cultura dos aprisionados da caverna de
Platão. E poderemos examinar como se deu a análise de Sócrates em relação a
esta cultura.
“... Assim sendo, os homens que estão nessas
condições não poderiam considerar nada como verdadeiro, a não ser as sombras dos
objetos fabricados...” (Sócrates – A Alegoria da Caverna).
Considerar algo como verdadeiro é atribuir valor a
algo. E fazê-lo, mobiliza toda uma teia de significados que podem ter a
ver com crenças, experiências sensoriais, condicionamento social, questões
psicológicas, enfim. O que é verdadeiro, ou não, só o é, em relação ao
significado que tem para o sujeito e para o mundo em que ele vive. Essa
definição do que é verdadeiro depende da mobilização de todo um sistema de
símbolos que tem seus significados relacionados e relativos ao contexto em
que se desenvolvem. Definir o que é verdadeiro, ou não, é de grande relevância
para a atribuição de significados do sujeito em relação a si próprio e ao mundo
à sua volta. E se para fazê-lo, o sujeito tem que mobilizar uma teia de
significados tal qual compreende Geertz, então, nos vemos diante de
elementos da cultura desse sujeito.
“Veja agora o que aconteceria se eles fossem
libertados de suas correntes e curados de sua desrazão.” (Sócrates – A Alegoria
da Caverna).
Se o filósofo Sócrates estivesse praticando uma
“descrição densa” consideraria o conhecimento gerado no interior da caverna
pelos aprisionados, como uma desrazão?
Essa é uma questão para ser vista sob a luz do
pensamento de Geertz. Sócrates ao analisar o comportamento dos aprisionados da
alegoria da caverna teria se confrontado com uma estratificada hierarquia
de estruturas significantes? Ou teria, o filósofo, construído ele
próprio, uma estrutura significante, a exemplo das falsas piscadelas abordadas
por Geertz. Teria Sócrates encarado os seus dados como sua construção
da construção dos prisioneiros da caverna? Ou teria tomado os seus dados
como suficientemente verdadeiros e bastando eles próprios a si; e se limitado a
olhar para a superfície do que via, guiando-se pela busca de leis, ao
invés de assumir uma postura interpretativa à procura de significados?
Vivendo fora da caverna e livre, sem jamais ter
experimentado as mesmas condições dos prisioneiros de sua alegoria, Sócrates,
aos olhos de Geertz, não estaria familiarizado com o universo imaginativo
daqueles prisioneiros. E, portanto, estaria de certa forma impedido de entender
corretamente o que os personagens da alegoria pretendiam. Clifford Geertz
afirma em a interpretação das culturas (p.23):
“O que impede a nós, que crescemos piscando outras
piscadelas ou cuidando de outros carneiros, de entender corretamente, num lugar
como o Marrocos, que o que pretendem as pessoas não é a ignorância sobre como
atua a cognição (mas principalmente porque, presume-se, ela atua da mesma
maneira que entre nós, e seria bem melhor se pudéssemos passar também sobre
isso) como a falta de familiaridade com o universo imaginativo dentro do qual
os seus atos são marcos determinados.”
Talvez esteja ai a explicação para o que levou
Sócrates a considerar desrazão o que ele mesmo chama de ciência
em outra passagem da Alegoria da Caverna:
“Nesse momento, se ele se lembrar de sua primeira
morada, da ciência que ali se possuía e de seus antigos companheiros...”.
Se nos orientarmos pelo pensamento de Clifford
Geertz vamos identificar em Sócrates a dificuldade de situar-se entre os
prisioneiros de sua alegoria. Uma dificuldade derivada de sua postura
intencional de gerar uma oposição entre a sua forma de ver o mundo e a forma do
outro ver o mundo. Esta postura de Sócrates é diferente do exemplo utilizado
pelo autor, do visitante em um País estranho - com tradições e costumes
estranhos - que mesmo sendo conhecedor do idioma local, não compreende o povo
por não poder se situar entre eles. A diferença está que em Sócrates não
se encontra a vontade ou a disposição para compreender os costumes dos outros
se situando entre eles. Sua intenção primeira é afirmar a diferença e
hierarquizar os conhecimentos, elegendo o seu próprio como o ponto mais alto da
hierarquia e o do outro como o ponto mais baixo. Por não colocar os acorrentados
da caverna – como fez Geertz com os marroquinos – no quadro de suas
próprias banalidades, talvez Sócrates não tenha conseguido (para ficar com
outros termos do próprio Geertz) dissolver determinadas opacidades em
relação aos costumes, cultura, ciência e o que pretendiam seus personagens.
Desde o início a descrição de Sócrates se pretendeu
antropológica. Isso, se ficarmos com a concepção de que descrições deste tipo, “partem
de um sistema em desenvolvimento de análise científica” como Geertz via as
descrições antropológicas. O fato de ser aplicada a uma ficção em nada depõe
contra ela. Geertz via a cultura como um texto a ser interpretado e o trabalho
do etnógrafo comparado ao fazer de um crítico literário. Como também percebia
toda descrição etnográfica como uma ficção, uma interpretação de
interpretações. Como o discurso dos acorrentados da caverna sendo
interpretado por Sócrates; o discurso de Sócrates sendo interpretado por
Platão; o discurso de Platão sendo interpretado por mim quanto leitor; e o meu
discurso sendo interpretado pelo leitor deste texto, todos a partir do que
(fazendo alusão à pergunta de Paul Ricoeur citada por Geertz na página 29) a
escrita fixou.
O antropólogo não estuda a caverna da alegoria de
Sócrates, ele estuda na caverna. O lócus do estudo, para Geertz, não é o objeto
do estudo. Para o autor de a interpretação das culturas, “o que é
importante nos achados antropológicos é a sua especificidade complexa, sua
circunstancialidade”. Por isso a caverna hipotética descrita por Platão
através de Sócrates representa um lócus privilegiado com um achado específico e
bastante complexo em relação às circunstâncias em que se dá.
Geertz desconfia _ pois afirma não saber se é
exatamente dessa forma que acontece _ que todos os conceitos científicos se
desenvolvam como se deu em relação ao conceito de cultura. Ou seja, a partir da
força com que certas ideias surgem e se instalam no panorama intelectual,
substituindo ideias anteriores e se tornando absolutas. Sendo empregadas por
muitos na solução de vários ou quase todos os problemas levantados no âmbito da
investigação científica. Essas ideias, ao se encontrarem no nível de
familiarização científica, ou seja, estando elas dogmatizadas, se tornam partes
do que o autor chamou de suprimento geral de conceitos teóricos. Nessa
condição seria possível discernir entre as suas dimensões reais e a apropriação
e exploração exageradas que alguns mais bitolados fazem dela. Geertz
acredita que a aplicação ampliada dessas ideias dogmatizadas e absolutizadas
geram conceitos limitados e incapazes de fundamentar de modo correto, uma
análise abrangente do fenômeno estudado. Principalmente se estivermos falando
das ciências sociais e das suas necessidades relacionadas à investigação
científica. Aos resultados gerados por essas aplicações exageradas de certos
conceitos, Clifford Geertz chama de pseudociências. O autor afirma ainda
que passado esse primeiro momento das aplicações generalizadas e absolutas das
ideias em praticamente todos os campos da ciência, é possível entender a onde
elas realmente se aplicam e onde não.
Essa visão de Geertz poderia nos dar mais pistas
importantes para tentar entender como o experimentado filósofo Sócrates só
conseguiu enxergar a ciência ou a cultura, geradas no interior da caverna, como
uma desrazão. Estaria o filósofo trabalhando com ideias absolutizadas e
generalizadas e tentando com elas dar conta da realidade dos acorrentados de
sua alegoria? Há fortes indícios de que sim. Afinal, o que é ou não verdade,
segundo Sócrates, para o egresso da caverna, é definido segundo o conceito de
verdade do próprio Sócrates a partir do seu próprio suprimento geral de
conceitos teóricos, construídos em circunstâncias e complexidades muito
diferentes daquelas, as quais, o egresso estava submetido. Talvez a realidade
dos acorrentados da alegoria de Sócrates representasse um daqueles casos
onde a ideia generalizada e absoluta de verdade que o filósofo estava usando em
sua análise, não se aplicasse. A verdade para os acorrentados poderia
muito bem ser outra. Sua verdade poderia ser a verdade das sombras, dos vultos
e dos sons distorcidos pelo eco. Se assim fosse, Sócrates não teria percebido.
Pois havia olhado para a verdade dos seus personagens a partir da sua própria
noção de verdade forjada nas suas circunstancialidades e especificidades. Neste
caso, o filósofo evitou o que Geertz caracterizou como “um negócio enervante
que só é bem sucedido parcialmente”. Ou seja, Situar-se.
Sócrates não parece ter se empenhado em descobrir
as estruturas conceptuais que informavam os atos dos sujeitos na caverna, os
“ditos” nos discursos sociais dos mesmos. Não parece ter se preocupado em “construir
um sistema de análise em cujos termos o que é genérico a essas estruturas, o
que pertence a elas porque são o que são, se destacam contra outros
determinantes do comportamento humano”. (p.38). Dessa forma, o grande
filósofo da antiguidade por mais profundo que tenha imergido filosoficamente,
em se tratando da antropologia interpretativa de Clifford Geertz, pode amargar
um resultado muito mais inexpressivo do que o autor sintetizou na seguinte
fala:
“Não cheguei nem perto do fundo da questão. Aliás,
não cheguei próximo do fundo de qualquer questão sobre a qual tenha escrito,
tanto nos ensaios abaixo como em qualquer outro local”. (Geertz, Clifford, a
interpretação das culturas, p.39).
Sócrates parece – retomando a história indiana
citada por Geertz – não ter ido além da primeira tartaruga que sustentava em
suas costas o elefante que por sua vez apoiava a plataforma na qual repousava o
mundo.
Do conjunto de paradigmas dos quais o pensamento de
Geertz confronta e se afasta, tais como:
- A visão de que “a cultura consiste em fenômenos mentais que podem”..., ou poderiam segundo Geertz, “... ser analisados através de métodos formais similares aos da matemática e da lógica” de Stephem Tyler;
- Ou do paradigma de Clyde Kluckhohn que terminou por conceituar cultura em 11 definições, gastando 27 páginas do primeiro capítulo de seu livro e gerando o que Clifford Geertz caracterizou como uma “espécie de difusão teórica”;
- Também o que poderia se aplicar perfeitamente aos Arapesh do Sexo e Temperamento de Margaret Mead, quando Geertz afirma “que nada contribui mais para desacreditar a análise cultural do que a construção de representações impecáveis de ordem formal, em cuja existência verdadeira praticamente ninguém pode acreditar”;
- Ainda a crítica implacável aos modelos que os próprios antropólogos elaboram para justificar a mudança de verdades locais para visões gerais, tem sido de fato, tão responsável em minar o esforço como qualquer coisa que seus críticos – sociólogos obcecados com tamanhos de amostragens, psicólogos com medidas ou economistas com outras medidas – foram capazes de inventar contra eles. Crítica com a qual alcança não só alguns modelos citados, como também o grande precursor dessa tradição científica, o fundador da antropologia estruturalista Claude Lévi-Strauss.
Do ponto de vista antropológico, a abordagem
filosófica de Sócrates em relação à Alegoria da Caverna, parece apresentar uma
familiaridade maior com Lévi Strauss e seus modelos abstratos para compreensão
das realidades locais ou como definiu Geertz, mudança de verdades locais
para visões gerais. De onde é possível concluir que, se examinando à luz do
pensamento de Clifford Geertz, na interpretação que Sócrates faz da Alegoria
da Caverna, o filósofo clássico não praticou uma descrição densa.
Marshall Sahlins
Para Sahlins, “os homens criativamente repensam
seus esquemas convencionais. É nesses termos que a cultura é alterada
historicamente na ação” (Sahlins, “Ilhas de História”, p.7). Esta visão de
Marshall Sahlins nos possibilita imaginar todo um complexo processo de mudanças
que poderia ocorrer na “Sociedade dos acorrentados da caverna” da
alegoria de Sócrates a partir do retorno para o seu meio, do homem que foi ao
mundo exterior e aprendeu uma nova cultura, ou novas culturas. Ele de fato
enfrentaria resistências, talvez até as mesmas que previu Sócrates, quando
tentasse, inspirado pelo que aprendeu na sua estada no mundo exterior, sugerir
e levar a termos mudanças na estrutura da “sociedade” da caverna. Mas, as
alternativas não se resumiriam somente àquelas marcadas pela tragédia sugerida
pelo filósofo. A cultura da caverna poderia ser alterada historicamente pela
ação do homem. E assim, não restaria para o homem que conheceu outra cultura,
apenas o mesmo dilema do herói de Homero como especulou Sócrates:
“Ele não pensaria antes, como o herói de Homero,
que mais vale ‘viver como escravo de um lavrador’ e suportar qualquer provação
do que voltar à visão ilusória da caverna e viver como se vive lá?”.
E Sahlins afirma: “Poderíamos até falar de
‘transformação estrutural’, pois a alteração de alguns sentidos muda a relação
de posição entre as categorias culturais havendo assim uma ‘mudança sistêmica’
(p. 7)”.
Afinal, Sahlins considera as relações simbólicas de
ordem cultural, chamadas pelos antropólogos de “estrutura”, também um “objeto
histórico”. Tal posição do autor abre a perspectiva de tratarmos as mudanças
hipoteticamente fomentadas pelo homem que conheceu o mundo da superfície, na sociedade
dos acorrentados, como elemento corroborador do seu pensamento, que supera
a noção de oposição entre “estrutura” e “história” existente nas ciências
humanas.
Ver possibilidades de mudanças na sociedade dos
acorrentados da alegoria de Sócrates a partir dos conhecimentos adquiridos
no mundo exterior por um dos seus membros é também concordar com a visão de Sistema
Aberto de Sahlins. Pelo menos segundo a abordagem apresentada aqui. Sahlins
via um possível atrelamento da riqueza do sistema dominante às sociedades
tradicionais por meio do papel que estas cumpriam de reprodução e
mesmo de transformação criativa em relação ao primeiro. Se substituirmos
aqui o exemplo da ordem dominante europeia e das sociedades
tradicionais, usado por Sahlins, pelo mundo exterior e pela sociedade
dos acorrentados da caverna, respectivamente. Poderemos apresentar a sociedade
dos acorrentados como um sistema aberto com capacidade de articular
respostas locais para as questões geradas pelo mundo exterior dominante.
Ao pensar assim, ofereceríamos alternativas para o dilema enfrentado tanto pelo
homem que foi ao exterior e voltou querendo mudanças na sua sociedade, como
pelos membros desta sociedade, que permaneceram no local e acreditam na sua forma
tradicional. A sociedade dos acorrentados, funcionando como um sistema
aberto poderia passar por mudanças, inclusive na sua estrutura. E dessa
forma, poderíamos ter grandes mudanças na caverna sem que fosse
necessário que se destruísse completamente a sua forma tradicional de vida.
“o mesmo tipo de mudança cultural, induzida por
forças externas, mas orquestrado de modo nativo, vem ocorrendo há milênios”
(Sahlins, “Ilhas de História”, p.9).
Então o desfecho trágico cogitado por Sócrates, no
qual, o homem que foi ao mundo externo sofreria grande repressão por parte dos
prisioneiros da Alegoria; e que alguém tentando libertá-los e
arrasta-los até a superfície, retirando-os do seu mundo, poderia inclusive ser
por eles assassinado. Não obrigatoriamente, é a única opção possível para essa
parábola.
A “Estrutura” da sociedade dos acorrentados
sendo um “objeto histórico” como acredita Sahlins, poderia sim mudar a partir
das pressões do mundo exterior, mas orquestrando, segundos os seus
interesses próprios, essas mudanças.
A visão de Sahlins difere da visão de Sócrates num
aspecto muito importante: O filósofo encara o seu conhecimento - tratado neste
estudo também como cultura - como o único possível ou verdadeiro e
hierarquicamente superior à cultura dos acorrentados da caverna. E vê o
contato entre essas duas culturas como um confronto entre o verdadeiro
conhecimento (o sol tal como é) e o falso conhecimento (o reflexo do
sol na água ou em outra superfície lisa) e alimenta a esperança de que o
seu conhecimento “superior” represente para o outro, como para si mesmo e para
os seus pares, a “ascensão da alma até o lugar inteligível”. Vendo sua
relação com o outro dessa forma, o pensamento de Sócrates não reserva nenhum
lugar para a “sociedade tradicional dos acorrentados”. A cultura do
outro, entendida como inferior e como “falso conhecimento” (o reflexo do sol
na água ou em outra superfície lisa), tem como destino, na perspectiva do
filósofo, desaparecer; ser substituída pela sua cultura; ceder lugar ao verdadeiro
conhecimento (o sol tal como é).
Já para Marshall Sahlins, a sociedade dos
acorrentados vista como um sistema aberto tem a possibilidade de se
modificar sob a influência do mundo exterior. Inclusive articular ela própria
as respostas necessárias para as pressões externas. Sahlins, ao contrário de
Sócrates, reserva um lugar e um papel para a sociedade tradicional como reprodutora
e até como transformadora criativa. Se Sahlins pensa que a sociedade
tradicional responde segundo seus próprios interesses; é concebível que o
faça, segundo elementos próprios que vão sendo modificados numa relação de
adequação com a força externa. Portanto a cultura dos acorrentados da caverna
de Sócrates, não tem que, necessariamente desaparecer por completo e ceder lugar
a cultura do mundo exterior. Mas sim, se transformar a partir de suas
próprias respostas diante destes estímulos externos. E Sahlins vai mais longe.
Ele vê como no caso da cultura europeia e das sociedades tradicionais,
a possibilidade da riqueza da primeira está atrelada á reprodução e até
mesmo à transformação criativa das sociedades tradicionais. Ou
seja, partindo desse paradigma, o mundo externo poderia terminar com sua
riqueza atrelada à sociedade dos acorrentados da caverna da alegoria de
Sócrates.
“Os elementos dinâmicos em funcionamento –
incluindo o confronto com um mundo externo, que tem determinações imperiosas
próprias e com outros povos, que têm suas próprias intenções paroquiais – estão
presentes por toda a experiência humana. A história é construída da mesma
maneira geral tanto no interior de uma sociedade, quanto entre sociedades”
(Sahlins, “Ilhas de História”, p.9).
E contra a superioridade do conhecimento do
filósofo do mundo externo em relação à cultura dos acorrentados da caverna,
poderíamos contrapor sem muita dificuldade a noção de Sahlins de que as
diferenças entre as culturas são na verdade diferenças históricas. E que se
essas diferenças históricas forem analisadas segundo a ótica das estruturas
“performativas” ou “prescritivas” tomam “um banho” de relativização.
“Culturas diferentes, historicidades diferentes”
(p.11).
Outro aspecto importante da análise da parábola de
Sócrates em relação ao pensamento de Marshall Sahlins é o exame da ocorrência
do “evento” como o caracteriza Sahlins. Ou seja, “a relação entre um
acontecimento e a estrutura (ou estruturas): O fechamento do fenômeno em si
mesmo enquanto valor significativo, ao qual se segue sua eficácia histórica
específica” (p.15).
Com base na narrativa de Sócrates, é possível
entender como “evento” a libertação de um dos acorrentados da caverna. A
partir dessa libertação a estrutura da sociedade dos acorrentados estaria
historicamente aberta a muitas possibilidades de mudanças. Pois segundo
Sahlins, “O evento é a interpretação do acontecimento, e interpretações
variam.” Se é assim, as categorias culturais têm o seu sentido original
remodelado pela introdução de novos significados e símbolos, deflagrando
alterações na forma de pensar e agir da sociedade como um todo. É exatamente
sobre a interpretação deste acontecimento que tratam estes trechos da narrativa
do filósofo:
“... Depois disso, poderá raciocinar a respeito do
sol, concluir que é ele que produz as estações e os anos, que governa tudo no
mundo visível, e que é de algum modo, a causa de tudo o que ele e seus
companheiros viam na caverna. Nesse momento, se ele se lembrar de sua primeira
morada, da ciência que ali se possuía e de seus antigos companheiros, não acha
que ficaria feliz com a mudança e teria pena deles? Quanto às honras e louvores
que eles se atribuíam mutuamente outrora, quanto às recompensas concedidas
àquele que fosse dotado de uma visão mais aguda para discernir a passagem das
sombras na parede e de uma memória mais fiel para se lembrar com exatidão daquelas
que precedem certas outras ou que lhes sucedem, as que vêm juntas, e que, por
isso mesmo, era o mais hábil para conjeturar a que viria depois, acha que nosso
homem teria inveja dele, que as honras e a confiança assim adquiridas entre os
companheiros lhe dariam inveja?...”
“... Reflita ainda nisto: suponha que esse homem
volte à caverna e retome o seu antigo lugar. Desta vez, não seria pelas trevas
que ele teria os olhos ofuscados, ao vir diretamente do sol? E se ele tivesse
que emitir de novo um juízo sobre as sombras e entrar em competição com os
prisioneiros que continuaram acorrentados, enquanto sua vista ainda está
confusa, seus olhos ainda não se recompuseram, enquanto lhe deram um tempo
curto demais para acostumar-se com a escuridão, ele não ficaria ridículo? Os
prisioneiros não diriam que, depois de ter ido até o alto, voltou com a vista
perdida, que não vale mesmo a pena subir até lá? E se alguém tentasse retirar
os seus laços, fazê-los subir, você acredita que, se pudessem agarrá-lo e executá-lo,
não o matariam”?
Na narrativa de Sócrates sobre o “evento” fica
evidente a presença entre este e a “estrutura”, do que Marshall Sahlins chamou
de “Estrutura da Conjuntura”. Ou seja, nas palavras do próprio Sahlins, “a
síntese situacional dos dois [...] a realização prática das categorias
culturais em um contexto histórico especifico”. Estaríamos então, em
se tratando deste “evento” e da sua relação com a “estrutura” da sociedade
dos acorrentados da caverna, diante da práxis, tal qual, definiu o
autor: “enquanto uma sociologia situacional do significado” (p.15).
Com a volta do liberto da caverna que conhecera o
mundo externo, a sociedade da caverna, viu seus símbolos e significados
serem questionados. E tem daí em diante, a possibilidade de passar por transformações
estruturais através da reorganização de elementos culturais nativos e pela
reprodução de elementos culturais do mundo externo e do seu próprio a partir de
novas configurações e significados. Esta “sociedade” tem, portanto, a
chance de funcionar como reprodutora da cultura a partir dos seus
próprios interesses.
Se a sociedade dos acorrentados da caverna e
seus membros, libertos ou não, enfrentarão a tragédia especulada por Sócrates;
ou se essa “sociedade” terá sua “estrutura” transformada e se acomodará como
reprodutora local do Mundo Exterior, conseguindo inclusive, atrelar a riqueza
deste à sua produção, com possibilidades de torná-la dependente. Será definido
pela ocorrência, ou não, do alargamento das categorias que esta
“sociedade” procura construir para tentar agir no mundo. Se isso ocorrer, a reprodução
cultural acontecerá e a estrutura não mudará. Porém, se a partir do
“evento” narrado por Sócrates, o que ocorrer, for a alteração, nas relações
entre as categorias e não o seu alargamento, haverá transformação estrutural.
“O sistema é, no tempo, a síntese da reprodução e
da variação” (Sahlins, Marshall, Ilhas de História, p.9).
Diante do pensamento de Sahlins e das várias
questões aqui trabalhadas que submetem a “Alegoria da Caverna” a um
exame, mesmo que superficial, à luz desse pensamento. Sócrates, sábio e
filósofo, que trabalhou nessa parábola a ascensão do homem ao que acreditava
ser o verdadeiro conhecimento. Poderia fazer - em relação à noção de
oposição entre Estrutura e História que Marshall Sahlins cancela
em “ilhas de História” – como fez ao reagir ao pronunciamento do oráculo de
Delfos, que o apontara como o mais sábio de todos os homens. Ou seja, afirmar:
“só sei que nada sei”.
James Clifford
Em “A Experiência Etnográfica: antropologia e
literatura no século XX”, James Clifford, trata da autoridade etnográfica. O
autor procura mostrar como se constrói ao longo da história a noção de
autoridade etnográfica. Clifford fala da forma como o autor se faz presente no
texto. Como o autor legitima um discurso sobre a realidade. Clifford diz que se
trata do famoso “Eu estive lá”, que comprova a existência do que o pesquisador
viu, e credibiliza como verdadeiro o que ele diz.
Ora, se tratarmos a descrição de “A Alegoria da
Caverna” como um texto etnográfico, será possível fazer algumas
especulações baseadas no pensamento apresentado por James Clifford em “A
Experiência Etnográfica: antropologia e literatura no século XX”.
Primeiro, é necessário ressaltar que “A Alegoria
da Caverna” é na verdade, parte integrante do Livro VII de A República de
Platão. Esta informação é importante para discutirmos a relação entre Sócrates,
Platão e os acorrentados da caverna nesse texto, tendo como base, a
noção de autoridade etnográfica estudada por Clifford.
Platão relata em seu livro que Sócrates relata a
parábola. O relato da Alegoria da Caverna se dá na forma de um diálogo
metafórico, no qual, Sócrates tem como interlocutores, Glauco e Adimanto.
Se Platão é o autor da obra na qual aparece o
relato de Sócrates, qual seria o papel de Sócrates em relação ao relato da Alegoria?
Seria aceitável tratarmos Sócrates como informante-chave de Platão? Seria
Sócrates o autor?
Primeiro devemos situar, para efeito de estudo, o
relato da Alegoria da Caverna como descrição etnográfica.
“... a etnografia está do começo ao fim, imersa na
escrita. Esta escrita inclui, no mínimo, uma tradução da experiência para a
forma textual” (Clifford, “A Experiência Etnográfica”, p.21).
Também - a titulo de auxiliar no trabalho -
atribuiremos a Sócrates o papel de informante-chave de Platão nessa etnografia
da Sociedade dos Acorrentados da Caverna. E trataremos Platão como o
autor.
Após definirmos os papéis hipotéticos dos diversos
atores nessa nossa hipotética etnografia, nos veremos diante de algumas
questões relevantes. A saber, primeiro, Platão como pesquisador, não realizou
trabalho de campo, não visitou a caverna dos acorrentados, não conviveu
com eles. Tampouco o fez o seu informante-chave. Sócrates não esteve no meio
dos acorrentados da sua alegoria, nem se quer por imaginação.
Como na alegoria de Lafitau, citada
por Clifford na página 18 de “A Experiência Etnográfica”, o relato de
Platão também transcreve, não cria. “Seu relato é apresentado
não como um produto de observação de primeira mão, mas como o produto da
escrita em um gabinete repleto de objetos” (idem). Platão não poderá se
valer, para provar a veracidade de seu relato, do que Clifford chamou de modo
predominante e moderno de autoridade no trabalho de campo: “Você está
lá... porque eu estava lá”. E na verdade, nem Sócrates poderá fazê-lo.
Poderíamos atribuir o “etnocentrismo” presente na
narração da Alegoria da Caverna, em boa parte, à falta de trabalho de
campo. A ausência desta forma consagrada de pesquisa que teve sua hegemonia
estabelecida, segundo Clifford, nos Estados Unidos e na Inglaterra antes do que
na França e que ganhou o mundo na década de 30 de forma consensual, poderia ter
sido decisiva para a qualidade da alteridade que se observa na Alegoria
da Caverna. Uma observação participante poderia mudar tudo.
“A observação participante obriga os seus praticantes
a experimentar tanto em termos físicos quanto intelectuais as vicissitudes da
tradução [...] ela requer [...] algum grau de envolvimento direto e
conversação, e frequentemente um ‘desarranjo’ das expectativas pessoais e
culturais” (p.20).
A relação de Platão e Sócrates no tocante à Alegoria
da Caverna, aqui compreendida como uma etnografia, assemelha-se com
o que observou Clifford na página 26 de “A Experiência Etnográfica”,
sobre a distinção entre o antropólogo (o construtor de teorias gerais
sobre a humanidade) e o etnógrafo (aquele que descrevia e traduzia os
costumes) antes do final do século XIX. Muito embora, Sócrates tal qual
Malinowski, tenha de certa forma modificado essa lógica e tornado menos
distintiva essa relação. Pois Malinowski com sua tenda montada entre as casas
da aldeia de Kiriwina leva o antropólogo ao campo e ocupa o espaço antes
reservado ao etnógrafo. E Sócrates ao filosofar de forma generalizada sobre o
homem, sua relação com o conhecimento e com os outros, elaborando sobre a “sociedade”
estudada, aproxima o papel de etnógrafo do papel do antropólogo construtor
de teorias gerais sobre a humanidade.
Mas, Sócrates seria um etnógrafo, e não um
informante-chave como definimos anteriormente?
Vejamos: “Uma atitude prescrita de relativismo
cultural distinguia o pesquisador de campo de missionários, administradores e
outros, cuja visão sobre os nativos era, presumivelmente, menos imparcial”
(p.28). Sócrates não parece se enquadrar nessa descrição. E mais, para
Dilthey, citado por Clifford, “a ‘experiência’ etnográfica pode ser encarada
como a construção de um mundo comum de significados, a partir de estilos
intuitivos de sentimentos, percepção e inferências”. Grosso modo, Sócrates
não parecia estar empenhado na construção de um mundo comum com os acorrentados
da caverna. Ao contrário, o filósofo se esforçava para construir uma
diferenciação definitiva entre o seu e o mundo dos outros. Sócrates fez o que
Leenhardt, também citado por Clifford, criticou dizendo que quando abordamos o
nosso próximo usando apenas as categorias do nosso intelecto, nos escapa a
possibilidade de “esboçar uma visão dele a partir de um detalhe simbólico,
ou de um perfil, que contém um todo em si mesmo e evoca a verdadeira forma de
seu modo de ser” (p.37). Por tudo isto, decididamente, Sócrates não é um
etnógrafo. Pelo menos, não como entendia Dilthey e segundo a visão de
Leenhardt.
E a narrativa de Platão poderia em muito contribuir
para a antropologia que, segundo Clifford, desmistifica aquilo que antes passava
sem ser questionado em relação à construção de tipos, descrições, narrativas,
observações e descrições etnográficas. E que o autor tratou como “Antropologia
Interpretativa”. Afirmando ainda que “ela contribui para uma crescente
visibilidade dos processos criativos (e, num sentido amplo, poéticos) pelos
quais os objetos ‘culturais’ são inventados e tratados como significativos”
(p.39).
Outro aspecto interessante para analisarmos é a
questão da autoridade na textualização da Alegoria da Caverna. Platão é
o autor. Seria ele o detentor da autoridade? Sócrates, também não poderia
sê-lo? Talvez pudesse o filósofo, ser entendido como um “autor generalizado”,
aquele, descrito por Clifford como inventado para dar conta do mundo ou
contexto dentro do qual os textos são ficcionalmente realocados. E mesmo
que Sócrates seja visto como um desses autores “inventados” para falar pelos objetos
estudados e, dizer em seu nome, o que na verdade, eles nunca disseram. Isso
em nada altera a questão da autoridade que neste caso parece tratar-se
de uma autoridade interpretativa. E esta autoridade parece estar com Platão. E
essa questão da autoridade na Alegoria da Caverna, passa
primordialmente pelo caráter dialógico, ou não, do texto de Platão. E aqui
temos uma questão interessante. Para Clifford, a autoridade interpretativa está
baseada na exclusão do diálogo. Mas o reverso também é verdade. Para o autor, “uma
autoridade puramente dialógica reprimiria o fato inescapável da textualização”
(p.46). É importante observar o que nos diz o autor a respeito das
etnografias articuladas como encontros entre dois indivíduos. Ele diz que as
mesmas podem dramatizar o dar-e-receber intersubjetivo do trabalho de campo
introduzindo também um contraponto de vozes autorais, e mesmo assim, permanecerem
representações do diálogo. Porém, o autor observa que como textos, elas
podem não ser dialógicas em sua estrutura. No caso de Platão e da Alegoria
é mantido textualmente um diálogo que se dá entre “informantes”. Se for
possível considerar assim Sócrates, Glauco e Adimanto.
Sobre a relação de autoridade entre Sócrates e
Platão, Clifford cita as palavras de Steven Tyler (1981) “embora Sócrates
apareça como um participante descentrado em seus encontros, Platão retém o
pleno controle do diálogo” (p.46). Tal afirmação é feita por Tyler para
caracterizar certa abordagem relativa ao etnógrafo. Ele completa: “Este
deslocamento, mas não, eliminação da autoridade monológica é característico de
qualquer abordagem que retrate o etnógrafo como um personagem distinto na
narrativa do trabalho de campo” (idem).
Aqui novamente, Sócrates parece ganhar ares de
etnógrafo diante de um Platão “exclusivamente antropólogo” - como aqueles de
antes do final do século XIX - no que se refere à Alegoria da Caverna.
Porém, Crapanzano, também citado por Clifford, nos oferece um elemento novo
para levarmos em consideração. Ele reconhece que “um terceiro participante,
real ou imaginário, funciona como mediador em qualquer encontro entre dois
indivíduos” (1980: 147-1510). Se olharmos por esse viés, vamos enxergar
para Sócrates também esse papel de mediador entre Platão e os acorrentados
da caverna no contexto da Alegoria. E isto pode relativizar, ou pelo menos,
suavizar, a questão da autoridade, já que Crapanzano complementa: “Uma
maneira alternativa de representar essa complexidade discursiva é entender o
curso geral da pesquisa como uma negociação em andamento” (p.47).
Sócrates enfim, teria alguma autoridade nessa
relação.
Para resolvermos o problema da falta de um campo
para os acontecimentos da Alegoria da Caverna, já que sua “geografia” se
situa no terreno da imaginação. Assumiremos como campo, esse mesmo terreno da
imaginação. E nos restará mais um dilema. Imaginação de quem?
Na página quarenta e seis de “A Experiência
Etnográfica: antropologia e literatura no século XX”, Clifford aborda a
experiência de “Escrita Direcionada” de Rosaldo, dizendo que ela
propõe de um modo incisivo a fundamental questão: “Quem é na verdade o autor
das anotações feitas no campo?”
Mas ainda estamos tentando definir de quem é o campo.
Ou melhor, de quem é a imaginação que adotaremos como campo para nossa
hipotética etnografia. Optaremos por Platão. A sua imaginação será, devido a
ele ser o autor de “A República” livro no qual o capítulo VII traz a Alegoria
da Caverna, o campo, no qual, serão feitas as anotações. E agora
sim, poderemos tentar, responder quem é o verdadeiro autor dessas anotações.
Platão é o autor do texto “etnográfico”, Sócrates
contando com a colaboração de Glauco e Adimanto, é o informante. Mas
Sócrates é um informante que fala; que tem sua fala registrada por inteiro
juntamente com as falas de Glauco e Adimanto. As anotações no campo são feitas
por Platão, afinal é na sua imaginação que se dá toda a etnografia e é
nela também que existe inicialmente a Alegoria depois transportada para
a mente de Sócrates por seu texto. Se o campo é a imaginação; se o aceitamos
como válido para este estudo, então, tudo o que nele existir, inclusive
Sócrates no papel de intermediário tal qual concebeu Crapanzano (que talvez
seja um dos papeis que lhe cai melhor nesse contexto), e as anotações
etnográficas, são primeiramente feitos imaginariamente por Platão.
Dessa forma, reconfiguramos toda a estratégia do
nosso estudo antropológico. Ao definirmos o campo como a imaginação de
Platão, temos a possibilidade de abusar um pouco mais da nossa criatividade
imaginativa, ou da nossa imaginação criativa e caracterizar todos os demais
personagens, inclusive Sócrates, como nativos nesse campo. E feito isto,
podemos tratar Sócrates, como um misto de informante e escritor.
“As intenções dos informantes são
sobredeterminadas, suas palavras, política e metaforicamente complexas. Se
alocadas num espaço textual autônomo e transcritas de forma suficientemente
extensas, as declarações nativas fazem sentido em termos diferentes daqueles em
que o etnógrafo as tenha organizado. A etnografia é invadida pela
heteroglossia” (p. 55).
Parece-me ser este o caso do texto original da “Alegoria
da Caverna” com uma extensa transcrição dos diálogos entre Sócrates,
Adimanto e Glauco. E quem vai negar que as falas transcritas destes personagens
não se expressam de forma autônoma no texto de Platão; e que também, elas
evocam sentidos diferentes do conjunto da obra desse autor?
Platão terá cada vez mais que partilhar com
Sócrates, seu texto no referente à fictícia etnografia da Alegoria da
Caverna. Pois segundo afirma Clifford em relação aos antropólogos, estes também
terão que fazê-lo com todos aqueles colaboradores para os quais, afirma James
Clifford, o termo informante não é mais adequado (se é que algum dia
foi, indaga o autor).
É claro que essa nossa abordagem fazendo jus ao
tratamento dado por James Clifford a todas essas questões em “A Experiência
Etnográfica: antropologia e literatura no século XX”. Não deve passar de
uma opção entre todas as formas de abordagens possíveis.
“Os processos experimental, interpretativo,
dialógico e polifônico são encontrados, de forma discordante, em cada
etnografia, mas a apresentação coerente pressupõe um modo controlador de
autoridade. Um argumento é que esta imposição de coerência a um processo
textual sem controle é agora inevitavelmente uma questão de escolha
estratégica” (P. 58).
“Uma vida não questionada não merece ser vivida.”
(Platão).
Por Johnson Sales.