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sábado, 21 de dezembro de 2013

Bolivia (Uma Nação de Nações) Sob a ótica de Anibal Quijano e Alba Carvalho




Análise da Situação Social, Econômica, Cultural, Política, da Relação Estado e Sociedade e Dos Povos Indígenas durante a Primeira Década do Século XXI na Bolívia Tendo como Referência os Conceitos de Aníbal Quijano (Colonialidade do Poder, Modernidade/Colonialidade, Padrão Mundial de Poder, Classificação Social Racial) e Reflexões da Professora Alba Pinho de Carvalho.

Para o sociólogo peruano Aníbal Quijano a região que atualmente conhecemos como América Latina tem uma importância crucial na história do mundo moderno como espaço original e como tempo inaugural do período histórico e do mundo que habitamos.

Quijano aponta que, nesta região, se configuraram e se estabeleceram a “Colonialidade” e a “Globalidade” como bases fundantes e como modos formadores do novo padrão de poder que ainda hoje dirige as nossas vidas. Para o sociólogo Aníbal Quijano, é na região hoje conhecida como América Latina que teve origem o conjunto de elementos subjetivos e materiais que fundaram, para usar as suas próprias palavras, o modo de existência social que recebeu o nome de “modernidade”.

Mas o sociólogo peruano apresenta de forma muito clara e contundente a noção de que, apesar de ter sido o berço da modernidade, essa região não conseguiu usufruir de forma plena do fruto que gerou:

“Nem todas as novas potencialidades históricas atingiram seu pleno desenvolvimento na América Latina, nem o período histórico, nem a nova existência social no mundo chegaram a ser plenamente modernos. Ambos, enfim, se definiram então e se reproduzem hoje como coloniais/modernos”. (Quijano, Aníbal, 2008, Os fantasmas da América Latina, p. 50).

O pensador peruano se utiliza da história de Dom Quixote de Miguel de Cervantes para ilustrar uma situação histórica em que “O novo não acabou de nascer e o velho não acabou de morrer”. Nos mostra o autor que a relação da Europa colonialista com a América Latina colonizada se dá em meio a uma mistura de modernização e conservação de práticas já consideradas ultrapassadas ou desaconselháveis ante a “evolução” de pensamentos e formas de agir inerentes ao mundo moderno. É a partir do trabalho escravo utilizado nas colônias que se torna possível assalariar os trabalhadores europeus; é a partir da superexploração das riquezas e das gentes das colônias que se torna possível erguer a civilização europeia e o seu modo de vida moderno. Para eles, os colonizadores, o moderno. Para os colonizados, o mais atrasado e “bárbaro” dos modos de exploração e opressão. Isto é possível inferir das reflexões de Aníbal Quijano.

Quijano observa, sem surpresa, que a história da América Latina não pôde se dá em um movimento autônomo e coerente, tendo se configurado, segundo sua visão, como um labirinto tortuoso e longo, no qual, habitam problemas não resolvidos que ficam, como fantasmas, a nos assombrar.

Ao citar os “Fantasmas Históricos” que assustam a América Latina, o autor busca refletir sobre os resultados da colonização; sobre as consequências da destruição sistemática de referências culturais, políticas e sociais que permeavam e serviam de base para modos de vida muito diversos; sobre os resultados de uma superexploração e de um desenvolvimento que se deu sob o jugo dos colonizadores de forma truncada, incompleta e subalterna. Quijano acredita que a desintegração dos padrões de poder e civilização de algumas experiências históricas muito avançadas que existiam nessa região antes dos colonizadores chegarem, e o próprio extermínio físico dos viventes dessas experiências, além da forte repressão material e subjetiva dos que sobreviveram ao extermínio físico e passaram a ser obrigados a viver submetidos à colonização e à dependência, perdendo qualquer padrão livre; e ainda segundo o autor, autônomo, de objetivação de ideias, imagens e símbolos, teriam funcionado como (observação minha) “coveiro” de todo um rico modo de vida e concomitantemente como “parteira” de um novo padrão de poder, raça e dominação social global. Esse cenário seria o berço dos “fantasmas” que seguem a nos assombrar. E o novo sistema de dominação social gestado e desenvolvido nesse ambiente de destruição do padrão de vida anterior, e emergência de um novo poder dominante, teria, segundo Quijano, a ideia de raça como elemento fundante. E ainda segundo o autor peruano, raça seria a primeira categoria social da modernidade.

A ideia de raça teria sido criada, desde o inicio da colonização, para dar sentido às relações de poder entre os ibéricos e os” indígenas”, pensa Quijano. A partir da ideia de raça teria se configurado a primeira “classificação social global” da história humana. Tal “classificação social global” teria sido produzida na América e imposta ao mundo como um todo. E teria ainda, em si, elementos de todas as formas anteriores de dominação como a de gênero, e a patriarcal. Esse novo padrão de poder forjou novas identidades históricas e geoculturais que passaram a figurar como elementos básicos desse novo padrão de poder. A saber: “Brancos”, “Índios”, “Negros”, “Mestiços”.

Diante de todos esses esclarecimentos de Aníbal Quijano, fica mais fácil compreender como nasceram e porque ainda sobrevivem esses “pavorosos fantasmas” que seguem a nos atormentar e a dificultar o nosso desenvolvimento. 

Todo esse cenário de destruição de mundos e edificação de novos mundos necessitava também de outra forma de assujeitamento que lhe fosse complementar, nos ensina o autor. Uma nova forma de exploração do trabalho, de produção de mercadorias e distribuição destas pelo comércio mundial nascia a partir do novo padrão de poder. Quijano vê a origem do capitalismo moderno nessas relações e nas experiências desarrolladas como consequência desse novo padrão de dominação.

Esse pensador de origem peruana afirma que a versão eurocêntrica da modernidade omite e distorce a verdade histórica que põe a América como berço da modernidade. Modernidade esta, que, para Quijano, não teria sido possível sem os resultados da Colonialidade do Poder levada a termos na América.

Essa breve visita ao texto “Os fantasmas da América Latina” de Aníbal Quijano nos possibilita perceber conexões entre as análises deste autor e a produção teórica da professora Alba Maria Pinho de Carvalho da Universidade Federal do Ceará em dois textos seus. O primeiro texto é “Transformações do Estado na América Latina em tempos de Ajuste e resistências: Governos de esquerda em busca de alternativas”. E o segundo texto dessa autora é “Políticas Públicas e o dilema de enfrentamento das desigualdades: Um olhar crítico sobre a América Latina no século XXI”. 

Esses dois textos apresentados a mim pelo Uribam Xavier fornecem importantes ‘chaves de análises’ para estudar a realidade de qualquer país latino-americano na atualidade. 

Optei por estudar a Bolívia a partir dos conceitos e percepções trabalhados pela professora Alba Maria Pinho e pelo intelectual peruano Aníbal Quijano e tendo também como referência importantes contribuições do professor Uribam Xavier. 

Um índio no poder! Ou, pelo menos no Governo.

O primeiro presidente latino-americano eleito a fazer a sua primeira viagem internacional para Cuba foi Evo Morales da Bolívia. Logo em seguida rumou para a Venezuela de Hugo Chávez. Só isso já aponta para um posicionamento político e ideológico delineado pelos contornos de esquerda. Porém, o mais emblemático na eleição de Evo Morales talvez seja a sua origem étnica e “racial”. É que Evo é um daqueles indivíduos que a Colonialidade convencionou chamar de “Índio”.


“A classificação racial, uma vez que se assentava num puro produto mental, sem nada em comum com nada no universo material, não seria nem sequer imaginável fora da violência da dominação colonial.” (Quijano, Aníbal, Os fantasmas da América Latina, p.66).


Um “índio” no poder! Ou pelo menos, no Governo. Um “índio” de esquerda?

A professora Alba Maria Pinho de Carvalho na introdução de “Transformações do Estado na América Latina em tempos de Ajuste e resistências: Governos de esquerda em busca de alternativas”, após contextualizar e ressaltar a característica de militarização das potências hegemônicas na primeira metade dos anos 2000; e falar sobre a “virada à esquerda” na América Latina pela via da democracia representativa, indaga: Qual a demarcação definidora de um governo de esquerda na América Latina neste cenário do século XXI? 

Evo Morales conseguiu em seu país estender o alcance da documentação legal para todos os cidadãos bolivianos. Até então muitos deles (pobres) não possuíam documentação legal. 

A Bolívia passou, com Evo Morales como presidente, a trocar alimentos por diesel com a Venezuela de Chávez, numa transação econômica sem o envolvimento direto do dinheiro.

Evo impôs às empresas petrolíferas estrangeiras como a brasileira Petrobrás e a espanhola Repsol uma nova lei de hidrocarburetos e terminou por nacionalizar os campos de petróleo e gás natural e as refinarias.

Tais ações bastariam, ou estariam pelo menos alinhadas com a demarcação definidora de um governo de esquerda na América Latina do século XXI como investiga a professora Alba Carvalho?

Morales assumiu o governo afirmando que sairia do modelo neoliberal e foi o único no mundo a dizer isso. E deu inicio ao seu governo com um plano no qual, o Estado cumpre um papel fundamentalmente intervencionista.

Alba Carvalho em suas reflexões no mesmo texto acima citado investiga sobre as possibilidades de um governo latino-americano situado no campo “da esquerda” com maior ou com menor radicalidade construir alternativas às estratégias de dominação da nova ordem do capital que subordina e promove a inserção dependente das nações. E tal preocupação nos toma por completo diante das palavras do vice-presidente da Bolívia, o intelectual Álvaro Garcia Linera:

 "Olhando para o futuro, temos a decisão, a vontade de construir um Estado forte, sólido, do qual nos sintamos orgulhosos, estejamos onde estivermos. Tem que haver um Estado forte na economia, para que não apenas sejam o mercado e a livre competição que distribuam os recursos. Tem que haver um Estado forte que priorize o que é necessário para a pátria, que proteja a todos, mas fundamentalmente aos mais vulneráveis, aos mais esquecidos, que a maioria do nosso país e que hoje, com um Estado forte no plano econômico, encontrarão melhores opções para o desenvolvimento."
"Não queremos nunca mais um Estado sem povos indígenas. O Estado de todos; de mestiços e indígenas, de profissionais e trabalhadores, de camponeses e estudantes. Queremos um Estado multicultural, em que os distintos povos, os distintos idiomas, as distintas cores valham igual: que valham igual um vestido e uma saia, um poncho e uma gravata, uma cor de pele mais clara e uma mais escura."
"A luta pelo poder gerou muitos conflitos, muitos mortos, muitos feridos e muitos danos. No entanto, este 18 de dezembro o povo foi muito claro. O empate catastrófico - entre os setores conservadores e os sociais - foi resolvido de forma inapelável. As pessoas, o povo, o cidadão do oriente e do ocidente, do norte e do sul, do campo e da cidade, empresários, profissionais, indígenas, camponeses, operários, cooperativistas e comerciantes optaram pela mudança."
"Compete agora aos povos indígenas, ao mais nobre, ao mais verdadeiro da nossa pátria, a seus trabalhadores, a sua gente empobrecida e à gente simples, ocupar o mando da nação e conduzir-nos por um caminho de bem-estar, por um caminha de unidade e de integração nacional.” (http://www.historianet.com.br/conteudo/default. aspx?codigo=798).

A Colonialidade do Poder parece aqui, frontalmente encarada. As palavras do vice-presidente boliviano parecem mais como um “grito de guerra” direcionado claramente contra o sistema Modernidade/Colonialidade.

O discurso-manifesto de Álvaro Garcia Linera encontraria depois, uma leitura marcada por certa confirmação de que as coisas pareciam seguir uma práxis transformadora. A professora Alba Carvalho escreveria: “É justamente, nesta perspectiva de garantia dos direitos, na busca de encarnar a utopia democrática, que vem se efetivando a ‘revolução distributiva’ na Bolívia e na Venezuela”. (Carvalho, Alba, 2010).

O presidente da Bolívia Evo Morales entregou o comando do combate ao narcotráfico no seu país a um “cocaleiro” (produtor de coca) reafirmando assim, uma vez mais, o seu compromisso com as raízes históricas, culturais e econômicas do seu povo. Tal ação dá visibilidade para a questão do cultivo da coca na Bolívia. Prática milenar que incompreendida pelo restante do mundo, tende a ser vista como crime ou como ilegalidade. Mas que na verdade é uma prática cultural e econômica enraizada na história do povo andino.

A professora Alba Carvalho em ‘Poder e Políticas Públicas na América Latina’ demarca como referência analítica a especificidade das formas de regulação social a partir do reconhecimento tardio de direitos sociais nos processos que envolvem a democratização e os enfrentamentos aos impactos das politicas neoliberais que causam o que ela chama de “privilegiamento do mercado e destituição da política”.

Olhando a Bolívia de Evo Morales por esta lente analítica que nos disponibiliza a professora Alba Carvalho, nos parece, num primeiro olhar, que este país estaria envolvido num esforço “insurgente” contra a onda neoliberal e contra todos os destroços que ela deixou pelo caminho na América Latina e em especial no seu território. A inversão de prioridades é evidente nas ações do governo “indígena” de Evo Morales. A situação dos “índios” é significativamente alterada, principalmente no campo simbólico. Agora eles têm um representante no comando do país, seus traços culturais e históricos passam a ser amplamente visibilizados por todo o mundo; seus direitos políticos e sociais experimentam um “salto de qualidade” histórico impensado até então; seus valores e crenças passam a exercer forte influência nos caminhos que a Bolívia e também outros territórios e nações da América Latina trilharão ao longo desse período histórico e possivelmente no futuro.

A trajetória de Evo Morales à frente do governo boliviano é marcada por grandes enfrentamentos. Primeiramente contra os interesses dos herdeiros da “Colonialidade” que não se conformam em ver os seus privilégios e o seu padrão de poder global ameaçado pela visão cosmológica do governo “indígena”. 

Estaria sob forte risco, pois estaria sendo desmascarado, o que a professora Alba Carvalho identificou como um padrão de dominação abstrata e polifacetada e que se apresenta como indefinida, não permitindo que se veja quem é o dominador e quem é o dominado. Tal ‘poder simbólico’ (para citar um termo característico do sociólogo francês Pierre Félix Bourdieu) seria permanentemente confrontado pelas ações do governo de Evo que ao inverter prioridades e apoiar-se na força politica dos “indígenas”, dos trabalhadores e dos mais pobres, conduziria o governo a choques permanentes contra o capital global. E assim faria com que grandes contingentes da população boliviana fosse vendo a partir dos choques de interesses, as contradições do sistema “Modernidade/Colonialidade”. A “classificação social racial” finalmente encontraria sua rebelião mais concreta e incisiva desde que foi forjada pelos colonizadores. E é emblemático que tal insurgência fosse conduzida por um índio latino-americano e boliviano.

 Estas formas de dominação abstrata apropriam-se de ‘corações e mentes’ dos trabalhadores, alienando sua subjetividade, transformando sujeitos em objetos. (Alba Cavalcante, 2010, P.176).


Houve um tempo em que mineiros e camponeses bolivianos se uniram num movimento revolucionário para lutar por reforma agrária, nacionalização das minas e formação de uma democracia radical de massas, afirmam Mônica Bruckmann e Theotonio dos Santos no texto ‘Os Movimentos Sociais na América Latina: Um Balanço Histórico’. Mas havia diferença entre eles e isso, possivelmente facilitou a contra-revolução, afirmam os mesmos autores. Os mineiros acreditavam na propriedade coletiva em se falando de reforma agrária, e os outros, defendiam a pequena propriedade rural. Os mineiros talvez conservassem mais dos valores indígenas do que os camponeses. A propriedade privada tem mais a ver com o pensamento e com a forma de dominação colonizadora do que com os modos de vida do povo originariamente existente na América Latina, nos ensina o pensamento e os estudos de Aníbal Quijano e Alba Maria Pinho de Carvalho.


Segundo o professor Uribam Xavier, os valores indígenas, sua relação com a terra e com a natureza e sua forma de ver as riquezas materiais do homem branco podem chocar-se diretamente com o capitalismo. Xavier ilustra essa percepção com o exemplo de povos nativos que se recusaram a permitir a extração de petróleo das suas terras, preferindo a tranquilidade e o seu modo de vida à abundância de recursos materiais e consumo oferecidas pelo capitalismo. Também nos informa o professor que a Bolívia teria adotou em sua constituição direitos relativos à terra, fazendo da terra um ser agora dotado de direitos. Xavier nos faz ver o impacto dessa decisão nos interesses do capitalismo global e na vida dos bolivianos e todos os povos do mundo que, agora conhecedores dessa possibilidade, no mínimo podem imaginar outras formas de se lidar com a natureza e com a própria humanidade.

Esses exemplos bolivianos poderão atingir grandes níveis de sensibilização e inspiração quando conhecidos e assimilados pelo movimento social ao redor do planeta e principalmente na América Latina.

Os Movimentos Sociais da América Latina começam a assimilar novas formas de luta e novos valores em suas práticas reivindicatórias e de resistência. Desde Seattle, em 1999, dos encontros do Fórum Social Mundial no Brasil, em Porto Alegre; e das grandes manifestações que ocorreram pelo mundo, afirmam Mônica Bruckmann e Theotonio dos Santos, estaria se firmando uma nova postura também ofensiva, além de defensiva por parte dos Movimentos Sociais. Os Movimentos Sociais estariam muito mais propositivos e focados cada vez mais no humano em detrimento das técnicas e tecnologias, do capital e dos limites do estado burguês.

 “Várias são as manifestações concretas da nova proposta que deverá substituir a barbárie intelectual do pensamento único neoliberal e que incorporará a região a uma nova realidade política e ideológica. Essa nova proposta expõe ao debate as grandes questões do destino da humanidade, e os movimentos sociais representarão o terreno fértil em que brotarão as soluções cada vez mais radicais, pois são as raízes que estarão em jogo: A desigualdade social, a pobreza, o autoritarismo, a exploração. Toda essa agenda estará de novo na arena da história”. (Bruckmann, Mônica, e dos Santos, Theotonio, p.200).


Segundo os autores Mônica Bruckmann e Theotonio dos Santos, essa nova proposta que toma conta dos Movimentos Sociais latino-americanos articula partes da agenda e das lutas e bandeiras dos anos 60 e 70 buscando adaptá-las ás novas condições da economia mundial.

Essa nova postura dos Movimentos Sociais Latino-americanos pode ajudar a compreender o segundo tipo de dificuldades que o governo Evo Morales teve que enfrentar. O próprio povo que viu seu modo de vida e os seus direitos passarem a figurar como prioridades na agenda do Governo de Evo Morales, também entendeu que o próprio governo estava em disputa; teria que ser pressionado para não recuar, para não sucumbir ante a pressão da ‘Colonialidade/Modernidade’. E Evo Morales passou a conviver com a pressão do povo e com a pressão do capital global, tendo que articular-se em meio ao fogo cruzado. Afinal, um capitalismo vivendo, segundo a professora Alba Carvalho - que cita na página 178 do livro Poder e Políticas Públicas na América Latina (2010), o filósofo húngaro István Mézáros (2002) - uma crise estrutural, não pode perder sem reação, todo um mercado e inúmeros “ativos” em território boliviano. A questão é que um povo vivendo entre a destruição gradual do modo de vida “indígena” e, um futuro desalentador, como potenciais “precariados” (para também fazer referência a um conceito muito utilizado pela professora Alba Carvalho) compreendeu que também não pode permitir um recuo do governo ou capitulação deste diante das pressões e da ofensiva do capital global. 

Essa correlação de forças medida a cada instante politico do cenário da Bolívia sob o governo de Evo Morales pode nos aproximar da resposta para a primeira pergunta feita pela professora e pensadora Alba Carvalho, sobre qual a demarcação definidora de um governo de esquerda - nesse contexto por ela citado - da América Latina no inicio do século XXI? 

Talvez a resposta esteja associada a algum tipo de percepção de um governo sob intensa pressão, com maior afinidade e predisposição a trilhar uma “Virada à esquerda” e a se apoiar no povo e nas massas mais dispostas a lutar, para correr e vencer os riscos, aos quais, essa opção política e ideológica lhe expõe. 

Mas por outro lado aprofunda as nossas dúvidas e o nosso desejo de encontrar respostas, para a segunda, e mais difícil, indagação que a mesma pensadora nos apresentou: “Quais as possibilidades de governos latino-americanos situados no campo da esquerda, com maior ou menor radicalidade, construírem alternativas às estratégias de domínio, consubstanciadas nas politicas de inserção subordinada e dependente à nova ordem do capital?”


A Bolívia parece esforçada em buscar essas respostas. E se as encontrar, talvez comece a preparar as condições que necessitamos para iniciar finalmente a caça a esses “fantasmas” que historicamente têm assombrado a América Latina. E então, talvez possamos pensar em adentrar mais profundamente esse mundo que mesmo aparentando tão perto, mantém-se distante da nossa compreensão e interação.


A professora Alba Maria Pinho de carvalho ao tratar do que caracteriza como uma novidade posta pela América Latina para o Mundo, fala da “Virada à esquerda” como perspectiva de refundação pluricultural e multisocietal de Estados multinacionais comunitários. A estudiosa diz que analisar essas possibilidades, implica em se esforçar para compreender como e com que pressão e intensidade os movimentos sociais interpelam o estado com o objetivo de redefinição das políticas públicas no sentido de afirmar direitos de minorias e reconhecer direitos de maiorias expropriadas no âmbito da exclusão, discriminação e opressão.  

Bolívia: Uma nação de Nações.

O presidente boliviano Evo Morales apoiou a institucionalização da Bolívia como "Estado Plurinacional", "intercultural", repartido em "comunidades" descentralizadas e autônomas. Essa formação foi apresentada pelo vice-presidente García Linera como "uma nação de nações".

No Brasil, o deputado federal Aldo Rebelo (PC do B-SP) resolveu comentar as dificuldades enfrentadas pela nova conformação institucional da Bolívia e escreveu:

“Querem conservar o saber e a cosmogonia dos povos originários não a par, respeitados como devem ser, mas em protagonismo hostil ao desenvolvimento das forças produtivas. O progresso não é aceito como caminho para outras formas avançadas de organização política da sociedade. Negam a integração nacional, a superação da pobreza pelo desenvolvimento, a modernização do campo semifeudal e a industrialização das cidades. Tudo o que não é autóctone se transfigura em miragem do Ocidente decadente, em confronto com o brilho remoto do Império Inca.” (http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-impasse--boliviano-,787352,0.htm).


De certa forma é possível ver em algumas falas como essa do deputado do PC do B sobre a Bolívia e sua “nação de nações” traços do que a professora Alba Carvalho trata como a hibridização das novas formas do domínio do capital com as formas da opressão da colonialidade do poder, a impor modos de vida, formas de sociabilidade e universos simbólicos. De fato, o deputado foi além e completou:

“Tal como lá, aqui o Estado também perde a soberania para dispor do território. Já tropeçamos nos conceitos de povos e nações indígenas, garantindo-lhes extensas áreas para usufruto exclusivo em zonas de fronteira, como as reservas dos ianomâmis e a de Raposa-Serra do Sol, na Amazônia. Já não é fácil asfaltar uma estrada ou construir hidrelétricas - obras de valor nacional satanizadas como violadoras da mãe natureza e da pureza dos povos originários.” (idem).

O citado deputado autoreferencia-se como “de esquerda”. E recorro de novo ao texto da professora Alba Carvalho para lembrar a conceituação do que seria “esquerda” - utilizada por ela em sua obra – de Boaventura de Sousa Santos:

Esquerda é o conjunto de teorias e práticas transformadoras que, ao longo dos últimos cento e cinquenta anos, resistiram à expansão do capitalismo e ao tipo de relações econômicas, sociais, políticas e culturais que ele gera, e que assim procederam na crença da possibilidade de um futuro pós-capitalista, de uma sociedade alternativa, mais justa, porque orientada para a satisfação das necessidades reais das populações, e mais livre, porque centrada na realização das condições do efetivo exercício da liberdade.” (Santos, 2009).

Diante disso, compreendo mais a inquietação de intelectuais como o professor Uribam Xavier em relação às contradições das ditas “esquerdas”, e apreendo melhor o sentido da afirmação da professora Alba Carvalho quando a mesma afirma que a seu ver, a “pedra de toque” é a potência da política, em meio aos processos destrutivos da expansão capitalista consolidados no processo latino-americano, nesses processos de ajuste e implantação das políticas neoliberais. A autora questiona as possibilidades e a capacidade do campo político de dar sentido “como solo” e “como meio” através do qual se possa aprofundar e realizar a disputa democrática.


Referências bibliográficas
·         Sousa, Fernando, Poder e Politicas Públicas na América Latina. Edições UFC, 2010;
·         Carleial, Adelita, fortaleza, edições UFC, edições UECE, UNAM, 2006;


Por Johnson Sales.