Claudia Salgado, 28 anos, gerente de varejo, fala de forma
corajosa sobre a ilegalidade do aborto e suas consequências absurdas. Um
viés humano e sincero nesse momento em que se debate o projeto de lei do nascituro.
Minha mãe tinha 18 anos na época em que foi estuprada. Ela não foi a
única que sofreu este tipo de violência na família: tenho uma tia que
também foi humilhada e estuprada por mais de um homem, mas não teve
frutos disso, a não ser o trauma e a vida quebrada.
Somos de uma cidade muito pequena no interior de Santa Catarina. Ela
havia saído com minha tia para dançar em uma matinê e, quando voltou
para casa, sofreu agressão física muito brutal do avô, que era militar e
muito rigído com regras e com relação às filhas saírem de casa. A
família era muito grande – eram 5 filhas no total – e havia muita
preocupação com relação as filhas ficarem mal faladas.
Estou abrindo isso para mostrar como ignorância só gera ignorância.
Meu avô não é má pessoa, mas ele era alcoólatra e muito severo com as
meninas.
Minha mãe ficou desesperada depois da surra que tomou e decidiu fugir
de casa com minha tia. As duas estavam muito machucadas e vulneráveis e
se sentaram desoladas nas escadarias da Catedral no centro da cidade,
onde estes dois homens se aproximaram de forma amigável e ofereceram
amparo.
Elas inocentemente aceitaram e foram passar a noite na casa
deles, onde haviam mais homens. Foi quando toda a violência física
ocorreu. Minha tia era mais forte e conseguiu fugir, mas minha mãe não
conseguiu e foi violentada por mais de um homem. Somos tão parecidas
fisicamente que ela mesmo lamenta o fato de nem sequer saber qual deles é
meu pai.
Naquela época as coisas não eram bem explicadas – em sua maioria,
eram omitidas. Minha mãe não contou a ninguém o ocorrido, pois, além da
vergonha, ela ainda se sentia mortificada de medo de que não
acreditassem nela. Ela era tão inocente que nem sabia que estava
grávida, nem foi atrás de justiça, apenas se fechou. E quando a barriga
ficou impossível de disfarçar, ela não pôde mais negar e outra vez
passou por mais humilhação. Teve que sair de casa às pressas, pois meu
avô queria matá-la. Eu não acho que, para ela, seguir a gravidez foi uma
escolha, ela não entendia o que estava acontecendo e só teve essa
opção.
Essa história afetou minha vida e a relação com a minha mãe por
muitas razões. Ela não tinha a menor estrutura emocional de ter um filho
sob aquelas condições e naquela idade. E eu nunca me senti desejada.
Minha infância ficou quebrada e minha vida, incompleta. Só soube dessa
história quando tinha 11 anos. Até então, ela dizia que meu pai havia
morrido num acidente enquanto ela estava grávida, o que eu sempre achei
estranho, pois nunca havia visto uma foto ou algum registro de que ele
realmente existira.
Minha infância ficou incompleta porque me faltou a figura paterna,
minha mãe era instável emocionalmente, me senti enganada e não consegui
assimilar quando ela me contou a minha origem. Me sentia humilhada
quando via minhas amigas com seus pais num lar ajustado.
Sentia raiva da minha mãe porque ela me teve sem ter me desejado,
embora existisse o respeito por saber que ela nunca deixou nada me
faltar e sempre fez o possível para que eu crescesse com dignidade,
tivesse uma boa educação e nada me faltasse.
Sempre tive o sentimento de que ela se importava comigo, mas não me
amava… E até hoje tenho este sentimento, mas hoje é mais compreensível
porque, com o tempo, adquiri maturidade para entender o quanto isso foi
danoso e o quanto deve ter sido difícil para ela ter que conviver com o
fantasma de um ato bárbaro. É muito difícil lidar com a dor da rejeição,
ela nos deixa realmente miseráveis… E mesmo que você tente se agarrar a
seu orgulho, esbravejar que está tudo bem e ser indiferente a situação,
não tem como: aquilo está ali, é a realidade da sua vida e você precisa
aceitar.
Acho que nesse caso é visível que a ignorância gerou tudo isso. Se
ela tivesse mais abertura em casa e direito de expressão, mais
compreensão da parte dos pais, nada disso teria acontecido.
Não sei se cabe dizer que ela poderia ter escolhido interromper a
gravidez, pois acredito que ela nem se quer sabia que isso era possível
naquela altura. E também sei que no fundo ela não se arrependeu, porque
não fui uma filha ruim e nunca dei trabalho ou fiz algo que pudesse
fazer com que ela se arrependesse de eu ter nascido. Pelo contrário,
minha chegada na família foi recebida com muito amor, inclusive meu avô
aceitou e foi um pai para mim. Quem me criou foram meus avós, minha mãe
teve mais um papel de provedora, pois sempre trabalhou muito para
garantir que nada me faltasse.
Acho apenas que ela deveria ter se empenhado mais em achar estes
bandidos, mas, ao mesmo tempo, acredito que ela estava muito fragilizada
naquele momento e não tinha condições de lutar por nada além da nossa
sobrevivência. E devo confessar que sou uma pessoa de sorte, pois não
tive um pré-natal e nasci muito saudável.
O PROJETO DE LEI DO NASCITURO
Acho esse projeto de lei um grande equívoco. Acredito que as mulheres
deveriam ter suporte financeiro e emocional do governo para tomarem a
decisão que melhor fosse conveniente a elas, especialmente num caso de
estupro, em que deveria ser totalmente amparada e ter o direito de
escolha de continuar ou interromper a gravidez. Não se trata apenas de
receber uma esmola do governo, vai muito além disso…
A FAVOR DO ABORTO
Por ser fruto de um estupro, me sinto até mesmo no
direito moral de ser a favor do aborto. Eu sei o quanto foi horrível e
quantas vezes desejei não ter nascido, pois acredito que a vida da minha
mãe teria sido muito melhor se isso não tivesse acontecido. Ela teria
tido mais tempo para concluir os estudos, fazer coisas que uma jovem da
idade dela faria se não tivesse um filho nos braços. Ela não teria
passado pela dor da reprovação, pela humilhação que passou e teria muito
mais chance de ter formado uma família e ter um lar ajustado. Demorou
muitos anos até que ela conseguisse (eu já era adolescente quando ela
conheceu uma pessoa, com qual ela já está há 12 anos e tem outra filha).
Ela também acabou de se formar em Direito, aos 47 anos de idade. Acho
muito mais digno interromper uma gravidez indesejada do que colocar uma
criança no mundo para sofrer e passar necessidades.
Eu fiquei extremamente sequelada, e não sinto a menor vontade de ser
mãe. Não acredito que poderei ser boa o suficiente. Me sinto
extremamente insegura e tenho muita resistência ao assunto. Sempre digo
que só terei um filho se algum dia estiver em uma relação estável com
alguém que queira muito, que me passe essa segurança.
O QUE PODEMOS FAZER
Eu acho que falta promover a igualdade, no sentido de que nós,
mulheres, tenhamos autonomia sobre nossos próprios corpos e que possamos
decidir por nós mesmas como ter um filho afetará nossas vidas e a da
criança inocente. Sem interferência de religião, a mulher necessita ter
esse direito e centros de apoio moral e psicológico. Vamos supor que
homens pudessem engravidar, vocês acham que o aborto já não estaria
legalizado?
Leis como essa são criadas, pois vivemos num mundo cheio de pessoas
ignorantes e incapazes de pensar no dano que um estupro causa à história
de uma pessoa.
Devemos promover discussões saudáveis e positivas sobre o assunto em
um aspecto geral, derrubar dogmas e aumentar a consciência de um assunto
que é importante na vida de muitas pessoas. Trabalhar com comunidades
locais oferecendo suporte psicológico, oferecer uma plataforma neutra
onde a mulher tenha espaço, sem ser julgada, e analisar
realisticamente os prós e contras da gravidez. E que a mulher possa
fazer sua própria decisão.
Publicado no Olga, “think tank” de Juliana de Faria
Revista Forun.