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terça-feira, 4 de março de 2014

Diante de um aparente "djavú das trevas" estou relendo Michel Foucault





O pensador francês Michel Foucault em seu livro “Vigiar e Punir: nascimento da prisão” faz um apavorante relato de práticas de tortura, mutilações e assassinatos empregados como punição de crimes. Alguém que tenha acesso e leia essa obra, se guardar em seu íntimo qualquer humanismo e ou sensibilidade mais aguçada, não deixará de se chocar. E pensará no quanto é bom que toda essa maldade tenha sido superada por uma lei e uma justiça mais “civilizadas” e humanizadas. Foucault trata do “suplicio”: 

“Forma de penalidade que incide diretamente sobre o corpo do condenado. Através dele, a aplicação da pena pode apresentar algumas finalidades: retirar pela dor alguma verdade escondida; expor para a apreciação pública o sofrimento daquele que cometeu um ato contra a ordem legal, para que sirva de exemplo; demonstrar à sociedade um excesso de poder do soberano, assim, reconstituir o verdadeiro poder, a verdadeira ordem suspensa na ação criminosa.” (Foucault, 1987).

Como um horrendo espetáculo público: Assim se manifestava a prática do suplicio sob o olhar apavorado, curioso e fascinado da multidão. 

“... Os cavalos deram uma arrancada, puxando cada qual um membro em linha reta, cada cavalo segurado por um carrasco. Um quarto de hora mais tarde, a mesma cerimônia, e enfim, após várias tentativas, foi necessário fazer os cavalos puxar da seguinte forma: os do braço direito à cabeça, os das coxas voltando para o lado dos braços, fazendo-lhe romper os braços nas juntas Esses arrancos foram repetidos várias vezes, sem resultado. Ele levantava a cabeça e se olhava. Foi necessário colocar dois cavalos, diante das atrelados às coxas, totalizando seis cavalos. Mas sem resultado algum. Enfim o carrasco Samson foi dizer ao senhor Le Breton que não havia meio nem esperança de se conseguir e lhe disse que perguntasse às autoridades se desejavam que ele fosse cortado em pedaços. O senhor Le Breton, de volta da cidade, deu ordem que se fizessem novos esforços, o que foi feito; mas os cavalos empacaram e um dos atrelados às coxas caiu na laje. Tendo voltado os confessores, falaram-lhe outra vez. Dizia-lhes ele (ouvi-o falar). “Beijem-me. reverendos”. O senhor cura de Saint-Paul não teve coragem, mas o de Marsilly passou por baixo da corda do braço esquerdo e beijou-o na testa. Os carrascos se reuniram, e Damiens dizia-lhes que não blasfemassem, que cumprissem seu oficio, pois não lhes queria mal por isso; rogava-lhes que orassem a Deus por ele e recomendava ao cura de Saint-Paul que rezasse por ele na primeira missa. Depois de duas ou três tentativas, o carrasco Samson e o que lhe havia atenazado tiraram cada qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas na junção com o tronco do corpo; os quatro cavalos, colocando toda força, levaram-lhe as duas coxas de arrasto, isto é: a do lado direito por primeiro, e depois a outra; a seguir fizeram o mesmo com os braços, com as espáduas e axilas e as quatro partes; foi preciso cortar as carnes até quase aos ossos; os cavalos, puxando com toda força, arrebataram-lhe o braço direito primeiro e depois o outro. Uma vez retiradas essas quatro partes, desceram os confessores para lhe falar, mas o carrasco informou-lhes que ele estava morto, embora, na verdade, eu visse que o homem se agitava, mexendo o maxilar inferior como se falasse. Um dos carrascos chegou mesmo a dizer pouco depois que, assim que eles levantaram o tronco para o lançar na fogueira, ele ainda estava vivo. Os quatro membros, uma vez soltos das cordas dos cavalos, foram lançados numa fogueira preparada no local sito em linha reta do patíbulo, depois o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos de lenha, e se pôs fogo à palha ajuntada a essa lenha (...) em cumprimento da sentença, tudo foi reduzido a cinzas. O último pedaço encontrado nas brasas só acabou de se consumir às dez e meia da noite. Os pedaços de carne e o tronco permaneceram cerca de quatro horas ardendo...” (Foucault, 1987).

Segundo Foucault (1987), esse tipo de castigo desaparece no inicio do século XIX. 

“O grande espetáculo da punição física: o corpo supliciado é escamoteado; exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos na época da sobriedade punitiva. Podemos considerar o desaparecimento dos suplícios como um objetivo mais ou menos alcançado, no período compreendido entre 1830 e 1848.” (Foucault, 1987).

E de fato, é claro que esse tipo de penitência não figura atualmente no nosso código penal. Mas nos últimos dias, diante dos noticiários envolvendo os chamados “justiceiros” que saíram pelas ruas das cidades brasileiras prendendo suspeitos a postes, e pondo um acusado amarrado sobre um formigueiro. Tudo isso sob aplausos de vozes conservadoras; e com o explícito apoio de “âncoras” de telejornais. Então, passei a refletir sobre a necessidade de reler Foucault. O pensador francês talvez possa nos ajudar a compreender esse aparente djavú das trevas.
 
O cenário é preocupante. Programas de televisão execram publicamente acusados de crimes; e promovem uma midiática apologia aos linchamentos. Pessoas envolvidas por uma enorme sensação de insegurança - oriunda em grande parte, dessa espetacularização da violência - exigem penas mais duras para os “desviantes” independentemente das causas ou circunstâncias sociais que os levem a praticar os crimes; gente pacata e tradicionalmente tolerante passa a aceitar com maior facilidade o desrespeito aos direitos humanos de pessoas envolvidas com delitos. Até a nefasta e injustificável redução da maioridade penal consegue adeptos entre pessoas aparentemente esclarecidas e sensatas. Dai para uma defesa da pena de morte, pode ser questão de tempo, comoção e ou oportunidade! 

Tenho me dedicado a reler Michel Foucault e cada vez mais, vou encontrando relações, coincidências, sinergias e hipertextos ligando a sua obra a nossa realidade atual. História da Loucura; História da Sexualidade; Vigiar e Punir vão oferecendo chaves importantes para examinar cuidadosamente o que chega a se apresentar como certo saudosismo sádico que aponta para uma reedição dos “suplícios”. E o pior de tudo, uma versão moderna, midiática, high-tech que parece contar com público disposto a oferecer audiência crescente a esses “espetáculos”. 

Estou lendo e recomendo Michel Foucault!

Por Johnson Sales