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terça-feira, 21 de abril de 2020

CORONA CRÔNICAS: DELILLO


Gotículas entravam pela janela e respingavam levemente sobre a página cento e vinte e sete de Ruído Branco.  O romance de Don Delillo que usa como pano de fundo um acidente industrial de grandes proporções para abordar interdependência e a relação entre o indivíduo e a comunidade, corrobora, em certo nível, o momento atual em que uma pandemia varre a paciência e estremece a esperança em um pais dividido entre a solidariedade e o egoísmo.

Choveu a madrugada inteira, relâmpagos e trovões assustavam os gatos, mas Thomas, o gato adulto, encontrou refúgio sobre uma tela na altura do forro e por lá ficou a noite inteira. Isso me fez pensar na relação entre os animais e a natureza nesses tempos modernos e urbanos em demasia.
Tempo frio já incentiva a reflexão, tempo frio em isolamento social a torna quase inevitável. Gatos, chuva, indivíduos, comunidade, relâmpagos e trovões parecem se completar para formar o caos particular que emerge da minha mente durante a quarentena recomendada pela Organização Mundial da Saúde, adotada pelo governo estadual e odiada pelos capitalistas insensíveis e por aqueles que politizam a doença e a morte de milhares de pessoas. Esses são tempos de ferro e ferrugem.  

Uma xícara de cevada adoçada com mel natural aquece a manhã e me faz pausar a leitura, justamente quando Babette, lá pela página cento e sessenta e um, se mostrava assustada com o avanço da ciência que podia até usar micróbios desenvolvidos em laboratório para devorar nuvens tóxicas. Quanto maior o avanço da ciência, mais primitivo o medo das pessoas, sentencia Delillo.

O Corona vírus seria um vírus desenvolvido em laboratório e deliberadamente solto no mundo para instalar o caos e beneficiar a China, diziam alguns. Outros acreditavam que os Estados Unidos da América, e não o gigante asiático, seria o culpado pela pandemia. E havia ainda os que negavam a existência do vírus a despeito das milhares de mortes e milhões de infecções pelo mundo.

Atos de solidariedade e oportunismo se misturavam e se multiplicavam com pessoas colhendo doações, preparando cestas básicas e distribuindo; outros se oferecendo para fazer as compras de quem estava no grupo de risco e não podia deixar o isolamento; artistas fazendo transmissões ao vivo pela internet para arrecadar fundos para os necessitados e também para divulgar marcas e faturar num período em que os shows estavam suspensos; lideranças religiosas oferecendo orações e pedindo dinheiro. Surgiu até uma pastora cobrando o dízimo sobre a ajuda financeira emergencial dada pelo governo aos mais pobres. Segundo ela, foi Deus que mandou o presidente disponibilizar o dinheiro, portanto, nada mais justo que os fiéis repassarem dez por cento disso para a igreja. Nada demais, apenas os humanos sendo cada vez mais... Humanos.

Minha filosofia de quarentena foi interrompida por batidas no portão, tive que ir abrir para a minha cunhada que chegava carregada de sacolas do mercantil e paramentada com máscara e luvas trazendo ainda um jornal do dia, onde se podia acompanhar as últimas notícias da pandemia e do caos político, sanitário e institucional no qual se encontrava mergulhado o pais.

Não pude deixar de relacionar esse momento com a forma com que Don Delillo encerra o Ruído Branco, constatando, na fila de um supermercado, que tudo o que precisamos, fora o amor e o alimento, se encontra ali, nas páginas dos tabloides. No nosso caso, acrescentaria a internet, as redes sociais e as lives.

No mais, o dia segue frio, a leitura agradável, e a anormalidade se torna cada vez mais normal. São doze horas e quarenta e oito minutos de uma terça feira, vinte e um de abril, de dois mil e vinte. E o planeta Terra vive uma pandeia que expõe o que há de pior e de melhor na espécie humana que, tal qual o Corona vírus, se espalha dificultando a respiração do planeta.


Don Johnson de Sales.