O
pensador francês Michel Foucault em seu livro “Vigiar e Punir: nascimento da
prisão” faz um apavorante relato de práticas de tortura, mutilações e
assassinatos empregados como punição de crimes. Alguém que tenha acesso e leia
essa obra, se guardar em seu íntimo qualquer humanismo e ou sensibilidade mais aguçada,
não deixará de se chocar. E pensará no quanto é bom que toda essa maldade tenha
sido superada por uma lei e uma justiça mais “civilizadas” e humanizadas.
Foucault trata do “suplicio”:
“Forma de penalidade que incide diretamente
sobre o corpo do condenado. Através dele, a aplicação da pena pode apresentar
algumas finalidades: retirar pela dor alguma verdade escondida; expor para a
apreciação pública o sofrimento daquele que cometeu um ato contra a ordem
legal, para que sirva de exemplo; demonstrar à sociedade um excesso de poder do
soberano, assim, reconstituir o verdadeiro poder, a verdadeira ordem suspensa
na ação criminosa.” (Foucault, 1987).
Como
um horrendo espetáculo público: Assim se manifestava a prática do suplicio sob
o olhar apavorado, curioso e fascinado da multidão.
“... Os
cavalos deram uma arrancada, puxando cada qual um membro em linha reta, cada cavalo
segurado por um carrasco. Um quarto de hora mais tarde, a mesma cerimônia, e
enfim, após várias tentativas, foi necessário fazer os cavalos puxar da seguinte
forma: os do braço direito à cabeça, os das coxas voltando para o lado dos braços,
fazendo-lhe romper os braços nas juntas Esses arrancos foram repetidos várias vezes,
sem resultado. Ele levantava a cabeça e se olhava. Foi necessário colocar dois cavalos,
diante das atrelados às coxas, totalizando seis cavalos. Mas sem resultado algum.
Enfim o carrasco Samson foi dizer ao senhor Le Breton que não havia meio nem esperança
de se conseguir e lhe disse que perguntasse às autoridades se desejavam que ele
fosse cortado em pedaços. O senhor Le Breton, de volta da cidade, deu ordem que
se fizessem novos esforços, o que foi feito; mas os cavalos empacaram e um dos
atrelados às coxas caiu na laje. Tendo voltado os confessores, falaram-lhe
outra vez. Dizia-lhes ele (ouvi-o falar). “Beijem-me. reverendos”. O senhor cura
de Saint-Paul não teve coragem, mas o de Marsilly passou por baixo da corda do
braço esquerdo e beijou-o na testa. Os carrascos se reuniram, e Damiens
dizia-lhes que não blasfemassem, que cumprissem seu oficio, pois não lhes
queria mal por isso; rogava-lhes que orassem a Deus por ele e recomendava ao
cura de Saint-Paul que rezasse por ele na primeira missa. Depois de duas ou
três tentativas, o carrasco Samson e o que lhe havia atenazado tiraram cada
qual do bolso uma faca e lhe cortaram as coxas na junção com o tronco do corpo;
os quatro cavalos, colocando toda força, levaram-lhe as duas coxas de arrasto,
isto é: a do lado direito por primeiro, e depois a outra; a seguir fizeram o
mesmo com os braços, com as espáduas e axilas e as quatro partes; foi preciso
cortar as carnes até quase aos ossos; os cavalos, puxando com toda força,
arrebataram-lhe o braço direito primeiro e depois o outro. Uma
vez retiradas essas quatro partes, desceram os confessores para lhe falar, mas o
carrasco informou-lhes que ele estava morto, embora, na verdade, eu visse que o
homem se agitava, mexendo o maxilar inferior como se falasse. Um dos carrascos
chegou mesmo a dizer pouco depois que, assim que eles levantaram o tronco para
o lançar na fogueira, ele ainda estava vivo. Os quatro membros, uma vez soltos
das cordas dos cavalos, foram lançados numa fogueira preparada no local sito em
linha reta do patíbulo, depois o tronco e o resto foram cobertos de achas e gravetos
de lenha, e se pôs fogo à palha ajuntada a essa lenha (...) em cumprimento da
sentença, tudo foi reduzido a cinzas. O último pedaço encontrado nas brasas só
acabou de se consumir às dez e meia da noite. Os pedaços de carne e o tronco
permaneceram cerca de quatro horas ardendo...”
(Foucault,
1987).
Segundo
Foucault (1987), esse tipo de castigo desaparece no inicio do século XIX.
“O grande espetáculo da punição física: o corpo
supliciado é escamoteado; exclui-se do castigo a encenação da dor. Penetramos
na época da sobriedade punitiva. Podemos considerar o desaparecimento dos
suplícios como um objetivo mais ou menos alcançado, no período compreendido
entre 1830 e 1848.” (Foucault,
1987).
E
de fato, é claro que esse tipo de penitência não figura atualmente no nosso código
penal. Mas nos últimos dias, diante dos noticiários envolvendo os chamados “justiceiros”
que saíram pelas ruas das cidades brasileiras prendendo suspeitos a postes, e pondo
um acusado amarrado sobre um formigueiro. Tudo isso sob aplausos de vozes
conservadoras; e com o explícito apoio de “âncoras” de telejornais. Então,
passei a refletir sobre a necessidade de reler Foucault. O pensador francês
talvez possa nos ajudar a compreender esse aparente djavú das trevas.
O
cenário é preocupante. Programas de televisão execram publicamente acusados de
crimes; e promovem uma midiática apologia aos linchamentos. Pessoas envolvidas
por uma enorme sensação de insegurança - oriunda em grande parte, dessa
espetacularização da violência - exigem penas mais duras para os “desviantes”
independentemente das causas ou circunstâncias sociais que os levem a praticar
os crimes; gente pacata e tradicionalmente tolerante passa a aceitar com maior
facilidade o desrespeito aos direitos humanos de pessoas envolvidas com
delitos. Até a nefasta e injustificável redução da maioridade penal consegue
adeptos entre pessoas aparentemente esclarecidas e sensatas. Dai para uma
defesa da pena de morte, pode ser questão de tempo, comoção e ou oportunidade!
Tenho
me dedicado a reler Michel Foucault e cada vez mais, vou encontrando relações, coincidências,
sinergias e hipertextos ligando a sua obra a nossa realidade atual. História da Loucura; História da Sexualidade;
Vigiar e Punir vão oferecendo chaves importantes para examinar
cuidadosamente o que chega a se apresentar como certo saudosismo sádico que
aponta para uma reedição dos “suplícios”. E o pior de tudo, uma versão moderna,
midiática, high-tech que parece contar com
público disposto a oferecer audiência crescente a esses “espetáculos”.
Estou
lendo e recomendo Michel Foucault!
Por Johnson Sales.