Os políticos tradicionais, a mídia e os "especialistas" não estão entendendo, como pode essa multidão nas ruas "sem líderes"? Eles procuram e não encontram a costumeira hierarquia das antigas formas de movimento. Para compreender o fenômeno da Multidão é preciso também compreender o fenômeno da Emergência.
Sim, organização sem hierarquia é possível! E está acontecendo nesse momento no Brasil. E um pequeno e interessante livro passa a ganhar importância para a apreensão desse conceito. Trata-se de Emergência – a vida integrada de formigas, cérebros, cidades e softwares (JOHNSON, Steven. 2003).
A obra deste jovem autor americano pode lançar luz sobre o fenômeno que tomou as ruas do Brasil, principalmente no tocante a nos ajudar a compreender como se dá o processo de mobilização e direcionamento das manifestações, de uma forma diferente do tradicionalmente dado em termos de liderança e hierarquia.
Movimentos em emergência tomaram as ruas do Brasil.
"...quando se trata de um sistema emergente é preciso desistir de tentar controlar. É preciso deixar o sistema governar a si mesmo tanto quanto possível, deixá-lo aprender a partir de passos básicos” (p. 174).
Recomendo Emergência de Steven Johnson como "livro de cabeceira" para todos os militantes, ativistas e lutadores e lutadoras sociais e para os pensadores e estudiosos que desejem entender mais profundamente as novas formas de organização e ação dos movimentos sociais que eclodem em todos os espaços e regiões do Brasil e do mundo nesse momento histórico. Não que a obra responda a tudo, claro que não. Mas ajudará bastante a reposicionar a forma de pensar e compreender organização e liderança. Fica a dica!
E para reforçar o convite a ler Emergência, trago a excelente resenha do professor Celso Candido, Coordenador do Curso de Filosofia da UNISINOS:
- resenha
*
- Celso
Candido
**
JOHNSON,
Steven. 2003. Emergência – a vida
integrada de formigas, cérebros, cidades e softwares.
.
Tradução: Maria Carmelita Pádua Dias, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 231
p.
Steven
Johnson, graduado em Semiótica e em Literatura Inglesa, é um jovem autor
americano nascido no histórico ano de 1968. É autor dos
Livros:
Interface culture:
How New Technology Transforms the Way We Create and Communicate;
Mind Wide Open: Your Brain and the Neuroscience
of Everyday Life (apenas este ainda sem tradução no mercado brasileiro);
Everything
Bad is Good for You, além de Emergence: The Connected Lives of Ants, Brains,
Cities and Software traduzido e publicado no Brasil como Emergência: a Vida
Integrada de Formigas, Cérebros, Cidades e Softwares.
Emergência
é um livro que surpreende não apenas pela relevância de seus
conteúdos e seu alto padrão estético literário, mas também pela sua densidade
conceitual.
1
Tudo começa com o incrível Dictyostelium discoideum,
“organismo semelhante a uma ameba”. Pesquisadores na área de matemática
aplicada se
empenharam em um conjunto de estudos acerca do comportamento desse estranho
organismo. Essas pesquisas, segundo Johnson, contribuiriam para “transformar a nossa
compreensão não apenas da evolução biológica, mas também de mundos tão diversos
como a ciência do cérebro,
o design de software e os estudos urbanos”. (p. 10).
O discoideum
tem uma vida dupla e paradoxal. Ora ele é um, ora ele é muitos. Tudo dependendo
das condições ambientais favoráveis ou desfavoráveis que se lhe apresentem.
“Quando o ambiente é mais hostil, o discoideum age como um organismo único;
quando o clima refresca e existe uma oferta maior de alimento, ‘ele’ se
transforma em ‘eles’. O discoideum oscila entre ser uma criatura única e uma
multidão”. (p. 10) Trata-se
de um caso bastante curioso de “comportamento de grupo coordenado”. Mas como
explicar este “misterioso comportamento”? Naturalmente, estamos acostumados a
pensar em termos top-down, em termos de líderes. Assim, a resposta predominante
foi, durante longo tempo, a de que células líderes liberariam ondas de acrasina,
a fim de fazerem as outras células se agregarem. Mas, segundo Steven Johnson, o
encontro de Keller com o trabalho de Turing abriu uma nova perspectiva. Turing
construíra “um modelo matemático em que agentes simples seguindo
regras simples eram capazes de gerar estruturas surpreende ntemente complexas”.
(p. 12) O discoideum talvez representasse um tipo de comportamento emergente, independentemente
da iniciativa de qualquer “célula líder”. A hipótese da célula líder, entretanto,
reinou até o momento em “que uma série de experimentos comprovasse que as
células do Dictyostelium discoideum se organizavam de baixo para cima”. (p. 13)
Sem dúvida, é surpreendente perceber como temos dificuldade de
pensar “em termos de fenômeno coletivo”. Trata-se aqui, na verdade, de um
comportamento tipo bottom-up. A emergência é precisamente o movimento das
regras de nível baixo para a sofisticação do nível mais alto”. (p. 14) As
formas de emergência apresentadas no livro são, então, aquelas que têm a
qualidade de se tornarem mais inteligentes, mais adaptáveis e mutantes ao longo
do tempo. De acordo com Johnson, a atual fase da teoria e da pesquisa sobre a emergência
é a mais revolucionária de todas. Pois, passadas a primeira fase, a da
curiosidade para entender o fenômeno da auto-organização, e a segunda, na qual
a questão da auto-organização tornou-se um objeto de estudo em si mesmo,
atualmente nós estamos deixando de interpretar o “fenômeno da emergência” para
começar a criá-lo. “Até o momento os filósofos da emergência lutaram para interpretar
o mundo, mas agora estão começando a modificá-lo”. (p. 16)
O que a
emergência tem a nos ensinar sobre o modo como surgem, organizam-se e evoluem
as cidades, os cérebros, as corporações, os
formigueiros,
os softwares?
2
Apoiando-se
nos trabalhos de pesquisa de Deborah Gordon sobre sistemas
complexos autocoordenados, Johnson vai apresentar o modo específico
com que as colônias de formigas se auto-organizam, ou seja, o modo como
constituem seu comportamento emergente coordenado. Aí, o primeiro
mito a ser colocado em questão é o da “formiga-rainha”. Na
verdade, a formiga-rainha não tem um papel de autoridade como se costuma
pensar. Ela não comanda as ações das operárias, ao contrário, as “colônias
estudadas por Gordon mostram um dos mais impressionantes comportamentos
descentralizados da natureza: inteligência, personalidade e aprendizado
emergem de baixo para cima, bottom-up”. (p. 23) E sem líder, ou
líderes, as formigas, através de relações colaterais e de feedback intenso constroem
e organizam “por si mesmas” todo o trabalho do formigueiro, dando
forma a um complexo sistema ordenado, com seus aposentos, suas conexões,
seu “cemitério” e seu “lixão”. O comportamento emergente, diz Johnson, é uma
mistura de “ordem e anarquia”. Gordon queria entender a “conexão entre micro e
macroorganização” em um sistema capaz de se
autocoordenar sem que os indivíduos tivessem “acesso à situação global”. Sem
que nenhuma das formigas seja a responsável pela “operação global”, elas
conseguem um alto grau de coordenação. São “comportamentos emergentes” onde as
interações são colaterais e onde se presta atenção nos “seus vizinhos mais
próximos” ao invés de ficar “esperando por ordens superiores”. As formigas agem
localmente, mas a “ação coletiva produz comportamento global”. (p. 54) Assim,
entre as principais regras de um sistema bottom-up, encontramos a incessante
tarefa de prestar atenção nos vizinhos.
3
A cidade,
como o formigueiro, é também um fenômeno emergente. E tem, no
seu interior, seus próprios sistemas emergentes; os das calçadas, das
vizinhanças, das praças, dos shoppings, nos quais interagem de modo informal e improvisadamente os cidadã os que nela
habitam. A ordem e a vitalidade
das cidades se definem também e em grande parte nesta forma social
emergente. É o mundo das interconexões locais “conduzindo à ordem global; componentes
especializados criando uma inteligência não
especializada;
comunidades de indivíduos solucionando problemas sem que nenhum deles saiba
disto”. (p. 69) A cidade é o conjunto das múltiplas interações locais que se
misturam e formam a totalidade da vida urbana, apesar de ou ao lado com todos
os planejamentos centralizados de tipo top-down. A cidade como um “sistema emergente”
é um “padrão no tempo”. “A
cristalização de um fenômeno bottom-up que se mantém no tempo” é uma das
principais “leis da emergência”. Outra não menos importante é
que um
sistema emergente é capaz de aprender, quer dizer, ele vai ficando mais
inteligente com o tempo. A cidade, portanto, se torna, segundo Johnson,
“mais esperta, mais útil para seus habitantes. E aqui, outra vez, a coisa
mais extraordinária é que esse aprendizado emerge sem que ninguém tenha
conhecimento dele”. (p. 79).
4
A World
Wide Web é, tipicamente, um fenômeno emergente. Mas estará a Web realmente
aprendendo, ficando mais inteligente, assim como as cidades e os formigueiros
ficam? A Web é um típico sistema emergente, no qual o processo de feedback, ou
seja, o das “conexões de duas vias” fomenta “a aprendizagem de nível mais
alto”. O feedback intenso entre as formigas é o que torna
possível o funcionamento inteligente do sistema. É o feedback que permite que o
comportamento complexo ocupe o lugar do caos sem sentido. É ele que vai determinar
a evolução do sistema para um nível superior de organização. A possibilidade de um círculo de feedback
ocorrer “está diretamente relacionada à interconexão geral do sistema”. (p. 99)
Na indústria do software, os modelos bottom-up, de que os sistemas open source são
o melhor exemplo de criatividade coletiva emergente, tornaram-se uma realidade
somente depois de décadas de seu nascimento. Sem dúvida, os sistemas emergentes
não existem sem regras. Mas assim como os jogos e os instrumentos musicais, o
conjunto de regras básicas relativamente simples pode evoluir para formas
novas, mais complexas e imprevisíveis. Desse conjunto de regras abre-se um
universo infinito de possibilidades. A Web é um sistema aberto a infinitas
possibilidades. Sem dúvida, ela também está se tornando mais inteligente.
Assim, pondera Johnson, não estariam os cérebros individuais se conectando uns
aos através da Web e formando “algo maior do que a soma de suas partes – o que
o famoso filósofo/padre Teilhard de Chardin chamou de noosfera?” (p. 85).
5
De acordo
com Johnson, nossa vida cognitiva é também um fenômeno emergente. Os seres
humanos são tipos extraordinariamente comunicativos. Eles são “leitores de mente
inatos”. Ou seja, os humanos são seres capazes de “imaginar os estados mentais
das pessoas”, pois sem esta faculdade eles não poderiam estabelecer o elo
comunicativo. Do mesmo modo, nossa autoconsciência não teria
sentido se não nos colocássemos diante das outras mentes. A faculdade de ler as outras mentes e a
autoconsciência que lhe é correspondente “é claramente uma propriedade emergente
das redes neurais
do cérebro. (...) essas faculdades são os exemplos primordiais da emergência
em atividade. Você não seria capaz de ler essas palavras ou especular
sobre os trabalhos internos de sua mente, não fosse pela proteiforme força da
emergência”. (p. 153) É neste sentido que o futuro do software
emergente consistirá em reconhecer nossos hábitos e gostos. Ele deverá
ser capaz de antecipar “nossas necessidades” e será capaz de se adaptar mesmo a
“nossas mudanças de humor”. Ele deverá ser sensível às singularidades, idiossincrasias
e potencialidades. “Interagir com um software emergente já se parece mais com
cultivar um jardim do que dirigir um carro ou ler um livro”. (p. 154).
6
Por fim,
a “emergência aplicada” está transformando nossa relação objetiva e subjetiva
com a mídia e nossas tradicionais noções de mundo público e privado. Assim, por
exemplo, a tremenda onda da convergência está transformando indubitavelmente a
“paisagem da mídia”. Não é difícil imaginar os efeitos deste grande poder
comunicativo emergente: a navegação livre sobre todos os bens culturais de
áudio, texto e vídeo, armazenados em um imenso disco contendo todos os discos
rígidos existentes, como anuncia por exemplo, os sistemas de
computação compartilhada peer-to-peer. Mas, poderiam os princípios da emergência
ser utilizados nas organizações e instituições? São as corporações capazes de
conviverem com estruturas de tipo bottom-up, sem os tradicionais comandos
centrais? Não há dúvidas de que os sistemas emergentes podem ser extremamente
inovadores e criativos, e têm naturalmente mais capacidade para se adaptaram às
novas situações do que os padrões de organização mais rigidamente hierárquicos.
O novo papel da alta administração seria precisamente o de motivar os grupos e
os indivíduos na organização para a geração das ideias. Os processos, a
evolução e visão do futuro devem emergir de múltiplas correlações bottom-up.
Para Johnson, os administradores de alta escala terão evidentemente seu lugar,
mesmo nas organizações de poder mais distribuído, mas não terão mais o papel de
líderes. O que importa é como extrair o máximo da inteligência coletiva existente
na instituição.
7
Seja na
escala das cidades, das colônias de formigas, da Web, das organizações, das
telecomunicações ou das mentes humanas “nossas vidas englobam os poderes da emergência.”
Sem dúvida, não é nada fácil pensar em termos de sistemas emergentes sem
mecanismos de controle. O modelo mental tipo
top-down é ainda predominante. Porém, diz Johnson, quando se trata
de um sistema emergente é preciso desistir de tentar controlar. É preciso
“deixar o sistema governar a si mesmo tanto quanto possível,deixá-lo aprender a
partir de passos básicos”. (p. 174) Qual será o futuro e o poder
real dos processos e sistemas bottom-up? Serão eles mais poderosos e criativos
que os sistemas top-down desencadeados pela sociedade industrial? Será a Emergência
o modo a partir do qual os grupos sociais, as instituições
e os indivíduos entenderão a si mesmos e autoconstituirão as formas de suas
sociabilidades, institucionalidades e subjetividades?
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* Celso
Candido. 43. Professor de Filosofia, Coordenador do Curso de Filosofia da
UNISINOS.
E-mail: ccandido@unisinos.br
Internet:
caosmose.net/candido
**
Resenha publicada originalmente na revista Filosofia Unisinos, vol. 7 no. 2 (maio/ago)
2006.
Por Johnson Sales.