Você já se pegou
procurando por algo que não sabe o que é? Já tentou se agarrar em algum pedaço
relevante de uma realidade quebrada, tateando em meio a trevas densas demais?
Eu sei. Isto parece
dramático. E é!
O sentimento era mesmo
este! Um drama de “cortar coração” havia invadido o palco daquela vida
prosaica. Nada. Nada que pudesse resgatá-lo do subsolo do poço (Isso mesmo!
Subsolo do poço. Dizem que todo fundo de poço tem ainda um subsolo como prova
indubitável de que toda situação, por pior que esteja ainda pode piorar) Vinha
à luz.
Os dias passavam, um
atrás do outro, com aquelas mesmas noites entediadas, pelo meio. Para piorar,
ainda andou se sentindo meio “barata”. Numa referência a característica dessa
criatura que mesmo quando não come, bota gosto ruim, impedindo que os outros
comam. Essa conclusão, mais vulgar que
filosófica, ele tirou de umas aventuras sentimentais nas quais andava envolvido
ultimamente. O fato é que a coisa ia muito mal. E ele não via nenhum sinal de
mudança para melhor. Era tanta nuvem escura, que o sol parecia ter desistido e
fugido de vez lá para o Japão, e sem nenhuma vontade de voltar.
Bebeu umas canas; mandou um Back pra cabeça; consumiu três carteiras de cigarro do mais barato
que conseguiu achar; e tomou uma decisão. A mais importante decisão que já
tomara na vida, ia se matar. Estava decidido!
Só faltava definir como
seria. Veneno, dizem que dói muito, a boca espuma, é horrível! Deitar na linha
do trem estraçalha o corpo de tal maneira, que depois fica difícil recolher os
pedaços para enterrar. _Assim não! Resolveu então, optar pelo enforcamento.
Parecia nobre. Saddam
Hussein morreu assim. Tiradentes, também.
_É isso. Será
assim!
Chegado o grande dia, providenciou
todos os preparativos, checando com cuidado para não esquecer nenhum detalhe
importante.
_O principal de tudo é
a corda!
Uma boa corda, além de
assegurar a eficácia do processo. E neste caso, o que se considera eficácia é a
garantia de uma morte rápida e “segura” (sem riscos de fracassar) que
dignifique o enforcado, e empreste o tom clássico de que o ato necessita. Uma
corda “de primeira” também fomenta certa confiança; reforça a crença na ciência
com os seus métodos e ferramentas funcionais. Até mesmo em situações como essa,
em que o individuo está se divorciando de todas as certezas cultas e racionais
que marcam nossa civilização e nossa época. Outro elemento decisivo é o local e
o objeto no qual a corda será fixada, uma das extremidades dela, é claro! Já
que a outra estará presa ao pescoço do suicidante. Escolheu uma árvore, na
verdade, um pé de Seriguela (Spondias purpurea) que plantada no
quintal da sua casa, já havia embalado nos seus galhos, duas gerações de
meninos e meninas de sua família, todos com suas historinhas, brincadeiras e
fantasias infantis. Ele mesmo há quarenta e dois anos atrás, havia brincado de Tarzan e Jane junto com sua prima Marina enquanto catavam os doces frutos da
boa árvore. É justo que ela seja a árvore escolhida para encerrar uma vida que
por tantas vezes acolheu e ninou em seus galhos.
***
O Suicídio, esse
“repugnante” ato de levar a termos a própria vida, é mais comum do que se
pensa. E já animou grandes intelectuais como Émile Durkheim em estudos entusiasmados.
Tal prática é muito comum e até admirada e respeitada em algumas culturas como
a japonesa, ou mesmo entre índios brasileiros como os Urubus, como mostra o mito de Uirá, o índio que segundo a
narrativa de Darcy Ribeiro, sai à procura de Deus e que decide encerrar sua
jornada com um mergulho para a morte, num rio cheio de piranhas. Essa radical e literal (se é que tal expressão
ainda faz sentido para os linguistas) autodestruição é uma das mais notáveis
armas de resistência e combate, adotadas por guerreiros e guerreiras árabes nos
dias atuais. Como também o fora pelos Kamikazes japoneses na segunda
guerra mundial.
***
A corda escolhida foi
comprada de uma empresa que garantia que suas cordas eram trançadas por
máquinas de 16 fusos. O que segundo o marketing da empresa, dava uniformidade e
desempenho superior à corda. Prometia ainda uma maior capacidade de suportar atritos.
Falava de uma corda forte e firme, e mais resistente. Gabava-se do retorcimento em sentido
anti-horário de parte das suas fibras, em oposição às demais. E afirmava que
esse detalhe reduzia as possibilidades da corda enrolar durante o uso.
Dessa forma, parecia assegurada uma boa
e digna morte.
Era chegada a hora!
Subiu no galho mais alto da árvore.
Olhou atentamente em volta para se certificar de que não houvesse por perto, nenhum
“herói de ocasião” com potencial para frustrar sua empresa. Contornou o galho
da Sirigueleira com uma das pontas da corda, amarrando-a firme, de
forma que não se soltasse com seu peso; fez um laço apertado e bem seguro na
outra ponta; conferiu com a vista, a altura que ficaria suspenso do chão; fez
uma oração encomendando sua própria alma; procurou afastar da mente as imagens
de Constantine que insistiam em ocupar seus pensamentos. E refutou com todas as forças
a ideia sustentada pelos católicos de que o suicídio leva a alma direto para o
inferno. Respirou fundo; contou até dez; e saltou!
***
“_
Você acredita que o amor é mais forte do que a morte?
_
De jeito nenhum.
_
Bom _ disse Murray. _ Nada é mais forte que a morte. Você acredita que as
únicas pessoas que têm medo da morte são as que têm medo da vida?
_
Isso é loucura. Besteira completa.
_
Certo. Todos nós temos medo da morte, em maior ou menor grau. Os que dizem que
não, estão enganando a si próprio. São pessoas superficiais.
_
O tipo de gente que põe o seu próprio apelido na placa do carro.
_
Excelente, Jack. Você acredita que a vida sem a morte é de algum modo
incompleta?
_
Incompleta como? A morte é que torna a vida incompleta.
_
Nossa consciência da morte não torna a vida mais preciosa?
_
De que vale a sensação de que a vida é preciosa se ela se baseia no medo e na
ansiedade? É uma coisa ansiosa, trêmula.
_
É verdade. As coisas mais preciosas são aquelas a respeito das quais temos uma
sensação de segurança. Uma mulher, um filho.
_
Será que o espectro da morte torna o filho mais precioso?
_
Não.
_
Não. Não há motivo para achar que a vida é mais preciosa por ser passageira. O
que você acha da seguinte afirmativa: é preciso que uma pessoa saiba que vai
morrer para que comece a aproveitar a vida ao máximo. Verdadeira ou falsa?
_
Falsa. Uma vez determinada a morte, fica impossível levar uma vida
satisfatória.
_
Você acharia melhor saber a data e a hora exata da sua morte?
_
De jeito nenhum. Já é ruim temer o desconhecido. Como é desconhecido, a gente pode
fingir que não existe. Saber a data exata levaria muita gente a se suicidar
antes, por puro espírito de porco”.
Diálogo
entre Jack e Murray,
Ruído Branco (1984, 1985)
Don
Delillo, p. 278,279.
***
Crack! prac! prec! O
galho quebrou.
Despencou de
aproximadamente três metros de altura, quebrou duas costelas; perdeu um dente;
fraturou um braço; matou uma fêmea de pavão que passava por lá na hora e era o
xodó da casa. E só foi encontrado oito horas depois. Após esperar atendimento
por doze horas, com uma pulseira de cor vermelha, na fila de espera de uma Unidade de Pronto Atendimento e ser
encaminhado para tratamento em um hospital público de urgência, resolveu
repensar a sua vida. Decidiu seguir em frente com a sua existência, agora um
pouco ainda mais dramática. Porém, com uma pitadinha de comédia acrescentada
pela sua atrapalhada tentativa de deserção.
Don
Johnson de Sales.