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domingo, 19 de maio de 2013

O "agora" e suas implicações para o conceito de "presente"



O problema com o "agora" é que sua permanência no presente é efêmera demais. Ao realizar-se, instantaneamente passa para o passado. Esse deslocamento temporal imediato. É um desafio ao conceito de "presente" e nos deixa com a intrigante possibilidade de termos apenas o "passado" como existente, já que o futuro, esse, não passa de uma projeção; de um conjunto de possibilidades que podem ou não acontecer.

Lingerie escura em pele clara






O jogo sempre vira na neblina e nas ruas da metrópole, pensou. Do chão até o topo, a vida sempre muda a sorte. Ele carregava entre os dedos o cigarro Souza Paiol (fumo forte, sem filtro, envolto em palha, preso com uma pequena fita azul que lhe contorna todo o diâmetro e sem a maioria das cerca de quatro mil substâncias tóxicas que compõem as marcas industriais), prazer propositadamente sazonal, pois o mesmo conserva o alcatrão e a nicotina e, portanto, convém administrar racionalmente. A fumaça serpenteia pelo interior do veículo e embaça o para-brisa. Vê-se forçado a abrir os vidros, o que libera os graves do rhythm and poetry que completa a estética urbana desse cenário de vídeo clipe. Poças de água de uma chuva recente se enfileiravam no asfalto e certamente provocariam aquaplanagem, não fosse aquela estratégica velocidade de não mais que quarenta quilômetros por hora que assegurava uma sensação de mover-se em “câmera lenta” pelas ruas desertas da cidade. Fazia frio. O aquecimento vinha da temperatura do motor em baixa rotação. Essa noite parecia maior que as demais. No banco do carona, uma daquelas razões irrefutáveis para se gostar da vida.

Como no Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, o “Soma” também se fazia necessário aqui para amortecer os impactos corrosivos da labuta cotidiana; e para servir de catalisador dos diferentes prazeres que a alma cobra.  Corpos, fumaça, música, ritmo, neon, concreto, LED, pontes, viadutos e esquinas se sucederam no caminho que terminou sob o perfume acolhedor do incenso.  

Mediante determinados efeitos e circunstâncias, a voz feminina é mesmo canto de sereia, principalmente, nas imediações do mar.

Não. Ele não conseguia, não nessas condições, compatibilizar seu estado atual, talvez pelo entorpecer da luxúria, com os recentes tempos passados de angústia e idealismo romântico. Pensava maravilhado: A vida é surpreendente e o homem é instável demais.

Lingerie escura em pele clara, sussurros, meia-luz em tons avermelhados, olhos penetrantes que em questão de segundos reviram a alma.

Uma aliança de ouro 18k, anatômica, acabamento polido e fosco, despencara e se punha a tilintar na pia do banheiro como em um retumbante ritual, uma ode ao matrimônio transgredido e resignificado como triunfo da fêmea rebelada. 

O amargo do Campari, quando degustado sobre a pele arrepiada e entregue, parece atenuado.

E quando o sol passa através das janelas venezianas entreabertas, a vida já virou literatura. E viu seguido e validado o que William Foote Whyte registrou em seu clássico “Sociedade de Esquina” como “o conselho dado a jovens escritores, de que devem trabalhar a partir de sua própria experiência”.



Don Johnson de Sales.