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terça-feira, 14 de maio de 2013

Os rituais diários de grandes escritores (Sentados, de pé, deitados, bebendo e até nús)

 ROTINA Em seu livro Daily rituals, o americano Mason Currey descreve os hábitos de trabalho de 161 artistas

 O que os hábitos e manias de autores de sucesso nos ensinam sobre produtividade

 
*DANILO VENTICINQUE

Uma das fórmulas mais eficientes para se tornar improdutivo é passar o dia lendo sobre produtividade. A internet e as prateleiras de autoajuda estão cheias de textos que querem nos ensinar a trabalhar melhor. Seus conselhos muitas vezes se contradizem. Compará-los é uma tarefa para várias tardes ociosas, que poderiam ser aproveitadas de outras formas — trabalhando, por exemplo. Além de nos transformar em crianças que apontam todos os lápis impecavelmente em vez de fazer a lição de casa, esses métodos infalíveis têm procedência duvidosa. Os gurus da produtividade fazem pouco. Costumam se dedicar exclusivamente a divulgar suas técnicas e a fazer fortunas com elas, em vez de usar os tais hábitos extraordinários de trabalho para construir algo admirável. Não é, convenhamos, uma existência muito produtiva. 

Talvez por duvidar dos mercadores da produtividade, o escritor americano Mason Currey buscou inspiração noutro tipo de guru. Obcecado pela rotina diária de grandes artistas, ele decidiu reunir informações sobre seus métodos de trabalho. O resultado da pesquisa está no livro Daily rituals (Knopf, 304 páginas), recém-lançado nos Estados Unidos. "Quase todos os dias da semana, por um ano e meio, eu acordei às 5h30 da manhã, escovei os dentes, tomei uma xícara de café e me sentei para escrever sobre como as mentes mais brilhantes dos últimos quatro séculos se dedicavam a essa mesma tarefa — encontrar tempo para fazer seu melhor trabalho e organizar seus horários para trabalhar de forma produtiva e criativa." O resultado é um simpático almanaque biográfico, com detalhes mundanos sobre 161 mentes geniais, e um guia de produtividade capaz de consumir alguns dias de preguiça.  

Ao contrário dos gurus marqueteiros, os escritores estudados por Currey têm em suas obras argumentos irrefutáveis para provar que seus métodos de trabalho funcionam. Gostamos de imaginar autores geniais numa realidade paralela, em que a imensidão do talento faz a obra brotar pronta. A realidade é menos mágica e, por isso, mais impressionante. Em algum momento do dia, entre afazeres domésticos e problemas do cotidiano, o escritor russo Liev Tolstói (1828-1910) reservou um tempo longe de sua mulher e de seus filhos para começar a escrever Guerra e paz. Depois, teve de criar uma rotina diária para conseguir completar a obra. Seu grande triunfo literário não existiria sem a vitória modesta sobre as distrações do cotidiano. Os hábitos dele e de outros escritores podem servir como inspiração para uma vida mais grandiosa. Ou ao menos como um argumento para manter a concentração no trabalho, em vez de clicar no próximo artigo de autoajuda. 

Encontre uma posição confortável e permaneça nela 
Entre as qualidades importantes para um aspirante a escritor, o autor americano Philip Roth se deteve num talento prosaico. “Uma habilidade que todo escritor precisa ter é a capacidade de sentar quieto, nessa profissão profundamente monótona”, disse ele, numa entrevista em 1987. Roth subestimou seus colegas. Mesmo autores incapazes de parar sentados por um minuto conseguiram produzir grandes obras ao longo de suas carreiras, cada um na sua postura favorita. Alguns sequer se davam ao trabalho de levantar. O escritor francês Marcel Proust (1871-1922) escreveu Em busca do tempo perdido deitado na cama, com a cabeça apoiada em dois travesseiros. Décadas depois, o jornalista americano Truman Capote (1924-1984) também escreveu seus livros na horizontal, esticado na cama ou no sofá, com um cigarro numa das mãos e um café (ou um martíni) ao lado.  

Outros preferiam escrever em pé. O americano Ernest Hemingway é o mais célebre, mas não o único. O romancista Thomas Wolfe (1900-1938), de dois metros de altura, criou o hábito de escrever em pé, usando o topo de um refrigerador como apoio. Outro caso folclórico é o do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855), que dividia seu tempo entre a mesa de trabalho e as caminhadas nas ruas de Copenhague. Quando uma ideia importante surgia no meio de um passeio, ele voltava correndo para casa e escrevia em pé, debruçado sobre a mesa, sem ao menos tirar o chapéu ou largar o guarda-chuva. 

Defenda seu santuário — se precisar de um 
Alguns escritores são mais vulneráveis às distrações do cotidiano do que outros. O alemão Thomas Mann (1875-1955) não encontrava sossego para escrever seus romances se não proibisse sua mulher e seus seis filhos de entrar no escritório. O inglês Charles Dickens (1812-1870), apesar de muito produtivo, só conseguia trabalhar em silêncio absoluto, numa mesa cuidadosamente decorada e de frente para uma janela. O americano Jonathan Franzen, além do barulho, teve de aprender a enfrentar as distrações da modernidade. Seu primeiro grande romance, As correções, foi escrito num quarto escuro, com fones de ouvido para isolar o barulho e um computador sem acesso à internet.  

Um bom exemplo de concentração inabalável é a inglesa Jane Austen (1775-1817), que morava com a mãe, a irmã, uma amiga e três criadas numa casa que recebia visitas constantes. As interrupções não a impediram de escrever romances como Orgulho e preconceito em pequenos pedaços de papel, que ela escondia para dar atenção aos convidados. Outro caso que merece atenção é o americano Joseph Heller (1923-1999), que escrevia na mesa da cozinha enquanto sua mulher assistia à televisão. Ele demorou oito anos, mas conseguiu terminar seu romance mais famoso, Catch-22.  

Renda-se às suas manias 
Para despertar sua criatividade, não é raro que autores recorram a hábitos excêntricos. Thomas Wolfe, o mesmo que escrevia de pé apoiado no refrigerador, gosta de ficar nu para despertar sua energia masculina (tente não imaginar a cena). Outro exemplo insólito é o do poeta alemão Friedrich Schiller (1759-1805), que guardava maçãs velhas em sua gaveta e usava o cheiro podre como estímulo para a escrita. A escritora de suspense Patricia Highsmith (1921-1995) tinha um costume mais comum — o de beber uma dose de vodca antes de escrever. Não demorou muito para que ela desenvolvesse uma resistência ao álcool. Ela aumentou as doses e começou a usar uma caneta para marcar, na garrafa, seus limites de consumo diário. A técnica inusitada a torna digna de uma menção especial, em meio a tantos outros escritores viciados em café, álcool e cigarros.  

Faça tudo na hora certa  
Nunca houve — e provavelmente jamais haverá — um levantamento estatístico sério sobre os horários favoritos dos grandes escritores do passado. Uma leitura rápida de Daily rituals evidencia uma predileção pelo silêncio das manhãs. A rotina diária da maioria dos escritores citados no livro começa com um café antes do amanhecer e longas horas de trabalho até a refeição seguinte. Os defensores das manhãs são fervorosos. "Não acredito em escrever à noite, porque a escrita vem fácil demais", disse o alemão Günter Grass. O poeta anglo-americano W. H. Auden (1907-1973) foi mais incisivo: "Somente os Hitlers do mundo trabalham à noite; nenhum artista honesto o faz." 

Apesar da militância matutina, as noites embalaram o trabalho de alguns autores consagrados. Proust só acordava por volta das 16h. Deitado em sua cama, escrevia ao longo da madrugada, com a ajuda de tabletes de cafeína, e tomava calmantes quando decidia dormir. O alemão Franz Kafka (1883-1924) também atravessava madrugadas. Ele só começava a escrever às 22h30, em sessões que às vezes se estendiam até as 6h. Como trabalhava de manhã numa seguradora, ele tinha de dormir à tarde para manter sua rotina. 

Também não se pode descartar um grupo intermediário, mais raro, de escritores que preferem as tardes. James Joyce (1882-1941) é o mais ilustre deles. O escritor irlandês acordava às 11h, começava a escrever depois do almoço e reservava a noite para frequentar restaurantes e cafés. Foi assim que escreveu Ulysses, ao longo de sete anos, somando 20 mil horas de trabalho, nas suas contas. O dramaturgo Samuel Beckett (1906-1989), outro irlandês, também usava as tardes para trabalhar. Gostava de aproveitar as noites para perambular por bares e se entupir de vinho barato. 

Aprenda a deixar para amanhã 
Um dos escritores mais prolíficos da história, o francês Honoré de Balzac (1799-1850) tinha uma rotina de trabalho tão incomum que é impossível dizer se ele preferia as noites ou as manhãs. Ele jantava às 18h e ia dormir em seguida. Acordava às 1h e trabalhava até as 16h embalado por dezenas de xícaras de café, com uma pausa às 8h para uma soneca de uma hora. Sua paixão doentia pelo trabalho era semelhante à de Voltaire (1694-1778), que começava a escrever antes mesmo de sair da cama, com a ajuda de uma secretária a quem ditava seus textos. Ele chegava a trabalhar 20 horas num dia. 

Felizmente, é possível garantir um lugar na história da literatura universal trabalhando por muito menos tempo do que Balzac ou Voltaire. Com seis filhos e uma mulher para disputar sua atenção, Thomas Mann só conseguia dedicar três horas por dia à escrita. O americano Henry Miller (1891-1980), viciado em trabalho no início de sua carreira, também aderiu a uma rotina mais suave depois de envelhecer. Passou a não escrever nada depois do meio dia, e desenvolveu o hábito de abandonar a máquina de escrever “enquanto ainda tinha algo a dizer.”

Repita tudo de novo 
"O talento é algo maravilhoso, mas não é capaz de carregar quem desiste." A frase do americano Stephen King, mestre da literatura de terror, evidencia a importância que ele atribui à persistência para o sucesso na carreira literária. King segue sua própria fórmula. Ele é conhecido por escrever duas mil palavras todos os dias, incluindo feriados e seu aniversário. A disciplina para a repetição é uma das poucas características comuns a quase todos os escritores cuja rotina é esmiuçada em Daily rituals. Hemingway acordava todos os dias antes do amanhecer, mesmo quando se embebedava na noite anterior. O poeta irlandês W. B. Yeats (1865-1939) se obrigava a trabalhar ao menos duas horas por dia, por menor que fosse sua vontade. Tolstói também fazia questão de escrever todos os dias, “nem tanto pelo sucesso de meu trabalho, mas para não sair de minha rotina”, como registrou num de seus diários. 

Aos que têm dificuldade para seguir uma rotina, o romancista francês Gustave Flaubert (1821-1880) é um exemplo encorajador. Ele acordava às 10h, mas normalmente só conseguia começar a escrever às 22h. O barulho do dia o distraía facilmente. Muitas vezes ele reclamava de seu progresso lento. Numa semana inteira de trabalho, enquanto escrevia o romance Madame Bovary, só conseguiu completar duas páginas. Mesmo assim, perseverou até terminar a obra, e justificou-se: “Apesar de tudo, o trabalho ainda é o melhor meio de fazer a vida passar." 


*DANILO VENTICINQUE é editor de livros de ÉPOCA. Conta com a revolução dos e-books para economizar espaço na estante e colocar as leituras em dia. Escreve às terças-feiras sobre os poucos lançamentos que consegue ler, entre os muitos que compra por impulso.




 

Mestrado e Doutorado FUNCAP reajusta bolsas



Medida garante mais investimento do governo do Estado em ciência, tecnologia e inovação

A Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Funcap) acaba de reajustar as bolsas de mestrado e doutorado em 11,11% e 10%, respectivamente. Para o presidente do órgão, Haroldo Rodrigues, a medida comprova a decisão do governo do Estado do Ceará de investir em ciência, tecnologia e inovação.

O presidente da Funcap, Haroldo Rodrigues, afirma que a medida mostra comprometimento do governo com o fortalecimento do órgão Foto: kid Júnior

Com os reajustes, a partir de abril deste ano, a bolsa de mestrado passa de R$ 1.350,00 para R$ 1.500,00 e a de doutorado de R$ 2.000,00 passa para R$ 2.200,00. Segundo ele, o governo reviu os cortes nos limites financeiros da Funcap, que é vinculada à Secretaria de Ciência e Tecnologia do Ceará, permitindo que o órgão executasse ações de grande impacto em seu Programa de Formação de Recursos Humanos para Pesquisa.

Os novos limites, autorizados pelo Conselho de Gestão por Resultados e Gestão Fiscal (Cogerf), permitiram que a Fundação equiparasse o valor da bolsa de mestrado acadêmico e doutorado aos praticados pelas agências nacionais, ressaltou Haroldo Rodrigues.

Os novos limites financeiros da Funcap também permitirão à Fundação liberar o uso integral das quotas de bolsas de mestrado acadêmico e doutorado a partir deste mês. Durante os meses de março e abril de 2013, os programas estiveram autorizados a utilizar apenas parcialmente as quotas. Como resultado, a Funcap passa a conceder um total de 588 de bolsas de mestrado e 307 bolsas de doutorado para utilização dos programas de pós-graduação do Estado.

A autorização dada pelo governador para o aumento dos limites financeiros da Fundação é a reafirmação do compromisso de Cid Gomes com o fortalecimento da Funcap e de seus programas em benefício do desenvolvimento tecnológico e científico do Estado, considera Haroldo Rodrigues. Com os novos valores das bolsa, o investimento é de aproximadamente R$ 18 milhões em formação de recursos humanos para pesquisa, desenvolvimento e inovação.

D e março de 2012 a fevereiro de deste ano, foram 1.183 mestres e 392 doutores. Em 2006, esses números foram 648 mestres e 117 doutores. Ou seja, nos últimos seis anos, o número de mestres formados/ano quase duplicou e o número de doutores formados/ano triplicou.

MOZARLY ALMEIDAREPÓRTER


Fonte:  http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1267061



Escrita e Sentidos (de Bule-Bule a Thomas Robbes)



Foi como se cada letra carregasse o peso de todo aquele tempo; as laudas cheiravam à estrada de terra esporadicamente molhada pela mesma chuva que Bule-Bule via mudar o som da batida da cancela; formar frases perfeitas como o prateado da lua nova sobre a abundante relva, isso sim, é uma missão digna de um homem letrado: Botar no papel tudo aquilo que de melhor todos os sentidos coletarem no ambiente que o cerca, e quem sabe, agradar e ou corroborar com Hobbes que pensava que só é possível conhecer algo do mundo exterior por meio das impressões sensoriais que temos dele. Penso que esta é uma das mais apaixonantes possibilidades da escrita.


Don Johnson de Sales.

90 anos. De presente, uma adolescente virgem. (Memória de Minhas Putas Tristes)

"No ano de meus noventa anos quis me dar de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem. Lembrei de Rosa Cabarcas, a dona de uma casa clandestina que costumava avisar aos seus bons clientes quando tinha alguma novidade disponível. Nunca sucumbi a essa nem a nenhuma de suas muitas tentações obscenas, mas ela não acreditava na pureza de meus princípios. Também a moral é uma questão de tempo, dizia com um sorriso maligno, você vai ver. Era um pouco mais nova que eu, e não sabia dela fazia tantos anos que podia muito bem estar morta. Mas no primeiro toque reconheci a voz no telefone e disparei sem preâmbulos:

— É hoje.

Ela suspirou: Ai, meu sábio triste, você desaparece vinte anos e volta só para pedir o impossível. Recobrou em seguida o domínio de sua arte e me ofereceu meia dúzia de opções deleitáveis, mas com um senão: eram todas usadas. Insisti que não, que tinha de ser donzela e para aquela noite. Ela perguntou alarmada: Mas o que é que você está querendo provar a si mesmo? Nada, respondi, machucado onde mais doía, sei muito bem o que posso e o que não posso. Ela disse impassível que os sábios sabem de tudo, mas não tudo: Virgens sobrando neste mundo só os do seu signo, dos nascidos em agosto. Por que não encomendou com mais tempo? A inspiração não avisa, respondi. Mas talvez espere, disse ela, sempre mais sabichona que qualquer homem, e me pediu nem que fossem dois dias para revirar o mercado a fundo. Eu repliquei a sério que numa questão dessas, e na minha idade, cada hora é um ano. Então não tem jeito, disse ela sem o menor fiapo de dúvida, mas não importa, assim é mais emocionante, merda, deixa que eu telefono em uma hora.


Não preciso nem dizer, porque dá para reparar a léguas: sou feio, tímido e anacrônico. Mas à força de não querer ser assim consegui simular exatamente o contrário. Até o sol de hoje, em que resolvo contar como sou por minha livre e espontânea vontade, nem que seja só para alívio da minha consciência. Comecei com o telefonema insólito a Rosa Cabarcas, porque, visto de hoje, aquele foi o início de uma nova vida, e numa idade em que a maioria dos mortais está morta.


Vivo numa casa colonial na calçada de sol do parque de San Nicolás, onde passei todos os dias da minha vida sem mulher nem fortuna, onde viveram e morreram meus pais, e onde me propus morrer só, na mesma cama em que nasci e num dia que desejo longínquo e sem dor. Meu pai comprou a casa num leilão público no final do século XIX, alugou o andar de baixo para lojas de luxo de um consórcio de italianos e reservou-se este segundo andar para ser feliz com a filha de um deles, Florina de Dios Cargamantos, intérprete notável de Mozart, poliglota e garibaldina, e a mulher mais formosa e de melhor talento que jamais houve na cidade: minha mãe.


O espaço da casa é amplo e luminoso, com arcos de estuque e pisos axadrezados de mosaicos florentinos, e quatro portas envidraçadas sobre uma sacada corrida onde minha mãe sentava-se nas noites de março para cantar árias de amor com suas primas italianas. Dali se vê o parque de San Nicolás com a catedral e a estátua de Cristóvão Colombo, e mais além os armazéns do cais fluvial e o vasto horizonte do rio grande da Magdalena a vinte léguas de seu estuário. A única coisa ingrata na casa é que o sol vai mudando de janelas no transcurso do dia, e é preciso fechar todas elas para tratar de dormir a sesta na penumbra ardente. Quando fiquei sozinho, aos meus trinta e dois anos, mudei-me para a que tinha sido a alcova de meus pais, abri uma porta de passagem para a biblioteca e para viver comecei a vender o que estava sobrando, e que terminou sendo quase tudo, exceto os livros e a pianola de rolos.


Durante quarenta anos fui o domador de telegramas do El Diario de La Paz, tarefa que consistia em reconstruir e completar em prosa indígena as notícias do mundo, que agarrávamos em pleno vôo pelo espaço sideral através das ondas curtas ou do código Morse. Hoje me sustento, mal ou bem, com minha aposentadoria daquele ofício extinto; me sustento menos com a de professor de gramática castelhana e latim, quase nada com a crônica dominical que escrevi sem esmorecimento durante mais de meio século, e nada em absoluto com as resenhas de música e teatro que me publicam de favor nas muitas vezes em que intérpretes notáveis passam por aqui. Nunca fiz nada diferente de escrever, mas não tenho vocação nem virtude de narrador, ignoro por completo as leis da composição dramática, e se embarquei nessa missão é porque confio na luz do muito que li pela vida afora. Dito às claras e às secas, sou da raça sem méritos nem brilho, que não teria nada a legar aos seus sobreviventes se não fossem os fatos que me proponho a narrar do jeito que conseguir nesta memória do meu grande amor.


No dia de meus noventa anos havia recordado, como sempre, às cinco da manhã. Por ser sexta-feira, meu compromisso único era escrever a crônica que é publicada aos domingos no El Diario de La Paz. Os sintomas do amanhecer tinham sido perfeitos para não ser feliz: me doíam os ossos desde a madrugada, meu rabo ardia, e havia trovões de tormenta depois de três meses de seca. Tomei banho enquanto passava o café, bebi uma caneca adoçada com mel de abelhas e acompanhada por duas broas de farinha de mandioca, e vesti o macacão de brim de ficar em casa.


O tema da crônica daquele dia, é claro, eram os meus noventa anos. Nunca pensei na idade como se pensa numa goteira no teto que indica a quantidade de vida que vai nos restando. Era muito menino quando ouvi dizer que se uma pessoa morre os piolhos incubados no couro cabeludo escapam apavorados pelos travesseiros, para vergonha da família. Isso me impressionou tanto que tosei o coco para ir à escola, e até hoje lavo os escassos fiapos que me restam com sabão medicinal de cinza e ervas milagrosas. Quer dizer, me digo agora, que desde muito menino tive mais bem formado o sentido do pudor social que o da morte."


(Trecho do livro "Memórias de Minhas Putas Tristes", de Gabriel García Marquez).


 Leia o livro!