ROTINA Em seu livro Daily rituals, o americano Mason Currey descreve os hábitos de trabalho de 161 artistas
O que os hábitos e manias de autores de sucesso nos ensinam sobre produtividade
*DANILO VENTICINQUE |
Uma das fórmulas mais eficientes para se tornar improdutivo é passar o
dia lendo sobre produtividade. A internet e as prateleiras de autoajuda
estão cheias de textos que querem nos ensinar a trabalhar melhor. Seus
conselhos muitas vezes se contradizem. Compará-los é uma tarefa para
várias tardes ociosas, que poderiam ser aproveitadas de outras formas —
trabalhando, por exemplo. Além de nos transformar em crianças que
apontam todos os lápis impecavelmente em vez de fazer a lição de casa,
esses métodos infalíveis têm procedência duvidosa. Os gurus da
produtividade fazem pouco. Costumam se dedicar exclusivamente a divulgar
suas técnicas e a fazer fortunas com elas, em vez de usar os tais
hábitos extraordinários de trabalho para construir algo admirável. Não
é, convenhamos, uma existência muito produtiva.
Talvez por duvidar dos mercadores da produtividade, o escritor
americano Mason Currey buscou inspiração noutro tipo de guru. Obcecado
pela rotina diária de grandes artistas, ele decidiu reunir informações
sobre seus métodos de trabalho. O resultado da pesquisa está no livro
Daily rituals (Knopf, 304 páginas), recém-lançado nos Estados Unidos.
"Quase todos os dias da semana, por um ano e meio, eu acordei às 5h30 da
manhã, escovei os dentes, tomei uma xícara de café e me sentei para
escrever sobre como as mentes mais brilhantes dos últimos quatro séculos
se dedicavam a essa mesma tarefa — encontrar tempo para fazer seu
melhor trabalho e organizar seus horários para trabalhar de forma
produtiva e criativa." O resultado é um simpático almanaque biográfico,
com detalhes mundanos sobre 161 mentes geniais, e um guia de
produtividade capaz de consumir alguns dias de preguiça.
Ao contrário dos gurus marqueteiros, os escritores estudados por Currey
têm em suas obras argumentos irrefutáveis para provar que seus métodos
de trabalho funcionam. Gostamos de imaginar autores geniais numa
realidade paralela, em que a imensidão do talento faz a obra brotar
pronta. A realidade é menos mágica e, por isso, mais impressionante. Em
algum momento do dia, entre afazeres domésticos e problemas do
cotidiano, o escritor russo Liev Tolstói (1828-1910) reservou um tempo
longe de sua mulher e de seus filhos para começar a escrever Guerra e
paz. Depois, teve de criar uma rotina diária para conseguir completar a
obra. Seu grande triunfo literário não existiria sem a vitória modesta
sobre as distrações do cotidiano. Os hábitos dele e de outros escritores
podem servir como inspiração para uma vida mais grandiosa. Ou ao menos
como um argumento para manter a concentração no trabalho, em vez de
clicar no próximo artigo de autoajuda.
Encontre uma posição confortável e permaneça nela
Entre as qualidades importantes para um aspirante a escritor, o autor
americano Philip Roth se deteve num talento prosaico. “Uma habilidade
que todo escritor precisa ter é a capacidade de sentar quieto, nessa
profissão profundamente monótona”, disse ele, numa entrevista em 1987.
Roth subestimou seus colegas. Mesmo autores incapazes de parar sentados
por um minuto conseguiram produzir grandes obras ao longo de suas
carreiras, cada um na sua postura favorita. Alguns sequer se davam ao
trabalho de levantar. O escritor francês Marcel Proust (1871-1922)
escreveu Em busca do tempo perdido deitado na cama, com a cabeça apoiada
em dois travesseiros. Décadas depois, o jornalista americano Truman
Capote (1924-1984) também escreveu seus livros na horizontal, esticado
na cama ou no sofá, com um cigarro numa das mãos e um café (ou um
martíni) ao lado.
saiba mais
Outros preferiam escrever em pé. O americano Ernest Hemingway é o mais
célebre, mas não o único. O romancista Thomas Wolfe (1900-1938), de dois
metros de altura, criou o hábito de escrever em pé, usando o topo de um
refrigerador como apoio. Outro caso folclórico é o do filósofo
dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855), que dividia seu tempo entre a
mesa de trabalho e as caminhadas nas ruas de Copenhague. Quando uma
ideia importante surgia no meio de um passeio, ele voltava correndo para
casa e escrevia em pé, debruçado sobre a mesa, sem ao menos tirar o
chapéu ou largar o guarda-chuva.
Defenda seu santuário — se precisar de um
Alguns escritores são mais vulneráveis às distrações do cotidiano do
que outros. O alemão Thomas Mann (1875-1955) não encontrava sossego para
escrever seus romances se não proibisse sua mulher e seus seis filhos
de entrar no escritório. O inglês Charles Dickens (1812-1870), apesar de
muito produtivo, só conseguia trabalhar em silêncio absoluto, numa mesa
cuidadosamente decorada e de frente para uma janela. O americano
Jonathan Franzen, além do barulho, teve de aprender a enfrentar as
distrações da modernidade. Seu primeiro grande romance, As correções,
foi escrito num quarto escuro, com fones de ouvido para isolar o barulho
e um computador sem acesso à internet.
Um bom exemplo de concentração inabalável é a inglesa Jane Austen
(1775-1817), que morava com a mãe, a irmã, uma amiga e três criadas numa
casa que recebia visitas constantes. As interrupções não a impediram de
escrever romances como Orgulho e preconceito em pequenos pedaços de
papel, que ela escondia para dar atenção aos convidados. Outro caso que
merece atenção é o americano Joseph Heller (1923-1999), que escrevia na
mesa da cozinha enquanto sua mulher assistia à televisão. Ele demorou
oito anos, mas conseguiu terminar seu romance mais famoso, Catch-22.
Renda-se às suas manias
Para despertar sua criatividade, não é raro que autores recorram a
hábitos excêntricos. Thomas Wolfe, o mesmo que escrevia de pé apoiado no
refrigerador, gosta de ficar nu para despertar sua energia masculina
(tente não imaginar a cena). Outro exemplo insólito é o do poeta alemão
Friedrich Schiller (1759-1805), que guardava maçãs velhas em sua gaveta e
usava o cheiro podre como estímulo para a escrita. A escritora de
suspense Patricia Highsmith (1921-1995) tinha um costume mais comum — o
de beber uma dose de vodca antes de escrever. Não demorou muito para que
ela desenvolvesse uma resistência ao álcool. Ela aumentou as doses e
começou a usar uma caneta para marcar, na garrafa, seus limites de
consumo diário. A técnica inusitada a torna digna de uma menção
especial, em meio a tantos outros escritores viciados em café, álcool e
cigarros.
Faça tudo na hora certa
Nunca houve — e provavelmente jamais haverá — um levantamento
estatístico sério sobre os horários favoritos dos grandes escritores do
passado. Uma leitura rápida de Daily rituals evidencia uma predileção
pelo silêncio das manhãs. A rotina diária da maioria dos escritores
citados no livro começa com um café antes do amanhecer e longas horas de
trabalho até a refeição seguinte. Os defensores das manhãs são
fervorosos. "Não acredito em escrever à noite, porque a escrita vem
fácil demais", disse o alemão Günter Grass. O poeta anglo-americano W.
H. Auden (1907-1973) foi mais incisivo: "Somente os Hitlers do mundo
trabalham à noite; nenhum artista honesto o faz."
Apesar da militância matutina, as noites embalaram o trabalho de alguns
autores consagrados. Proust só acordava por volta das 16h. Deitado em
sua cama, escrevia ao longo da madrugada, com a ajuda de tabletes de
cafeína, e tomava calmantes quando decidia dormir. O alemão Franz Kafka
(1883-1924) também atravessava madrugadas. Ele só começava a escrever às
22h30, em sessões que às vezes se estendiam até as 6h. Como trabalhava
de manhã numa seguradora, ele tinha de dormir à tarde para manter sua
rotina.
Também não se pode descartar um grupo intermediário, mais raro, de
escritores que preferem as tardes. James Joyce (1882-1941) é o mais
ilustre deles. O escritor irlandês acordava às 11h, começava a escrever
depois do almoço e reservava a noite para frequentar restaurantes e
cafés. Foi assim que escreveu Ulysses, ao longo de sete anos, somando 20
mil horas de trabalho, nas suas contas. O dramaturgo Samuel Beckett
(1906-1989), outro irlandês, também usava as tardes para trabalhar.
Gostava de aproveitar as noites para perambular por bares e se entupir
de vinho barato.
Aprenda a deixar para amanhã
Um dos escritores mais prolíficos da história, o francês Honoré de
Balzac (1799-1850) tinha uma rotina de trabalho tão incomum que é
impossível dizer se ele preferia as noites ou as manhãs. Ele jantava às
18h e ia dormir em seguida. Acordava às 1h e trabalhava até as 16h
embalado por dezenas de xícaras de café, com uma pausa às 8h para uma
soneca de uma hora. Sua paixão doentia pelo trabalho era semelhante à de
Voltaire (1694-1778), que começava a escrever antes mesmo de sair da
cama, com a ajuda de uma secretária a quem ditava seus textos. Ele
chegava a trabalhar 20 horas num dia.
Felizmente, é possível garantir um lugar na história da literatura
universal trabalhando por muito menos tempo do que Balzac ou Voltaire.
Com seis filhos e uma mulher para disputar sua atenção, Thomas Mann só
conseguia dedicar três horas por dia à escrita. O americano Henry Miller
(1891-1980), viciado em trabalho no início de sua carreira, também
aderiu a uma rotina mais suave depois de envelhecer. Passou a não
escrever nada depois do meio dia, e desenvolveu o hábito de abandonar a
máquina de escrever “enquanto ainda tinha algo a dizer.”
Repita tudo de novo
Repita tudo de novo
"O talento é algo maravilhoso, mas não é capaz de carregar quem
desiste." A frase do americano Stephen King, mestre da literatura de
terror, evidencia a importância que ele atribui à persistência para o
sucesso na carreira literária. King segue sua própria fórmula. Ele é
conhecido por escrever duas mil palavras todos os dias, incluindo
feriados e seu aniversário. A disciplina para a repetição é uma das
poucas características comuns a quase todos os escritores cuja rotina é
esmiuçada em Daily rituals. Hemingway acordava todos os dias antes do
amanhecer, mesmo quando se embebedava na noite anterior. O poeta
irlandês W. B. Yeats (1865-1939) se obrigava a trabalhar ao menos duas
horas por dia, por menor que fosse sua vontade. Tolstói também fazia
questão de escrever todos os dias, “nem tanto pelo sucesso de meu
trabalho, mas para não sair de minha rotina”, como registrou num de seus
diários.
Aos que têm dificuldade para seguir uma rotina, o romancista francês
Gustave Flaubert (1821-1880) é um exemplo encorajador. Ele acordava às
10h, mas normalmente só conseguia começar a escrever às 22h. O barulho
do dia o distraía facilmente. Muitas vezes ele reclamava de seu
progresso lento. Numa semana inteira de trabalho, enquanto escrevia o
romance Madame Bovary, só conseguiu completar duas páginas. Mesmo assim,
perseverou até terminar a obra, e justificou-se: “Apesar de tudo, o
trabalho ainda é o melhor meio de fazer a vida passar."
*DANILO VENTICINQUE é editor de livros de ÉPOCA. Conta com a revolução
dos e-books para economizar espaço na estante e colocar as leituras em
dia. Escreve às terças-feiras sobre os poucos lançamentos que consegue
ler, entre os muitos que compra por impulso.