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sexta-feira, 5 de julho de 2013

Do ringue à Sociedade de Esquina, a vida pede Corpo e Alma!





Cotejo: Sociedade de Esquina – A Estrutura Social de uma Área Urbana Pobre e Degradada de William Foot Whyte/ e Corpo e Alma – Notas Etnográficas de um Aprendiz de Boxe de Loic Wacquant).


“Dificuldades objetivas. Perigo da observação superficial. Não “acreditar”. Não acreditar que se sabe porque se viu; não fazer qualquer julgamento moral. Não se espantar. Não se deixar levar. Procurar viver na sociedade indígena. Escolher bem os informantes. [...] A objetividade deve ser buscada tanto na exposição como na observação. Dizer o que se sabe, tudo o que se sabe, nada mais do que se sabe”. Marcel Mauss, Manual d’ethnographie, 1950.

Similitudes

“Agora leio com frequência o conselho dado a jovens escritores, de que devem trabalhar a partir de sua própria experiência”. Escreve William Foote Whyte na página 285, do Anexo A, de seu livro. Talvez se de inicio, Whyte tivesse se acomodado com sua condição pessoal “privilegiada” de, segundo ele, nunca ter tido de lutar por nada, e produzido algo superficial sobre determinada área urbana degradada, a antropologia como conhecemos, fosse bastante mais pobre. Ou quem sabe, a crença na desestruturação das áreas urbanas e na sua desorganização fosse maior entre antropólogos e demais atores sociais, incluindo os próprios moradores dessas áreas. Como também, se Loic Wacquant tivesse se resignado diante da sua condição física aparentemente inadequada para a prática do boxe e da sua condição social diferenciada em relação aos meninos do DeeDee, hoje, soubéssemos menos sobre a observação participante ou como preferiu Wacquant, da “participação observante”. Mas os dois autores fizeram de seus status e de suas limitações, alavancas para promover mudanças nas suas vidas e nas suas obras (não necessariamente nesta ordem). Tanto Whyte quanto Wacquant foram revolucionários em suas práticas etnográficas. E mesmo que desprezássemos os seus métodos, o que seria por demais, absurdo. Ainda assim, eles continuariam revolucionários, talvez não mais revolucionando, mas incrivelmente revolucionários. Revolucionários aventureiros do tipo mais romântico. Aquele tipo aventureiro que segundo o médico e revolucionário argentino, Ernesto Che Guevara de La Sierna, “é capaz de entregar a própria pele para provar as suas verdades”. Aqui, residem as singularidades da contribuição desses dois autores. Ambos escolheram caminhos diferentes, trocaram de caminho durante a jornada, trocaram de objeto de estudo, e foram tocados profundamente pelos objetos que escolheram, ou pelos quais foram escolhidos. Essa questão, de quem escolheu quem, é no mínimo, dúbia, na relação desses dois autores com o seu objeto. Wacquant e Foote Whyte foram em relação às suas obras e para os objetos que estudaram, mais do que estudiosos, ambos foram, verdadeiros “agente sociais”. No prefácio da edição brasileira de Corpo e Alma, o autor apresenta uma citação do jovem Marx, tirada dos seus manuscritos de 1844, onde o pensador diz que, “o agente social é, antes de mais nada, um ser de carne, de nervos e de sentidos – no duplo sentido de sensual e de significante – um ‘ser que sofre’ e que participa do universo que o faz e que, em contrapartida, ele contribui para fazer, com todas as fibras de seu corpo e de seu coração”. A partir de Corpo e Alma e de Street Corner Society, Whyte e Wacquant deram uma enorme contribuição para estender essa definição de Karl Marx até o ponto de englobar e acolher em seu seio o etnógrafo e sua “participação observante”. Os dois autores foram de encontro à visão de que as comunidades urbanas degradadas são “desorganizadas”. Wacquant, também contribuiu para o combate à noção, segundo ele, enraizada na sociologia norte-americana desde os primeiros trabalhos da escola de Chicago, das relações entre divisão racial e marginalidade urbana. A essa noção, loic Wacquant chama de “falsa idéia”.

Em Sociedade de Esquina, a pesquisa começou como um estudo dos padrões de amizade entre as pessoas. E em Corpo e Alma, a ideia inicial era estudar a realidade cotidiana do gueto. Na pagina 284, do anexo A, de Sociedade de Esquina, Whyte escreve: “Estou convencido de que a evolução real das ideias na pesquisa não acontece de acordo com os relatos formais que lemos sobre métodos de investigação. As ideias crescem, em parte, como resultado de nossa imersão nos dados e do processo total de viver”. De fato. Tanto para uma obra como para a outra, as ideias emergiram dialeticamente do processo de imersão e do processo total de viver como citou Whyte.

Loic Wacquant confessa que chegou a academia de Boxe por engano e por acaso. Na verdade Wacquant pretendia estudar o cotidiano do bairro de Woodlawn e buscava um ponto de observação privilegiado quando “aterrissou” no gym da Rua 63 levado por um amigo francês e judoca. O mundo de Loic Wacquant era outro muito diferente do gueto. Tanto Loic Wacquant como William Foote Whyte - que segundo ele mesmo, nada sabia sobre a vida nas fábricas, nos campos ou nas minas, a não ser aquilo que pudera aprender nos livros - pertenciam à classe média. Foote Whyte pretendia realizar um estudo de comunidade sobre Corneville partindo das relações de amizade entre os seus moradores. Wacquant queria estudar e explicar as relações sociais no gueto negro. Os dois pesquisadores tinham em comum a disposição de se inserir em comunidades, para eles, totalmente estranhas. E ambos queriam como objeto de estudo, essas comunidades. Ambos se desviaram do objeto inicial de estudo. Loic Wacquant encantou-se pelo boxe e terminou por focar todo o seu trabalho acadêmico neste esporte. Foote Whyte, por sua vez, foi “atraído pelas gangues da esquina”.

História pessoal

William Foote Whyte é neto de um médico e de um inspetor escolar (não fez referências as avós). Desde cedo se interessou por economia e reforma social e tinha esperanças de seguir a carreira de escritor. Declarou-se insatisfeito com a sua própria vida que considerou intelectualmente estimulante, mas sem aventura. Chegou a Mostrar-se incomodado com o que nominou como “estreitas fronteiras” da sua existência até então limitada ao universo da classe média. O seu trabalho em Sociedade de Esquina representou também a tentativa de superação dessa condição.

Loic Wacquant, é também membro da classe média, vem de uma pequena cidade francesa, foi praticante de vários esportes na infância tais como futebol, basquete, rugby e tênis. Estudante da universidade de Chicago foi orientando de Pierre Bourdieu. Wacquant fez de seu estudo acadêmico em Corpo e Alma, também uma “ego-trip” e uma redescoberta do seu próprio corpo, inclusive, como “meio técnico”, conforme escreve Marcel Mauss, que compreende o corpo como “o primeiro e mais natural objeto de técnica e, ao mesmo tempo, meio técnico do homem”. Citação utilizada como nota de rodapé por Wacquant na página 79 de Corpo e Alma. Loic Wacquant considerava impossível por razões éticas e epistemológicas escrever sobre a comunidade sem nela realizar o que chamou de “passeios sociológicos” ou seja, sem inserir-se no campo.

Motivações

Loic Wacquant contava desde o início com a inspiração e apoio motivador de Pierre de Bourdieu. Depois, ao confrontar-se com uma experiência transformadora, não desejada e não prevista, que lhe foi proporcionada pelo Boxe, se viu motivado a atender a necessidade de dominar completamente essa experiência. 

Para William Foote Whyte, a motivação vem do desejo de romper com o senso de banalidade que envolvia a sua vida e que o oprimia. Ele queria ir além das fronteiras estreitas da sua própria existência para escrever algo que realmente valesse a Pena. Também, e principalmente, o seu interesse por economia e por reforma social, o motivou a viver e escrever Sociedade de Esquina.

Orientação acadêmica e auxilio no trabalho

Wacquant era vinculado à Universidade de Chicago e Foote Whyte à Universidade de Harvard

O primeiro teve como orientador o filosofo e sociólogo Pierre Bourdieu, contou ainda com a colaboração do sociólogo William Julius Wilson, autor de The Truly Disadvantaged (Chicago; The University of Chicago press, 1987). Bourdieu cumpriria mais tarde, um papel decisivo quando foi necessário intervir para que Wacquant não trocasse – “na embriaguez do mergulho” – a carreira acadêmica pelo sonho do Boxe profissional. O segundo contou com a orientação de L. J. Henderson, bioquímico, secretário do Comitê Acadêmico, e que foi fundamental na reformulação dos seus planos de trabalho e na adequação de suas pretensões, principalmente no tocante ao tamanho da equipe a ser utilizada em Sociedade de Esquina. Henderson, o levou a enxergar a necessidade de certa perspicácia e razoabilidade nas ações. Foote Whyte fez também várias entrevistas com professores de Harvard em busca de apoio. Ainda trabalhou por dois anos junto com John Howard, na época, também pesquisador-júnior de Harvard e que havia trocado o campo físico-química pela sociologia e muito ajudou a clarear suas ideias. A procura de ajuda junto a pessoas mais capacitadas e mais experientes do que ele no trabalho que estava realizando, foi providencial para compensar a escassez de bibliografia necessária para a realização de seu estudo. Também M. Arensberg foi fundamental para a definição dos seus métodos de pesquisa. No doutorado, Foote Whyte foi orientado por W. Lloyd Warner. E contou ainda com a ajuda de Everett Hughes que chegou a promover um acordo durante a banca de doutorado para assegurar a aprovação da tese de Foote Whyte que fora questionada por motivações conceituais e políticas relacionadas com disputas internas da academia, por Louis Wirth, autor de significativo estudo sobre áreas pobres e degradadas. Hughes, ainda convenceu o departamento a aceitar artigos publicados por Whyte, como revisão da literatura. Sem que o autor tivesse que encaderná-los junto com o livro, como exigira inicialmente a Universidade.

Algumas referências teóricas e citações bibliográficas

Loic Wacquant cita os manuscritos de 1844 de Karl Marx; trechos de obras de Pierre Bourdieu; Marcel Mauss, Arthur Krystal, a romancista Joyce Carol Oates que escreveu “On Boxing” (Garden City: Doubleday , 1987), entre muitos outros.

Foote Whyte cita Bronisław Kasper Malinowski e Émile Durkheim cujas influências são bastante perceptíveis em sua obra. Faz referência também a Pierre Janet, Alex de Toqueville, cita a autobiografia de Lincoln Steffens como uma obra que muito lhe impressionou, pois esta obra lhe mostrou “que um homem como uma origem semelhante a dele poderia se afastar do seu modo de vida e adquirir um conhecimento intimo de indivíduos e grupos com atividades e crenças muito diferentes das suas”. Citou ainda Middletown (estudo sobre uma imaginária cidade média americana, que possibilita investigar um sistema sociocultural relativamente fechado. É considerado como pioneiro no estudo sociológico da comunidade urbana) de cujo autor, Lynd, começara a seguir a linha.

Métodos

William Foote Whyte, sob a influência onipresente de Bronisław Malinowski, apresenta um método completamente marcado pela observação participante. Whyte também adota desde o inicio, o planejamento cuidadoso de suas ações. Mas corroborando a sua afirmação de que as ideias crescem, em parte, como resultado da imersão do pesquisador nos dados, e do que ele chamou de “processo total de viver”, seu método comporta também mudanças de rumo. O autor, que considera que muito do processo de análise se dá num plano inconsciente. Acredita não ser possível apresentar um relato completo desse processo.

A escolha da comunidade onde se daria o estudo que resultaria em Sociedade de Esquina, não foi, segundo Whyte, feita com bases científicas. Mas sim, derivou de uma imagem mental criada pelo autor, do que seria o tipo de comunidade que ele estava buscando, e no qual, Cornerville se encaixava. A saber, um distrito pobre e degradado.

Ao elaborar o seu projeto de pesquisa, Whyte procurou pessoas mais experientes e capacitadas do que ele no tipo de trabalho que estava realizando e modificou seu plano a partir dessas consultas e das contribuições recebidas. 

O método de Foote Whyte buscava inverter a forma como a comunidade era vista por grande parte da literatura sociológica, ou seja, em termos apenas de problemas sociais, não existindo como sistema social organizado. Foote Whyte teve, principalmente devido a escassez de literatura adequada para o seu trabalho, que adaptar teorias que pudessem lhe auxiliar. Começou por Malinowski que lhe pareceu mais aproximado do seu trabalho. Embora os estudos estivessem relacionados com “tribos primitivas” e o seu, com uma comunidade urbana de uma grande cidade.

Whyte buscava a objetividade, queria inicialmente, estabelecer o padrão de interação entre as pessoas. Esse traço positivista pode possivelmente ser atribuído a certa influência do pensamento de Durkheim sobre o autor.

Para desenvolver seus métodos de entrevista, Whyte chegou a entrevistar psiconeuróticos num hospital.

Quando iniciou seu trabalho, o autor se via como economista, e não contou com nenhum treinamento em sociologia ou antropologia. Sendo assim, toda a sua metodologia foi se desenvolvendo de uma forma bastante empírica. Foote Whyte demonstra uma permanente preocupação com o método. A utilização de um informante-chave, que, no caso de Doc, era praticamente o informante perfeito. Foi outro traço, senão o principal, do método de Foote Whyte. E o que, certamente, maior contribuição ofereceu para o sucesso do seu trabalho.

Perceber que seria sempre um estranho para a comunidade, se não fosse morar lá. Além de uma evolução do pensamento do autor em relação ao aperfeiçoamento metodológico, é também, provavelmente, uma emergência dos conhecimentos adquiridos com a leitura da obra de Malinowski

Conhecimentos esses que passam a compor o seu “processo total de viver”.

Whyte manteve alguns confortos fora do campo, fazendo uso de um quarto, pertencente a um amigo na Universidade de Harvard para tomar um banho ocasional de banheira e chuveiro. Tipo de regalia com as quais, Malinowski, seu inspirador primeiro não pôde contar durante a produção do seu Argonautas do Pacífico Ocidental. E logo, o autor de Street Corner Society, encontrou um espaço revigorante no próprio campo, quanto instalou-se na casa dos Martini. Whyte afirma na página 299, do Anexo A, de Sociedade de Esquina que qualquer tensão sofrida no trabalho desaparecia enquanto comia, bebia e depois dormia por uma, ou duas horas, na casa da família Martini. Foote Whyte considera que sem esse ponto de apoio, teria sido impossível para ele, realizar um estudo tão intensivo como o que ele realizou em Cornerville.

Ao inserir-se na comunidade, Whyte descobriu a importância das relações pessoais para a sua aceitação. Foi aprendendo com a comunidade. Ou, com o que Loic Wacquant chamou de “saber indígena” em Corpo e Alma. Em dado momento (p.317) Foote Whyte se dá conta, durante a noite final do campeonato de boliche, da importância da estatística para os métodos de pesquisa de campo.

O papel do informante ganhou tanta importância no método de Foote Whyte que Doc foi gradativamente passando de um informante-chave para um “colaborador” da pesquisa. De tal forma, que Foote Whyte chega a admitir que algumas das suas interpretações são mais de Doc do que propriamente suas. E que se tornara impossível desemaranhá-las. Foote Whyte também aprendeu que não era necessário uma “imersão total” e abandonou essa pretensão ao ser avisado por Doc que as pessoas não esperavam que ele se comportasse igual a elas ou as imitasse. Mas, bastava apenas que tivesse um interesse amigável por elas. O autor, no processo de imersão, utilizou-se de expedientes como emprestar dinheiro, participar de gangue, envolver-se nas eleições locais, praticar corrupção eleitoral, participar de lutas comunitárias, e até envolver-se em incidentes passionais em um bar. Isso tudo o levou a ultrapassar limites éticos e a cair numa crise de consciência. Pois, tendo sido ele criado como “um respeitável cidadão de classe média, seguidor da lei” se viu “assumindo comportamentos que havia aprendido a considerar imorais”. Além da violação da ética, Whyte concluiu também que teria violado, do ponto de vista prático da pesquisa, a ética profissional.

É muito interessante examinar a obra de William Foote Whyte tendo em vista a sua passagem ao largo de toda uma tradição sociológica que tratava de áreas pobres e degradas como espaços “desorganizados”. Esse afastamento pode ter assegurado a quase pureza do método de Whyte que depois de conhecer toda essa produção não utilizada, a considerou, inútil e enganosa. Foote Whyte foi revolucionário em seus métodos e entregou a própria pele para provar suas verdades, até o fim. Essa autenticidade irritou a academia e por pouco não inviabilizou o seu doutoramento. Mas, no final, seu método venceu e ele pôde aprender e também nos ensinar “que é possível cometer erros estúpidos e equívocos sérios, e ainda assim produzir um estudo de mérito”.

Loic Wacquant me parece menos aflito em relação a questões metodológicas em Corpo e Alma. Seu método parece fluir mais facilmente através da sua imersão e vice-versa. E uma imersão de tipo “total” parece ser o alicerce do seu método. Wacquant utiliza como principal ferramenta de pesquisa o seu próprio “eu”, o corpo físico e os sentidos, os significados e os significantes dispostos no campo como um legítimo “ser que sofre”. O autor, não aparentando a mesma ansiedade que Foote Whyte em relação aos métodos a serem desenvolvidos e utilizados no seu trabalho. Não deixa de ser igualmente cuidadoso com eles. Loic Wacquant parece buscar uma conversão moral e sensual ao cosmo como técnica de observação e de análise “com a condição expressa de que ela seja teoricamente instrumentada” (p. 11, 12). Para “permitir a aproximação através da prática dos esquemas cognitivos, éticos, estéticos e conativos que põem para operar cotidianamente aqueles que o habitam” (p. 12). Ou seja, durante toda a jornada do seu estudo, Wacquant parece perseguir a comprovação da afirmação de seu mestre, Pierre Bourdieu, de que “aprendemos com o corpo”.  Desde o inicio, Wacquant empenhou-se em registrar tudo em um diário etnográfico. Chegando a juntar duas mil e trezentas páginas de notas brutas. Nesse diário o autor registrava os detalhes (conversas, interações e acontecimentos) relacionados com os desafios que o confrontavam com o seu próprio corpo. 

Tal como Foote Whyte em Sociedade de Esquina, Wacquant também buscava outro objeto de estudo. Apenas uma estratégia de imersão. Era o que inicialmente representava o Gym para o estudo de Loic Wacquant. Assim sendo, os métodos a serem utilizados para estudar a realidade cotidiana do gueto norte-americano, objetivo inicial do autor, não poderiam ser os mesmos para dar conta de um estudo que agora levaria em conta o próprio corpo como “instrumento de investigação e vetor de conhecimento” (p.12).
Semelhante a Foote Whyte, Wacquant também recusou a idéia (a qual julgava falsa) de que o gueto seria um universo “desorganizado”. E se insurgia contra a noção que relacionava divisão racial e marginalidade urbana. Ambos os autores, um da Universidade de Chicago e o outro da Universidade de Harvard confrontavam-se com a visão da famosa Escola Sociológica de Chicago. 

Wacquant ao utilizar o Boxe como ferramenta para se inserir na comunidade, acabou se vendo imerso numa “prática intensamente corporal, numa cultura totalmente cinética, num universo no qual o mais essencial se transmite, se adquire e desdobra-se aquém da linguagem e da consciência. Enfim, em uma instituição feita de homem (ns) e que se situa no limite prático e teórico da prática” (p. 15). Loic Wacquant se viu imerso no encantador mundo do Boxe. E resolveu fazer dele seu objeto de estudo. E de seu próprio corpo, o instrumento privilegiado dessa investigação e aprendizado. Se o próprio corpo de Wacquant seria a partir de agora o seu principal instrumento de pesquisa e aprendizado seria preciso prepará-lo. E a preparação em si já representaria ao mesmo tempo uma importante etapa do desenvolvimento metodológico para o trabalho e os primeiros experimentos em campo. Por três anos, em cerca de três a seis sessões por semana, Wacquant preparou, aprimorou e fez funcionar seu instrumento de pesquisa no campo. Desenvolvendo e aplicando seu método de “participação observante” com tanta profundidade que chegou a ser seduzido por seu objeto. “na embriaguez do mergulho, durante algum tempo, cheguei a pensar em interromper minha carreira universitária para ‘passar para o lado’ dos profissionais”. Escreveu na página 20 de Corpo e Alma. Tal “embriaguez” também chegou a tomar conta de William Foote Whyte quando o mesmo se pôs a imitar os garotos da esquina, até ser por eles contido. No caso de Wacquant, seu orientador Pierre Bourdieu foi fundamental para demovê-lo da ideia de trocar definitivamente a Universidade pelo Gym. Esse deve ser possivelmente, o maior risco do método da observação participante. Principalmente quando ocorre uma exagerada empatia ou identificação extrema do etnógrafo com o objeto de estudo. E talvez, o rompimento dos limites da observação participante que também estão presentes nas atitudes de Foote Whyte que chegou a participar de atos eticamente e profissionalmente contestáveis. Mereçam mais a denominação de “participação observante” do que de “observação participante”. Sem necessariamente ter que ficarem marcadas pelas consequências éticas, morais e técnicas prejudiciais que possam vir a desencadear.

Se Foote Whyte contou com Doc, seu informante-chave quase perfeito. Wacquant contou com DeeDee um informante-chave “quase pai”. Ambos os informantes-chave cumpriram papéis decisivos para o sucesso das duas obras. Sendo que Doc teve um desempenho bem mais destacado do que o velho treinador.
Wacquant apresenta como uma das vantagens do seu método da “participação observante” a eliminação do “paralogismo (falso, mas que tem aparência de verdade. Para alguns, o paralogismo é diferente do sofisma, pois não é produzido de má-fé, isto é, não é intencionalmente produzido para enganar) Ecológico” que afeta a maioria dos estudos sobre o Boxe.

Wacquant foi inicialmente “traído” pelo seu recurso metodológico de utilizar-se do Boxe como uma “janela” para o gueto. E logo depois foi agraciado pelo Boxe com a oportunidade de desenvolver um novo método sensorial forjado empiricamente por, e para, o estudo dessa arte que ele mesmo chegou a dizer, usando as palavras de Thomas Hobbes, que proporciona aos boxeadores uma existência comparável ao “estado de natureza” devido a ser miserável; brutal; e curta.

O método de Wacquant o levou a conhecer concomitantemente o mais profundo do seu objeto de estudo e do seu próprio “eu”. Fazendo com que a sua afirmação: “É o ‘pequeno ambiente’ do Gym como um todo, ‘como feixe de forças físicas e morais’ que fabrica o boxeador”, possa valer igualmente, no seu caso, para o etnógrafo e para sua específica etnografia. Por fim, o método de Wacquant possibilitou, segundo ele próprio, organizar uma experiência de aprendizagem em três objetivos principais:

Primeiro: Apresentar dados etnográficos precisos e detalhados, produto da observação direta e pela participação intensiva. Segundo: Destacar desta base documental, alguns princípios organizacionais do Boxe; e terceiro: Esboçar uma reflexão sobre a iniciação a uma prática da qual o corpo é ao mesmo tempo a sede, o instrumento e o alvo.

Até no tocante a organização do livro, Wacquant foi metódico. Resolveu organizá-lo com base no princípio dos vasos comunicantes: “A proporção de análise e de relato, de conceitual e de descritivo, invertendo-se progressivamente à medida que as páginas avançam”.

Resultados

Wacquant efetivamente ofereceu dados etnográficos precisos e detalhados sobre o universo social do Boxe. E contribuiu para tornar esse universo menos mal conhecido; lançou mais luz sobre os vínculos e rupturas que marcam a relação do Boxe com a violência, especialmente nos guetos; comunicou sobre o Boxe, que essa arte reside na fronteira entre natureza e cultura. E assim abriu um gigantesco “portal multidimensional” através do qual é possível transitar por múltiplas abordagens capazes de explorar tanto o “Boxe-natureza” quanto o “Boxe-cultura”, misturá-los e estudá-los conjuntamente, olhar para eles com as lentes de Hobbes, ou de Geertz, ou quem sabe até de Aristóteles. Afinal, o “estado de natureza”, a “interpretação das culturas” ou mesmo a “potência” podem oferecer analogias e ferramentas importantes para corroborar os resultados dos estudos de Loic Wacquant a respeito do Boxe.

Para a etnografia, Wacquant traz como importantes resultados, a desmistificação de vários aspectos relacionados com o envolvimento do pesquisador com o objeto de estudo; ele esclareceu na prática, os riscos do envolvimento profundo do pesquisador, e realizou um tipo de relato que Geertz provavelmente consideraria como uma descrição “densa”. Wacquant foi ao mesmo tempo pesquisador e objeto já que chegou mesmo a fundir-se, em certos momentos, ao universo estudado, convertendo-se em parte do campo.  Se Foot Whyte imergiu no campo para encontrar suas respostas. Loic Wacquant foi além. Aspirou o campo a sua volta e deixou-se tomar pelo objeto. E essa contribuição é relevante não só para a antropologia que desde Malinowski talvez não tivesse experimentado uma imersão tão original.

Entregar a própria pele para provar as suas verdades, é, na definição de Che Guevara, uma qualidade de um tipo especial de aventureiro. Wacquant entregou a sua pele, o seu corpo, e a sua alma. Talvez isso possa fazer dele mais do que um aventureiro do tipo romântico e especial. Mas acima de tudo, um tipo especial de antropólogo, um bom exemplo e motivação para a etnografia e para as ciências sociais.

Em relação aos resultados de William Foote Whyte, o relato de Angelo Ralph Orlandella sobre o impacto do trabalho deste cientista e a influência sociológica do mesmo em seu comportamento, é apenas a ponta do iceberg no tocante a contribuição deste intelectual para as ciências humanas, para a etnografia e para a comunidade a qual estudou. A contribuição efetiva de Whyte para a comunidade onde atuou é um importante diferencial do seu trabalho e também uma distinção em relação ao trabalho de Wacquant. O autor de Corpo e Alma deixou um importante legado para as ciências humanas e para o esporte que estudou e praticou. Mas sua contribuição para o gueto onde realizou sua pesquisa, salvo os impactos indiretos, não parece digna de comparar-se aos resultados de Foot Whyte que se envolveu com as questões locais, procurou amenizar os dramas pessoais e sociais dos moradores do local, participou de entidades comunitárias, conseguiu bolsa da universidade para colaboradores locais de sua pesquisa, preocupou-se em retornar os resultados para indivíduos e instituições da comunidade.  Wacquant também protagonizou envolvimentos pontuais com problemas das pessoas com as quais convivia e procurou também ajudá-las. Mas até devido aos caminhos pelos quais seu estudo enveredou, não teve um foco ampliado sobre a comunidade. Mas sim, restringiu seu foco ao Gym, ao boxe e ao seu público mais doméstico.

Os erros políticos, éticos e epistemológicos de Whyte aproximaram-no mais ainda da realidade cotidiana de Cornerville e da forma que as pessoas daquele lugar viviam. Se a maior riqueza, em minha opinião, do trabalho de Wacquant está relacionada com a emergência do conhecimento sensorial impulsionado pela ação do corpo num universo específico e denso; e seu impacto revolucionário no mundo acadêmico e, sobretudo na etnografia. No caso de Foot Whyte vejo como o ponto mais alto da sua contribuição a catalisação do que Ruth Benedict chamaria de diversas “feições culturais” da comunidade de Cornerville para gerar uma obra com potencial universalizante em se tratando de comunidades pobres e degradadas. O legado de Whyte em “Sociedade de Esquina”. Penso eu. Está mais relacionado com o coletivo do que com o individuo. Embora, Orlandella evidencie também este resultado como derivado da sua ação.

Loic Wacquant se revolucionou para revolucionar a etnografia. Foote Whyte revolucionou a etnografia para, por meio disto, revolucionar a banalidade opressiva que dominava a sua vida. Ambos fizeram uma jornada entre mundos diferentes. Foote Whyte se arriscou mais na comunidade, e, portanto, sofreu mais hostilidades. E teve que aprender a adaptar-se mais ao exterior. Wacquant se refugiou no Gym. E dessa forma, sofreu menos a hostilidade do mundo estranho. Loic Wacquant teve a orientação firme de Pierre Bourdieu e a proteção quase paternalista de DeeDee. Mas, nem por isso, deixou de viver todo o desgaste e a pressão física e psicológica que oprime quem ousa pôr o corpo e a alma no ringue. Foot Whyte por sua vez, saiu garimpando ajuda, informações, orientações. Órfão até de uma bibliografia adequada para o seu trabalho, teve que fabricar a rede, a canoa e os remos, e ainda lançar os “alevinos” no lago, para só depois deles crescidos, aprender e praticar a pesca. 

Considero o trabalho de Wacquant, heroico, mágico, aventureiro e profundo. Mas confesso que me agrada muito mais o experimentalismo sincero de Foote Whyte. Não que Wacquant também não tenha sido sincero. Mas considero entregar-se em favor da comunidade, hierarquicamente superior a entregar-se por um esporte, pela academia, ou por si próprio. Deve ser alguma limitação teórica ou ideológica a qual ainda não consegui superar. Ou até mesmo algum tipo de preconceito. Mas a verdade é que me sinto mais impressionado pelo espírito reformador de William Foote Whyte.

Por Johnson Sales.