Pesquisar este blog

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Ao som do mar



*
Era uma dessas noites com hálito frio que insiste em beijar a sua face e envolver o seu corpo. Passava das duas da manhã. A única companhia que me restava era um dos meus inconfundíveis cigarros de palha apagando várias vezes por causa do vento que vem do mar. Não me parecia que mais nada de interessante pudesse acontecer naquela madrugada fria. Mas, a vida surpreende. E esta cidade, também. E lá estava ela. Vinha desfilando, como era a sua forma natural de caminhar, sobre as pedras meio soltas da rua escura. Enchi novamente a taça de vinho, traguei forte; e fiquei a esperar. Já se passaram cinco anos desde a última vez que estivemos, voluntariamente, a sós em algum lugar. A sós, a gente não funciona muito bem, não para os padrões sociais de nossa época. E certamente, devemos ter piorado um bocado nesta meia década. Ela aproximou-se, me olhou, sorriu cinicamente, sentou-se do meu lado, pediu um trago do cigarro, bebeu da minha taça. E disse:
 - Já faz muito tempo.
 - É... Faz sim.
- Estou querendo carona.
- Pode ser!
E caminhamos em silêncio até o carro estacionado do outro lado da rua. Seguimos pela beira-mar. Conversamos amenidades. Mas, era tenso o clima, e excitante a situação. Sempre soubemos que somos feitos do mesmo material. Somos igualmente prejudiciais um para o outro. Somos perigosos, porque nos conhecemos bem demais.
Ambos queriam revisitar as nossas peles arrepiadas e inebriar-se nos nossos perfumes. Mas, quem ousaria tomar a iniciativa? Quem daria o primeiro passo em direção ao precipício? Passaram-se milênios em alguns minutos de silêncio e desejo. Ela resolveu aventurar-se:
- Vai me levar direto pra casa? Perguntou.
- Pra onde mais?
-Pra algum lugar mais interessante, talvez?
- Sua casa não é interessante?
- Tem gente demais por lá.
-Tem um lugar que nós dois conhecemos bem. Mas fica a duas horas de viagem daqui.
- Sei. Praia, manta, “fumaça verde” ao som do mar...
- É... como em tempos passados.
- Tempos bons?
- Nem tanto. Tempos que já se foram.
- Não podem voltar?
- Não. Não devem voltar.
O dia estava amanhecendo quando chegamos à praia. Ela dormia no banco do carona. E no som do carro, tocava N.W.A. Resolvi procurar alguma pousada para descansar. 


Parei numa aconchegante pousada no alto de um morro com vista privilegiada para o além mar. No quarto confortável e decorado com quadros e artesanatos locais encontramos uma grande cama macia com dois travesseiros de pena de ganso e lençóis limpos.  Ela, sonolenta, não pensou em dormir. Eu - que quase não durmo - não me fiz de rogado. O dia amanheceu ao sabor de um Chardonnay e do agridoce paladar dela que se iluminara em gotas prateadas de um passado à meia-luz.

**
Doze horas e quarenta e sete minutos marcava o relógio digital do meu telefone celular, quando despertei. O som das ondas quebrando na praia podia ser ouvido ao longe. Abri a janela do quarto e a luz ofuscou os meus olhos. Voltei o olhar para a cama e não avistei o seu corpo, fui até o banheiro e ela também não estava lá. Não vi sinal algum da sua presença. Talvez tivesse decidido caminhar na praia como era o seu costume. Tomei um banho e sai para tentar encontra-la na praia. Antes, perguntei na recepção se alguém a teria visto sair, e fui informado que não. Percorri as ruas principais do lugarejo, observando atentamente cada lanchonete e até mesmo os bares. Desci para a areia e caminhei por toda a extensão da praia, passando por cada barraca ao longo do caminho. Nada. Perguntei a alguns pescadores se tinham visto alguém com as suas características e ouvi deles que sim, muito cedo, alguém com essa aparência estava parada no alto do morro observando o mar. Decidi voltar para a pousada e aguardar por ela.


***
A palha queima mais lentamente e o fumo rende bem mais. A questão é que também queima com mais dificuldade e apaga constantemente. É preciso certa destreza para manter aceso o prazer. A brisa vem quente e torra as horas até que a tarde caia febril pela insolação. Ela não veio. Contato algum. Ao retornar da praia, havia perguntado aos funcionários da recepção se alguém teria procurado por mim na minha ausência? Ninguém. Foi o que me responderam. A noite já vinha chegando. Decidi pagar a pousada e partir. Antes, fui ver o sol se recolher por trás das dunas e levei comigo um Malbec, dois maços de Souza Paiol e o “solto” que me restara. O som do mar embalou pensamentos desencontrados e degustações ininterruptas de êxtases compráveis. A noite se instalou, a lua veio, e as sereias cantaram alto demais.


****

Pneus arrastando queimam o asfalto, vidros se estilhaçam e o barulho é ensurdecedor. Acordo subitamente e sem entender o que se passara. Abro a cortina e posso constatar, do alto do segundo piso, que um acidente interrompera o trafego na avenida em frente. Minha cabeça dói. A realidade da vez toma conta da minha bagunçada consciência. Como é que eu vim parar aqui? Estou em casa. Começo a procurar na memória, a noite que passou. Não encontro nada. Tenho uma vaga lembrança de que estive com ela na praia. Impossível! Grita-me o bom senso. Talvez eu tenha apenas sonhado. Um delírio, uma passagem por alguma dessas muitas realidades alternativas onde a felicidade, se não fica, pelo menos flerta – entre o bálsamo e a perversidade – comigo, e com o que ainda resta de sonho em mim.



DJ de S.