Nos últimos 40 anos, a Terra perdeu 30% da sua biodiversidade. No
Brasil e na Amazônia, sacrificou-se quase 60% da fauna e flora
originais. Se não houver mudanças, em 2050 o planeta estará encrencado
Por Marleine Cohen
Se a emissão atual de gás carbônico na atmosfera não for refreada antes
de 2016, é bastante provável que a temperatura média do planeta suba
mais do que 2oC. Caso aumente entre 1,4oC e 5,8oC, confirmando o cenário
projetado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas
(IPCC) para 2100, o próximo século viverá encrenca grossa.
Fazer previsões é sempre muito arriscado, mas os cientistas só podem
usar os dados de que dispõem. Na verdade, a cada ano os estudos sobre a
crise ecológica se acumulam e os cenários se agravam. Se o IPCC estiver
certo, há chances de “mudanças radicais, prejudiciais, abruptas e
potencialmente irreversíveis”, que deveriam ser evitadas. Com mais
calor, o nível do mar deverá subir entre 8 e 88 centímetros, acarretando
maior incidência de inundações, secas e epidemias. A degradação
ambiental vai prejudicar a capacidade do planeta fornecer peixes e água
doce, reciclar nutrientes do solo e controlar o próprio clima. O número
de espécies da flora necessárias para assegurar o equilíbrio cairá, em
prejuízo da qualidade do ar. Parte substancial da fauna desaparecerá.
A Terra está entrando numa nova era geológica, afirma um grupo de
estratígrafos, deixando o atual período Holoceno e inaugurando o
Antropoceno, a época em que a ação humana constitui um fator de mudanças
geofísicas, “a idade recente do homem”, segundo o químico holandês Paul
Crutzen. Com efeito, se a população mundial chegar a nove bilhões de
pessoas em 2050, e estabilizar, como prevê a ONU, aumentará a pressão
por alimentos, água, madeira, fibras e combustível – e a busca do padrão
de consumo do Primeiro Mundo. Diante dos impactos previsíveis, a
conservação dos recursos naturais torna-se crucial, desde agora.
Quanto mais próspera a sociedade, mais pobre o planeta? A equação
perversa é lógica antes de futurologia: com nove bilhões os recursos e
os serviços ecossistêmicos estarão comprometidos, sim, a menos que
ocorram mudanças tecnológicas e sociais decisivas. Em geral,
historicamente, as previsões apocalípticas subestimam o poder da
inovação e da necessidade. Mas, se os impactos negativos se acumularem,
as Metas de Desenvolvimento do Milênio, definidas pela ONU, no ano 2000,
para erradicar a fome, a mortalidade infantil e as doenças, não serão
atingidas. “Se continuar como está, em 2050 a humanidade atingirá um
ponto sem retorno”, diz o biólogo Thomas Lovejoy, conselheio-chefe de
Biodiversidade do Banco Mundial. Em outras palavras, se o homem não
aposentar as tecnologias poluentes e der um ponto final ao desperdício,
era uma vez a biodiversidade. Mais uma tragédia anunciada.
Estado do Planeta
Nunca houve tantos e tão convincentes estudos sobre a saúde do planeta.
Aos poucos, os ambientalistas ganham eloquência para questionar o
modelo de desenvolvimento dominante e apontar correções. De acordo com o
Relatório de Avaliação Ecossistêmica do Milênio, publicado em 2005, que
reuniu 1,36 mil especialistas de 95 países para avaliar o impacto das
mudanças ambientais sobre o bem-estar humano, a Terra nunca foi tão
degradada como nos últimos 50 anos. Nada menos que 60%, ou 15 dos 24
serviços ecossistêmicos examinados, têm sido usados de forma não
sustentável.
Entre 1960 e 2000, período em que a economia global cresceu mais de
seis vezes, a demanda ligada a serviços dos ecossistemas – pesca,
fornecimento de água, tratamento de resíduos, regulação climática e
qualidade do ar – acompanhou o aumento da população. Enquanto esta
duplicava, duplicou a extração de água dos rios e lagos e a capacidade
hidrelétrica instalada. O volume de água confinada em diques
quadruplicou e o de água retida nos reservatórios já é de três a seis
vezes maior do que o dos cursos d’água naturais. Quanto à produção de
alimentos, cresceu 2,5 vezes; a produção de madeira de corte aumentou
mais de 50% e a exploração de madeira para papel e celulose triplicou.
Desde 1750, a concentração atmosférica de dióxido de carbono (CO2) na
atmosfera aumentou 32%, sobretudo em decorrência da combustão de
combustíveis fósseis e mudanças no uso do solo. Quase 60% desse aumento
foi registrado a partir de 1959. De 1945 em diante, mais terras foram
convertidas em lavouras do que nos séculos 18 e 19 juntos. A atividade
agrícola já absorve quase 70% de toda a água usada no mundo. Florestas,
savanas e manguezais estão desaparecendo em ritmo alarmante. Com a
rarefação da cobertura vegetal, o número de espécies da flora e da fauna
entrou em declínio veloz, aponta o estudo. Nos últimos séculos, a
taxa de extinção aumentou mil vezes em comparação com outras
taxas históricas.Segundo o ecólogo sueco Johan Rock- ström, estamos
diante do sexto maior evento de extinção de espécies da história da
Terra (o primeiro foi a extinção dos dinossauros no período Terciário,
que levou à ascensão dos mamíferos). De 10% a 30% das espécies de
mamíferos, aves e anfíbios começaram a desaparecer.
Outro levantamento – o Relatório Planeta Vivo 2010, publicado pela
organização ambientalista World Wildlife Fund (WWF) – indica que, nos
últimos 40 anos, o mundo perdeu 30% de sua biodiversidade. Nos países
tropicais – entenda-se Brasil e a Amazônia em particular –, a ferida é
mais profunda e sacrificou quase 60% da fauna e flora originais.
Comparativamente à última medição do Índice Plane- ta Vivo (IPV), que
monitora a saúde de 8 mil populações de mais de 2,5 mil espécies desde
1970, as conclusões são mais preocupantes: a ação antrópica (derivada do
homem) está superando a biocapacidade do planeta em 50%, o que
significa que devastamos em um ano o que os ecossistemas demoram 18
meses para repor.
Valoração em alta
Se nos contos de fada a biodiversidade representava a mesa farta que
provê a vida ao homem, nos manuais de subsistência atuais ela nos obriga
a aprender a viver. Diante dos flagelos ambientais que a era
pós-industrial impõe ao planeta, a humanidade precisa aprender a tratar o
ambiente como um organismo vivo exposto a uma doença. Mais: entender
que desse metabolismo em reequilíbrio depende seu bem-estar e
sobrevivência. Ainda não deixamos de interferir em paisagens intactas e
de dizimar florestas primárias, premidos pela necessidade de alimentar
sete ou nove bilhões de bocas. Mas, ao menos, já plantamos a semente do
basta.
A mudança é sutil, se comparada à gravidade dos números da degradação
ambiental, mas ainda assim é uma inflexão importante: o homem percebeu
que, por trás de nomes científicos de espécies que nunca verá, se
encontra sua própria salvação. Ou, como explica Lovejoy, por trás do
veneno de uma Lachesis muta, serpente conhecida no Brasil como surucucu,
está a fórmula da regulação da pressão arterial dos hipertensos. Da
mesma forma, “enquanto o caramujo rosado garantiu a cura da doença de
Hodgkin, aprendemos que uma substância química da saliva das
sanguessugas se presta a dissolver coágulos de sangue durante cirurgias,
e que a casca do teixo-do-pacífico oferece es- perança às vítimas de
câncer de ovário”, escreveu o entomologista Edward Wilson no livro
best-seller de 1992, A Diversidade da Vida. “É por isso que se deve
zelar pelos recursos naturais do globo.”
Mas não só por isso. O homem constatou que os custos econômicos da
extinção da biodi- versidade e do desmatamento são sempre altos e
aprendeu a atribuir valor aos recursos naturais que ainda restam à sua
volta, ressalta o ecólogo brasileiro José Galizia Tundisi, do Instituto
In- ternacional de Ecologia: “Áreas protegidas com mananciais de boa
qualidade precisam de pou- co investimento em tratamento. Cerca de R$ 3
por mil metros cúbicos de água tratada, no má- ximo. Mas, quando há
desmatamento e degra- dação dos mananciais, esse custo pode chegar a R$
300 por mil metros cúbicos.”
O homem aprendeu que o colapso da pes- ca de bacalhau em Newfoundland,
Canadá, em 1992, em consequência da superexploração, resultou na perda
de milhares de empregos e custou pelo menos US$ 2 bilhões em
seguro-desemprego. Compreendeu que o surgimento de algas nocivas em
zonas costeiras, como na Itália, em 1989, também por ação antrópica de-
senfreada, acarreta prejuízo de US$ 10 milhões ao setor de aquicultura e
elimina US$ 11,4 milhões de receita da atividade turística nacional. E
descobriu que inundações provocadas por erosão do solo causam epidemias
de cólera na Somália, Tanzânia ou em Moçambique. Desmatamento
desenfreado
Segundo o estudo Planetary Boundaries, coordenado por Rockström na
Universidade de Estocolmo, neste meio século, mais do que ultrapassar
três das nove fronteiras planetárias tidas como “espaço operacional
seguro para a humanidade”– clima, biodiversidade e poluição de fósforo e
de nitrogênio –, o que o homem fez foi rever conceitos.
Um deles é o mito da Amazônia. O desmatamento da floresta se tornou
efetivo entre os anos 1960 e 70, quando, em plena ditadura militar, o
presidente Emílio Médici promoveu “a integração nacional”, doando “terra
sem homens para homens sem terra”. Considerada improdutiva, e
assombrada pelo fantasma político da Revolução Cubana, que instalou
campos de guerrilha nas florestas do Pará, a Amazônia passou a ser
sistematicamente degradada. Diante de suas intermináveis distâncias e da
ausência de mercados, prosperaram as atividades produtivas mais
autossuficientes e toscas: de madeira, garimpo, mineração e pecuária.
Resultado: entre 1972 e 2012, a taxa de desmatamento passou de 1% para
18%. Grandes rodovias, como a Transamazônica, flanquea- ram o sacrifício
de matas e sua fauna. Entre os anos 1970 e 1980, a média anual de
desma- tamento chegou a 19.840 quilômetros quadrados – uma área
equivalente à de Israel. O mundo considera o Brasil um insaciável
destruidor de florestas.
O impacto sobre o banco das espécies vivas pode ser medido pelo fato de
uma única árvore amazônica abrigar 1,7 mil tipos de invertebrados, de
formigas a aranhas, de abelhas a besouros. Só 10% dessa biodiversidade
foi catalogada pela ciência, enquanto é das florestas tropicais que
provêm 25% de todas as substâncias usadas no tratamento de câncer,
segundo o Instituto Nacional do Câncer dos EUA. Queimamos um banco
central de inovações químicas.
Não por acaso, entre as riquezas imediatas, a floresta escondia o maior
garimpo a céu aberto, Serra Pelada, no Pará, para o qual afluíram, no
auge da corrida pelo ouro, nos anos 1980, 100 mil garimpeiros, para
trabalhar em condições subumanas de higiene e trabalho, poluindo de
forma irreversível a água e o solo. Nesse mesmo período, obras
faraônicas, como as hidrelétricas de Tucuruí, sobre o Rio Tocantins, e
de Balbina, perto de Manaus, foram construídas inundan- do florestas
sumariamente.
Economias toscas geram relações sociais correspondentes. Nos anos 1990,
ainda estarrecida com a repercussão do assassinato de mais um líder
sindical rural, o seringueiro Chico Mendes, em 1988, a Amazônia assistiu
a uma nova e assustadora expansão predatória da pecuária. Entre 1990 e
2007 seu rebanho bovino passou de 26,6 milhões para 70 milhões de
cabeças. O ano de 1995 testemunhou um recorde histórico: 29.059 km2
desmatados.
A década culminou com a realização da Eco- 92, no Rio de Janeiro, um
divisor de águas na emergência do eco- logismo e da susten- tabilidade.
No Rio, finalmente, “a biodiversidade foi elevada ao status de problema
internacional”, nota Lovejoy.
Urgência urgentíssima
Cada vez mais pressionado pela comunidade internacional, o Brasil
registrou avanços desde então: a demarcação de terras indígenas ganhou
fôlego – em 1972, havia 200 mil índios; hoje, eles são 900 mil –,
enquanto as unidades de conservação também se multiplicaram pelo País,
totalizando, em 2010, 1.174.258 km2 ou 23,5% do território, contra
28.087 km2 nos anos 1970. Uma conquista, sem dúvida. Apenas 13% da
superfície de terra do planeta e 7% dos mares costeiros estão
protegidos.
O novo milênio trouxe à Amazônia feições mais civilizadas: com 24
milhões de habitantes e taxa de crescimento superior à média nacional,
segundo o Instituto Brasileiro de Geo- grafia e Estatística (IBGE), a
região é hoje alvo de políticas de maior controle do agronegócio, da
mineração, da pecuária e da exploração de madeira. O desmatamento caiu
de 29 mil km2 para 7 mil km2 – outra notável conquista.
Recentemente, porém, o modelo imediatista parece ter ganho contornos
sombrios com a atual revisão do Código Florestal, que propõe uma
legislação ambiental mais branda, para surpresa da comunidade
científica. O biólogo Carlos Joly, criador do Programa Biota, da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), considera
a mudança em curso o “pior revés ambiental da história do País em meio
sé- culo, com severas e irreversíveis consequências para muito além das
suas fronteiras”.
A morte da Floresta Amazônica pode estar na próxima esquina, admite
Lovejoy. “O Banco Mundial encomendou um estudo para avaliar a
possibilidade de a chamada região do Arco do Desmatamento (que atravessa
Pará, Mato Grosso, Rondônia e Acre) desaparecer em decorrência de um
aumento de 2,5°C na temperatura do planeta, associado a incêndios e
desmatamentos. Os resultados sugerem que o gatilho pode ser uma taxa
total de desmatamento de 20%. Atualmente, o índice é 18%.” O biólogo
americano não está preocupado com acusações de catastrofismo: “Se a
temperatura do planeta realmente subir mais do que 2oC, a Terra mer-
gulhará realmente na sexta maior extinção em massa da sua história.”
Engana-se quem projeta a tragédia para um futuro muito distante. Todas
as autoridades científicas são unânimes em situá-la entre os próximos 50
e 100 anos, se o atual padrão de destruição for mantido. Se, na
maratona pela preservação da sua espécie, o homem mal começou a correr e
a se questionar, pergunta-se, antes de mais nada: vai dar tempo?
Fonte:
http://revistaplaneta.terra.com.br/secao/meio-ambiente/um-mundo-e-o-bastante