Certa vez, me vi às voltas com um
debate envolvendo a existência, ou não, de valores universais próprios da
humanidade em qualquer que sejam as civilizações. Tal esforço intelectual de tão
presunçosa (ou desavisada) envergadura se dava entre participantes de uma rede
social que congregava intelectuais vinculados à vida acadêmica. Na ocasião, eu
defendia que a preservação da vida humana seria um valor “universal”. E fui prontamente
questionado por um colega, que ao que me pareceu gostaria de me ver apontar as
bases conceituais ou científicas de tal afirmação. Na ocasião, pelo que me
lembro, desviei das bases teóricas acadêmicas e afirmei que a academia não dá
conta da totalidade das questões culturais ou sociais humanas e que buscar
unicamente nela respostas para tais questões seriam limitações academicistas. Mas no entanto, não apresentei maiores considerações sobre minha visão. A
despeito do resultado ou consequências do referido episódio, esta questão
ganhou em meu pensamento, relexões e autocrítica um lugar de relevância.
Ruth Benedict em “Padrões de
Cultura” (Ed. Livros do Brasil, Lisboa) escreve:
Podíamos supor que na questão de privar alguém da vida todos os povos concordariam
na sua condenação. Ao contrário, na questão de homicídio pode afirmar-se que
ele não é censurável, se se romperam as relações diplomáticas entre dois povos
vizinhos, ou que é costume matar os primeiros dois filhos, ou que o marido tem
o direito de vida ou de morte, ou que é dever do filho matar os pais antes de
serem velhos. Pode suceder que se mate o que rouba uma galinha, ou aquele a
quem nasçam primeiro os dentes superiores, ou que nasça numa quarta-feira.
Entre certos povos sofrem-se tormentos por se ter causado acidentalmente uma
morte; entre outros o facto é coisa sem importância. O suicídio pode também ser
uma questão fútil, o recurso de alguém que tenha sofrido qualquer leve censura,
um acto que é frequente numa tribo. Pode ser o acto mais elevado e nobre que um
homem pode cometer. Mas pode suceder que só a própria referência a ele seja
motivo da mais incrédula chacota. E propriamente o acto em si ser inconcebível
como coisa possível. Porém, ser um crime punível por lei, ou considerado como
pecado contra os deuses.
Ruth Benedict aborda, em relação
ao conjunto do texto originário, tais questões sobre a “lente” da integração e relativização das culturas e busca situar
tais práticas num universo de costumes e padrões comportamentais que se
apresentam como “feições culturais”
distintas e possíveis entre as diversas civilizações.
Diante de tal argumentação, me
vejo impelido a refletir sobre a origem histórica, social e política de cada
comportamento, padrão ou feição cultural identificada em cada dada civilização
na qual eles encontram-se “naturalizados”.
Eu sei, é um longo e complexo
debate que não tenho a pretensão de aprofundar aqui. Mas deixo o
questionamento: No caso dos exemplos apresentados pela autora, não haveria a
possibilidade do “valor” preservação da
vida humana encontrar-se subjugado por tradições e comportamentos histórica
e socialmente forjados? Trato a “preservação da vida humana” como “valor” devido
a sua aparente relação de proximidade com a sobrevivência biológica das
espécies. E como “universal”, devido à universalidade do ser humano. Mas
confesso que não tenho no momento a condição de definir se esse “valor” seria
aplicável tanto ao indivíduo, que despido das construções culturais de sua
civilização e de sua época, se visse diante da possibilidade de erradicação de
sua vida, ou se é possível fazer tais especulações em relação a uma civilização.
Também, por esse raciocínio, valor e instinto não seriam cofundidos e
sobrepostos? Sem falar que o próprio conceito (ou conceitos) de "valor" precisa ser trabalhado. Enfim, os estudos, reflexões e debates continuam...