Algumas considerações sobre o caso da reforma do polo
de lazer do Conjunto Ceará e as ações arrogantes do poder público quando se
trata da periferia
Desde o início da obra de reforma do polo de lazer do
Conjunto Ceará que o governo do estado e a prefeitura de Fortaleza veem
demonstrando um enorme desprezo pela organização local. Eles parecem se irritar
e não tolerar a organização e a visão estratégica dos grupos culturais e
sociais que atuam no polo de lazer. Eles demonstram não gostar da argumentação
racional e do trato institucional e republicano que o movimento adota.
Primeiramente, o poder público tentou impor um projeto
arquitetônico à reforma, numa Abordagem do tipo top-down,
querendo empurrar de cima para baixo a sua visão espacial e estética. Quando a
comunidade não aceitou, chamou estudantes de arquitetura da Universidade
Federal do Ceará/UFC e elaborou uma proposta alternativa de alta qualidade
técnica e participação popular, os representantes do governo estadual e da
prefeitura de Fortaleza reagiram com raiva e intolerância. Vencidos pela
mobilização comunitária que alinhou parlamentares da Assembleia Legislativa e
Câmara Municipal, movimentos sociais, coletivos e associações comunitárias, o
poder público recuou, e aceitou juntar os dois projetos, tecendo acordos e
gerando um projeto comum.
Se isso
parecia um final feliz, foi o contrário o que se deu. O poder público se
mostrou mais raivoso ainda, passou a não cumprir os acordos e a tratar a
organização comunitária como empecilho. Daí por diante nada mais caminhou
amistosamente. A obra ficou paralisada por três longos anos, pois o governo e a
prefeitura se recusaram a cumprir os acordos e o projeto negociado com a
comunidade. Quando retomaram a obra, já haviam causado estragos irreparáveis
como o abandono da sede do Coletivo Território Criativo, que havia sido
emprestada para sediar a construtora responsável pela reforma, e o prejuízo
financeiro para dezenas de empreendedores que dependem da praça para vender os
seus produtos e que ficaram três anos tentando sobreviver entre escombros,
falta de energia, e ausência de clientes, causados pela obra paralisada. Nesse
período, a comunidade insistiu, sem resultados, a retomar o diálogo. Afinal o
poder público não gostava e temia a organização dos agentes periféricos, que
por sua vez, se organizaram no Movimento S.O.S. Conjunto Ceará, para
reivindicar o óbvio: que o poder público retornasse à mesa de negociação e
cumprisse os acordos firmados.
E tudo
piorou! Além de não conversar com os comunitários, os responsáveis pela reforma
do polo de lazer ainda demoliram o prédio que lhes havia sido emprestado.
Derrubaram a sede do Coletivo Território Criativo, desabrigando o Polo Criativo
do Conjunto Ceará e dezenas de coletivos culturais e sociais que usavam o
imóvel para desenvolver atividades artísticas, comunitárias e sociais. Além
disso estão executando um projeto que é diferente do que foi acordado com a
comunidade, deixando de fora a construção de uma concha acústica no anfiteatro
(pista velha de skate), negando a garantia de retorno para todos os
empreendedores que atuam no local, e não tratando da gestão comunitária dos
espaços construídos, que deve ser feita pelos coletivos que já atuam no espaço.
E claro, reconstruir a sede do Coletivo Território Criativo que, pelos acordos
firmados, deve ser entregue para a gestão dos coletivos em forma de HUB Social
e Coworking.
De todos
esses relatos e por tudo o que aconteceu, foi possível perceber em cada ação,
em cada fala, em cada olhar dos representantes do poder público, um extremo
temor diante da organização e coerência demonstradas pelos representantes da
comunidade. Tal medo da organização dos agentes periféricos levou a uma ruptura
de diálogo e às consequências que todos estão vendo e sentindo.
A Perifobia
do Estado diante da autoafirmação das comunidades, pode ter raízes profundas no
clientelismo, no autoritarismo, no racismo e nos mais variados tipos de preconceitos da
elite contra os moradores das áreas empobrecidas e consideradas não nobres. Afinal, esses lugares de pretos e pardos, de descendentes indígenas, ciganos, de caboclas e caboclos, de gente tão misturada e diversa, parece, aos olhos dos "sabe tudo" do poder público, uma tremenda desorganização. A periferia, na visão deles, tem que ser "desestruturada" como aliás, até as Ciências Humanas eurocentrístas e "branquizadas" outrora colaboraram para mistificar. Mas, não. Os pretos, pardos, ciganos, LGBTQI+, os diversos e "despadronizados" desenvolveram a sua própria noção de organização, planejamento, desenvolvimento e políticas públicas. Há tempos, o sociólogo americano, William Foote Whyte já havia corrigido a "Escola de Chicago" e apontado formas sofisticadas de organização emergindo de comunidades periféricas. No entanto, os tecnocratas que "elaboram a vida dos outros" a partir das suas pranchetas, planílias de Excel e preconceitos, resistem em aceitar que a periferia pensa, elabora, propõe e se auto-organiza.
Só
o preconceito e o temor da organização da periferia, podem justificar a postura
dos agentes da prefeitura de Fortaleza e do governo estadual, nesse caso. Pois,
ter uma comunidade organizada, propositiva e colaborativa, buscando sempre a concertação
social e tentando ajudar o Estado a ajustar as políticas públicas para atender
as demandas da comunidade, devia ser acolhido e festejado pelo poder público.
Ter isso, na gestão pública, é contar com um precioso estoque de capital social
para garantir a governabilidade, a efetividade e os impactos positivos de qualquer
projeto político e administrativo. Mas o que se vê é um medo exagerado do protagonismo
da periferia, talvez o mesmo medo que nutriam em relação à organização dos negros escravizados, rebelados e libertos; dos quilombos; de Caldeirão. Nesse momento histórico a periferia tem muito da senzala, do quilombo, de Canudos. Será que a periferia assusta quando se mobiliza porque desperta a memória das elites, porque faz lembrar das resistências históricas do povo brasileiro, e faz se manifestar a perifobia ante a possibilidade da autoafirmação dos periféricos?
A Perifobia faz com que um distrito criativo seja
desejado e receba todos os esforços da gestão municipal e do governo do estado
para que seja implantado na praia de Iracema, mesmo custando milhões aos cofres
públicos, e um polo criativo construído com o esforço da comunidade e sem
investimento algum de dinheiro público, seja atacado, combatido e desmontado
pela prefeitura de Fortaleza e pelo governo do estado, no Conjunto Ceará,
bairro situado na periferia da capital. È possível que o polo criativo da periferia não será igual ao distrito criativo da "área nobre", talvez o polo criativo do Conjunto Ceará esteja mais para um "quilombo" do que para o "vale do silício". E isso, pode assustá-los ainda mais. É na realidade desses “dois pesos e
duas medidas” que se manifesta o que chamamos de PERIFOBIA.
Saiba mais em: http://blogmundospossiveis.blogspot.com/2022/03/a-perifobia-e-o-polo-criativo-do.html
Movimento Dias de Luta.
#sosconjuntoceará