Pesquisar este blog

terça-feira, 18 de junho de 2013

Nem "Massa" nem "Povo" - A Multidão tomou as ruas do Brasil


A mídia, os políticos, a polícia e os governos tentaram encontrar líderes convencionais por trás, ou à frente, das manifestações que eclodiram por todo o País. Queriam também definir os objetivos, ou um objetivo, para o movimento. Começaram chamando de vandalismo, depois tentando dizer que era por causa de R$ 0,20 ou ainda passar a imagem de que as pessoas estariam nas ruas sem saber o "porque ". Essa dificuldade de enquadrar ou rotular o que está acontecendo nas ruas do Brasil, é mais do que a velha cegueira, ou distorções clássicas da imprensa e do estado burguês em relação às ações do povo. Eles não compreendem o que está acontecendo! Não sabem como os mais diversos motivos e objetivos podem se coadunar em um grande "tsunami social" que avança pelas ruas e arrasta o aparelho repressivo, pondo em cheque, inclusive, o suposto monopólio da força, que pertenceria ao estado. Eles não entendem a falta de um, ou mais, grandes líderes hierárquicos à frente  das massas, do povo manipulado. A questão é que o que está na rua, até agora, não é a "massa" manipulada e nem o "povo" como eles entendem essas duas categorias. A novidade é que, o que está na rua, nesse momento, é a "Multidão"!

Para compreendermos melhor e não ficarmos tão desorientados quanto eles, vamos interagir com o pensamento do filósofo Antonio Negri e tentar entender do que se trata quando se fala de "Multidão".


Para uma definição ontológica da Multidão
Antonio Negri

1) Multidão é o nome de uma imanência. A multidão é um conjunto de singularidades. A partir dessas premissas, podemos imediatamente começar a esboçar a trama de uma definição ontológica do que resta da realidade, no momento em que o conceito de povo é libertado da transcendência. A maneira pela qual o conceito de povo foi delineado dentro da tradição hegemônica da modernidade é de todos bem conhecida. Hobbes, Rousseau e Hegel produziram cada um a sua maneira e de diferentes modos, um conceito de povo assentado na transcendência do soberano: nas cabeças desses autores, a multidão era considerada como caos e como guerra. Sobre esta base, o pensamento da modernidade opera de uma maneira bipolar: abstraindo, por um lado, a multiplicidade das singularidades, unificando-a transcendentalmente no conceito de povo, e dissolvendo, por outro lado, o conjunto de singularidades (que constitui a multidão), para formar uma massa de indivíduos. A teoria moderna do direito natural, seja em suas raízes empíricas ou ideológicas, é sempre um pensamento da transcendência e da dissolução do plano de imanência. A teoria da multidão exige, ao contrário, que os sujeitos falem por si mesmos: trata-se muito mais de singularidades não representáveis que de indivíduos proprietários. 2) A multidão é um conceito de classe. Com efeito, a multidão é sempre produtiva e está sempre em movimento. Considerada a partir de uma perspectiva temporal, a multidão é explorada pela produção; de um ponto de vista espacial, a multidão é ainda explorada, na medida em que constitui a sociedade produtiva, a cooperação social para a produção.

O conceito de classe aplicado à multidão deve ser visto de um ângulo diferente do conceito de classe trabalhadora. "Classe trabalhadora" é um conceito limitado, tanto pelo aspecto da produção (já que necessariamente inclui operários de fábrica), quanto pelo lado da cooperação social (uma vez que compreende apenas uma pequena parcela de trabalhadores que operam no conjunto da produção social). A polêmica levantada por Rosa Luxemburgo contra o trabalhismo estreito da Segunda Internacional e contra a teoria da aristocracia trabalhista foi uma antecipação do nome da multidão. Não por acaso a polêmica levantada por Luxemburgo acerca das aristocracias do trabalho replica-se no ataque ao nacionalismo emergente do movimento trabalhista da sua época. Se postularmos a multidão como um conceito de classe, precisamos redefinir a noção de exploração como exploração da cooperação: cooperação não de indivíduos, mas de singularidades, exploração do conjunto de singularidades, das redes que compõem o conjunto e do conjunto que abarca estas redes e assim por diante. Note-se que a "moderna" concepção de exploração (como descrita por Marx) é adequada à ideia de produção em que os atores são os indivíduos. É somente porque existem indivíduos que atuam que o trabalho pode ser medido pela lei do valor. Também o conceito de massa (como multiplicação indefinida dos indivíduos) é um conceito de medida, e mais ainda, foi construído pela política econômica do trabalho com esta finalidade. Nesse sentido, a massa é o correlato do capital - assim como o povo é o correlato da soberania. Devo
acrescentar aqui que não por acaso o conceito de povo também é uma medida, especialmente nas versões refinadas do keynesianismo e do welfare para a economia política.

Por outro lado, a exploração da multidão é incomensurável; em outras palavras, é um poder que se confronta com o poder de singularidades fora de qualquer medida, singularidades que se encontram em cooperação para além do mensurável. Se definirmos essa mudança histórica como um salto "epocal", ontologicamente falando, então os critérios ou dispositivos de medida válidos para uma época serão radicalmente colocados em questão. Estamos nesse momento vivendo um desses saltos, e não está claro se novos critérios e dispositivos de medida estão sendo propostos. 3) Multidão é o conceito de uma potência. Somente analisando a cooperação podemos, com efeito, descobrir que o todo de singularidades produz além da medida. Esta potência não deseja apenas se expandir, mas, acima de tudo, quer se corporificar: a carne da multidão quer se consubstanciar no corpo do General Intellect. Podemos conceber esta passagem, ou melhor, dizendo, esta expressão de potência, orientada por três vetores de força: a) A genealogia da multidão na transição do moderno para o pós-moderno (ou, se preferirem, do Fordismo para o Pós-fordismo). Esta genealogia é constituída pelas lutas da classe trabalhadora que dissolveram as formas de disciplina social da "modernidade". b) A tendência para o General Intellect. Esta tendência, constitutiva da multidão, em direção a modos de expressão produtiva cada vez mais imateriais e intelectuais, deseja se configurar como a reinscrição absoluta do General Intellect no trabalho vivo. c) A liberdade e a alegria (mas também a crise e a saturação) desta transição inovadora, que abarca em si tanto continuidade quanto descontinuidade, ou, em outras palavras, algo assim como sístoles e diástoles da recomposição das singularidades.

Este monstro revolucionário chamado multidão

Faz-se necessário insistir um pouco sobre a diferença entre os conceitos de multidão e povo. A multidão não pode ser apreendida ou explicada em termos contratualistas (por contratualismo entendo menos uma experiência empírica do que a filosofia transcendental da qual é tributária). Em um sentido mais geral, a multidão desafia qualquer representação por se tratar de uma multiplicidade incomensurável. O povo é sempre representado como unidade, ao passo que a multidão não é representável, ela apresenta sua face monstruosa vis-à-vis os racionalismos teleológicos e transcendentais da modernidade. Ao contrário do conceito de povo, o conceito de multidão é de uma multiplicidade singular, um universal concreto. O povo constitui um corpo social; a multidão não, porque a multidão é a carne da vida. Se por um lado opusermos multidão a povo, devemos também contrastá-la com as massas e a plebe. Massas e plebe são palavras que têm sido frequentemente empregadas para nomear uma força social irracional e passiva, violenta e perigosa que, justamente por isto, é facilmente manipulável. Ao contrário, a multidão constitui um ator social ativo, uma multiplicidade que age. Diferentemente de povo, a multidão não é uma unidade, mas, em contraste com as massas e a plebe, podemos vê-la como algo organizado. Trata-se, na verdade, de um ator ativo da auto-organização. Uma das grandes vantagens do conceito de multidão é assim o de neutralizar o conjunto de argumentos modernos assentados sobre a premissa do "temor às massas" ou sobre a "tirania da maioria", argumentos frequentemente utilizados como uma forma de chantagem para nos forçar a aceitar (e até mesmo reclamar) nossa própria servidão. Do ponto de vista do poder, o que fazer da multidão? Efetivamente, não tem nada que o poder possa realmente fazer dela, já que as categorias que interessam ao poder - a unidade do sujeito (povo), a forma de sua composição (contrato entre os indivíduos) e o regime de governo (monarquia, aristocracia e democracia, em forma isolada ou combinada) - foram postas de lado. A transformação radical dos modos de produção advinda da hegemonia da força de trabalho imaterial e do trabalho vivo cooperativo -revolução ontológica, produtiva e biopolítica no sentido pleno do termo - tudo isto inverteu completamente os parâmetros do "bom governo", além de destruir a ideia moderna (desde sempre acalentada pelos capitalistas) de uma comunidade que funciona para a acumulação capitalista. O conceito de multidão nos conduz a um mundo inteiramente novo, fazendo-nos mergulhar em um turbilhão de mudanças que se encontram em curso. No interior desta revolução, não podemos imaginar a nós mesmos senão como monstros. No epicentro da revolução que construiu a modernidade, Gargântua e Pantagruel despontam como gigantes emblemáticos, figuras extremas da liberdade e da invenção: os gigantes rabelaisianos ultrapassam a revolução propondo-nos a gigantesca tarefa de nos tornarmos livres. Precisamos hoje de novos gigantes e novos monstros, capazes de articular natureza e história, trabalho e política, arte e invenção, e de nos mostrar o novo poder que o nascimento do General Intellect, a hegemonia do trabalho imaterial, as novas paixões abstratas e a atividade da multidão proporcionam à humanidade. Precisamos de um novo Rabelais ou, melhor dizendo, de muitos deles.

Para concluir, voltamos a assinalar que a primeira matéria constitutiva da multidão é a carne, ou seja, a substância da vida comum na qual corpo e mente coincidem e são indistinguíveis. "A carne não é matéria, não é espírito, não é substância" escreve Merleau-Ponty. "Para designá-la, precisaríamos recorrer ao velho termo 'elemento', no sentido empregado para designar o ar, a água, a terra e o fogo, ou seja, no sentido de uma coisa genérica - uma espécie de princípio encarnado que faz emergir um estilo de vida onde só havia fragmento de vida. A carne é nesse sentido um 'elemento' do Ser". Tal como a carne, a multidão é pura potência, ela é a força não formada da vida, um elemento do ser. Como a carne, a multidão também se orienta para a plenitude da vida. O monstro revolucionário chamado multidão que surge no final da modernidade busca continuamente transformar nossa carne em novas formas de vida. Podemos explicar de um outro ponto de vista esse movimento da multidão, que vai da carne às novas formas de vida. É um movimento interno à virada ontológica, ao mesmo tempo em que a constitui. Quero dizer com isso que a potência da multidão, vista a partir das singularidades que a compõem, pode nos dar a medida da dinâmica de sua riqueza, de sua densidade e de sua liberdade. Além de ser, globalmente, produção de mercadorias e reprodução da sociedade, a produção de singularidades é igualmente a produção singular de uma nova subjetividade. E torna-se, com efeito, bastante difícil hoje em dia, dentro do modo de produção imaterial que caracteriza nossa época, distinguir produção de mercadorias da reprodução social de subjetividades, porque não podem existir novas mercadorias sem novas necessidades, nem reprodução de vida sem o desejo singular. Convém insistir aqui sobre a potência global do processo: na verdade, a potência desliza entre globalidade e singularidades, seguindo um ritmo às vezes sincrônico, feito de conexões mais ou menos intensas (rizomáticas, como têm sido chamadas), às vezes diacrônico, feito de sístoles e diástoles, de evolução e crises, de concentração e dissipação do fluxo. Em outras palavras, a produção de subjetividade, a produção que o sujeito faz de si mesmo é, simultaneamente, produção da consistência da multidão - já que a multidão é um conjunto de singularidades. Evidentemente alguém poderia insinuar que a multidão é (essencialmente) um conceito insustentável, puramente metafórico, já que só se pode conferir unidade à multiplicidade através de um procedimento transcendente mais ou menos dialético (como a filosofia tem feito de Platão a Hegel, passando por Hobbes): ainda mais se a multidão (multiplicidade que se recusa a ser representada na Aufhebung dialética) pretende igualmente ser singular e subjetiva. Mas esta crítica não se sustenta: a Aufhebung dialética é ineficaz aqui porque para a multidão a unidade no múltiplo constitui a própria vida, e a vida dificilmente pode ser subsumida pela dialética. Além disso, o dispositivo de produção de subjetividade que encontra na multidão sua figura comum se apresenta como prática coletiva, como uma atividade constantemente renovada de constituição do ser. O nome da "multidão" é, a um só tempo, sujeito e produto da prática coletiva.

E a multidão é o nome de uma multidão de corpos

As origens do discurso sobre a multidão encontram-se presentes na interpretação subversiva do pensamento de Spinoza. Nunca será demais insistir na importância do pressuposto spinozista. Como temática inteiramente spinozista temos, antes de qualquer outra, a do corpo, em particular o corpo poderoso. "Não sabeis o quanto pode um corpo". E a multidão é o nome de uma multidão de corpos. Já tratamos desta determinação quando insistimos na ideia de "multidão como potência". O corpo é, portanto, primordial, tanto em termos de genealogia quanto em termos de tendência, tanto nas fases como no resultado final do processo de constituição da multidão. Mas isto só não basta. Será necessário reconsiderar toda a discussão feita até aqui desde o ponto de vista do corpo; ou seja, retornar aos pontos 1, 2 e 3 da seção anterior e completá-los a partir desta nova perspectiva. 1. Lá onde o nome da multidão é definido em contraste ao conceito de povo, onde se assinala que a multidão é um conjunto de singularidades, há que renomear a multidão na perspectiva do corpo, ou seja, clarificar o dispositivo de uma multidão de corpos. Quando prestamos atenção aos corpos percebemos que não nos defrontamos simplesmente com uma multidão de corpos, mas que todo corpo é uma multidão. Entrecruzando-se na multidão, cruzando multidão com multidão, os corpos se mesclam, mestiçam-se, hibridizam-se e se transformam; são como ondas do mar em perene movimento, em perpétua transformação recíproca. As metafísicas da individualidade (e/ou da pessoa) constituem uma horrível mistificação da multidão de corpos. Não existe nenhuma possibilidade de um corpo estar só. Não podemos sequer imaginar tal coisa. Quando se define um homem como indivíduo, quando ele é considerado fonte autônoma de direitos e de propriedade, ele se torna só. Mas o si mesmo não pode existir fora de uma relação com um outro. As metafísicas da individualidade, ao se confrontarem com o corpo, negam a multidão que constitui o corpo para poderem negar a multidão de corpos. A transcendência é a chave para toda metafísica da individualidade, da mesma forma que para toda e qualquer metafísica da soberania. Do ponto de vista do corpo, só há relação e processo. O corpo é trabalho vivo, portanto expressão e cooperação, portanto construção material do mundo e da história. 2. Ali onde se fala da multidão como conceito de classe e, consequentemente, da multidão como sujeito de produção e objeto de exploração - torna-se então possível introduzir a dimensão corporal, pois fica evidente que na produção, nos movimentos, no trabalho e nas migrações, são os corpos que estão em jogo. Em todas as suas dimensões e em todas as suas determinações vitais. Na produção, a atividade dos corpos é sempre força produtiva e geralmente matéria prima. E por outro lado, não há discurso possível sobre a exploração - quer trate-se da produção de mercadorias ou, principalmente, da reprodução da vida - que não se refira diretamente aos corpos. Quanto ao conceito de capital, ele deve também ser considerado em termos realistas, através da análise dos sofrimentos que são impostos aos corpos: corpos minados pela usura, mutilados ou feridos, sempre reduzidos ao estado de matéria de produção. Matéria igual a mercadoria. E se não se pode pensar que os corpos são reduzidos à condição de simples mercadorias na produção e reprodução da sociedade capitalista, deve-se insistir no aspecto de reapropriação de bens e satisfação dos desejos, bem como as metamorfoses e o aumento da potência dos corpos determinados pela contínua luta contra o capital. Uma vez reconhecida a ambivalência estrutural no seio do processo histórico de acumulação, há que se colocar o problema de sua resolução em termos da liberação dos corpos e de um projeto de luta para alcançar este objetivo. Em outras palavras, um dispositivo materialista da multidão só poderá ter como ponto de partida prioritariamente o corpo e a luta contra sua exploração. 3. Uma vez que se fala da multidão como o nome de uma potência e partindo de genealogia e de tendência, de crise e de transformação, o discurso dobra-se sobre a metamorfose dos corpos. A multidão é multidão de corpos; expressa a potência não somente como conjunto, mas também enquanto singularidade. Cada período da história de desenvolvimento humano (do trabalho, do poder, das necessidades e da vontade de transformação) implica metamorfoses singulares dos corpos. O materialismo histórico envolve também uma lei de evolução: mas esta lei é tudo menos linear e unilateral: é uma lei de descontinuidades, dos saltos das sínteses inesperadas. É darwiniana, no bom sentido do termo, como produto (por baixo) de uma confrontação heracliteana e de uma teleologia aleatória. Pois a origem das metamorfoses que investem a multidão como conjunto e as singularidades como multidão, nada mais é que as lutas, os movimentos e os desejos de transformação.

Poder soberano e potência ontológica da multidão

Não queremos negar com isso que o poder soberano seja capaz de produzir história e subjetividade. Mas o poder soberano é um poder de dupla face: a produção do poder pode atuar sobre a relação, mas não pode suprimi-la. Melhor dizendo, o poder soberano (como relação de forças) pode encontrar-se confrontado, como problema, com um poder "externo" que se coloca como obstáculo: isto na primeira vez. Na segunda vez, na própria relação que o constitui e na necessidade de mantê-la, o poder soberano encontra seu limite. Relação que se apresenta à soberania primeiramente como obstáculo (aí onde a soberania atua na relação) e depois como limite (lá onde a soberania quer suprimir a relação, mas não consegue). Ao contrário, a potência da multidão (de singularidades que trabalham, agem e, às vezes, desobedecem) pode eliminar a relação de soberania. Temos aqui duas afirmações ("a produção do poder soberano remove o obstáculo, mas não pode eliminar o limite que se constitui através da relação de soberania"; "o poder da multidão pode, ao contrário, eliminar a relação de soberania, pois só a produção da multidão é constitutiva do ser") que podem se abrir para uma ontologia da multidão. Uma ontologia que começará a ficar exposta à medida que a constituição de ser atribuída à produção da multidão puder ser determinada em termos práticos. Parece-nos então possível, do ponto de vista teórico, empregar o axioma da potência ontológica da multidão em pelo menos três terrenos. O primeiro é o das teorias do trabalho, onde a relação de comando (no plano da imanência) pode ser mostrada como uma relação inconsistente: o trabalho imaterial, intelectual, em suma o saber, não necessita nenhum comando para se tornar cooperação e para ter, a partir daí, efeitos universais. Ao contrário: o saber está sempre excedente em relação aos valores (de mercado) nos quais se busca aprisioná-lo. Em segundo lugar, a demonstração poderá ser efetuada diretamente sobre o terreno ontológico, sobre a experiência do comum (que não requer nem comando nem exploração), que se coloca como a base e como pressuposto da expressão humana produtiva e/ou reprodutiva. A linguagem é a forma principal de constituição do comum; e quando o trabalho vivo e a linguagem se cruzam e se definem como máquina ontológica, é então que a experiência fundante do comum se verifica. Em terceiro lugar, a potência da multidão poderá ser também aplicada sobre o terreno da política da pós-modernidade, quando demonstramos que não há condição necessária de existência e reprodução de uma sociedade livre sem a difusão do saber e a emergência do comum. A liberdade, com efeito - expressão de libertação do comando - só é materialmente dada pelo desenvolvimento da multidão e por sua auto-constituição como corpo social de singularidades.

Respondendo a algumas críticas

Aqui gostaria de rebater algumas críticas que têm sido levantadas contra a concepção de multidão, com o objetivo de avançar um pouco mais na construção do conceito. Um primeiro conjunto de críticas relaciona-se à interpretação de Foucault e ao uso que se faz desta interpretação na definição de multidão. Esses críticos insistem na homologia inadequada que teria sido estabelecida entre o conceito clássico de povo e o conceito de multidão. Tal homologia - insistem - não é somente ideologicamente perigosa (ela "achata" a pós-modernidade sobre a modernidade, como fazem, por exemplo, os defensores da Spät-modernitat, que pensam a nossa época como decadência da modernidade), mas é perigosa também do ponto de vista metafísico, porque coloca a multidão em oposição dialética ao poder. Estou inteiramente de acordo no primeiro ponto: nossa época não é a época de uma "modernidade tardia" - ela é, sobretudo, "pós-moderna", no sentido de uma ruptura epocal que se efetivou. Entretanto, discordo da segunda observação porque, não vejo como, referindo-se a Foucault, poderíamos pensar que sua noção de poder exclui o antagonismo. Seu caminho jamais foi circular; nunca na análise foucaultiana as determinações do poder foram aprisionadas num jogo de neutralização. Não é verdade que as relações entre micro-poderes se desenvolvam em todos os níveis da sociedade sem uma ruptura institucional entre dominantes e dominados. Encontramos sempre em Foucault determinações materiais, significações concretas: não há nele um desenvolvimento que conduza tranquilamente a um belo equilíbrio, não existe, portanto, um esquema idealista de desenvolvimento histórico. Se é verdade que cada conceito encontra-se bem fixado em uma arqueologia específica, ele é sobretudo aberto a uma genealogia da qual não conhecemos o futuro. A produção de subjetividade, em particular, apesar de produzida e determinada pelo poder, promove sempre a abertura de resistências pela via de dispositivos irresistíveis. As lutas determinam verdadeiramente o ser, elas o constituem – e elas são sempre abertas: somente o biopoder visa a sua totalização. A teoria foucaultiana apresenta-se na realidade como a análise de um sistema regional de instituições de lutas, de enfrentamentos e confrontos; e essas lutas antagonísticas abrem-se a horizontes unilaterais. Isto vale tanto para a superfície das relações de força quanto para uma ontologia do si mesmo. Não se trata, portanto, de retornar a uma oposição (sobre a forma de pura exterioridade) entre o poder e a multidão; trata-se, sobretudo de permitir à multidão, através das redes desmesuradas que a constituem e das infinitas determinações estratégicas que ela produz, libertar-se do poder. Foucault nega a totalização do poder, mas não recusa a possibilidade de os sujeitos insubordinados multiplicarem infinitamente os "focos de luta" e de produção do ser. Foucault é um pensador revolucionário; torna-se absolutamente impossível neste caso reduzir seu sistema a uma mecânica hobbesiana e/ou sistêmica de relações de equivalência. Um segundo grupo de críticas diz respeito ao conceito de multidão enquanto potência e poder constituinte. Com a concepção de multidão como potência teríamos visado manter a idéia vitalista do processo constituinte. De acordo com esta crítica, a multidão como potência constituinte não se pode contrapor ao conceito de povo como figura do poder constituído: tal oposição transformaria a multidão em algo frágil e não consistente, torná-la-ia virtual ao invés de real. Os críticos que adotam este ponto de vista sustentam que a multidão - uma vez desligada do conceito de povo e identificada como pura potência - corre o risco de se ver reduzida a uma figura ética (uma das duas fontes da criatividade ética analisadas por Bergson). Ainda dentro do mesmo tema, mas,
adotando, por assim dizer, uma perspectiva oposta, o conceito de multidão é criticado por sua incapacidade de se tornar ontologicamente um "outro", por sua incapacidade de apresentar uma crítica suficiente da soberania. Nesta perspectiva, a potência constituinte da multidão seria atraída pelo seu contrário: ela não poderia, assim, ser tomada como expressão radical de inovação do real, nem como signo emblemático de um povo livre que está por vir. Na medida em que a multidão não expressa a radicalidade de um fundamento capaz de subtraí-la de qualquer relação dialética com o poder, ela sempre correrá o risco – dizem esses críticos - de ser formalmente incluída na tradição política da modernidade. Estas duas críticas, devemos dizer, são inconsistentes. A multidão, efetivamente, enquanto potência, não é uma figura homóloga e oposta ao poder de exceção da soberania moderna. O poder constituinte da multidão é algo diferente: não é apenas uma exceção política; é também uma exceção histórica: é o produto de uma descontinuidade temporal, de uma descontinuidade radical, uma metamorfose ontológica. A multidão se apresenta então como uma singularidade potente que não poderia ser reduzida à plana repetição bergsoniana de uma eventual função vitalista, sempre igual a si mesma; da mesma forma que não poderia ser atraída pelo seu oposto todo poderoso: a soberania, porque a multidão dissolve concretamente o conceito pelo simples fato de existir. Esta existência da multidão não busca seu fundamento fora de si mesmo, mas somente dentro de sua própria genealogia. De fato, não há mais lugar para um fundamento puro ou nu, da mesma forma que não há um fora: isto é tudo ilusão. Um terceiro conjunto de críticas, de caráter mais sociológico do que filosófico, ataca o conceito de multidão definindo-o como "deriva hipercrítica". Deixaremos aos adivinhos a tarefa de decifrar o significado de "hipercrítica". Quanto à palavra "deriva", consistiria essencialmente na instalação da multidão em um lugar de recusa, de ruptura. Mas ela seria, nesse caso, incapaz de determinar a ação, destruindo a própria idéia de ação já que, a partir de um lugar de absoluta recusa, a multidão seria por definição fechada a qualquer relação e/ou mediação com outros atores sociais. A multidão terminaria por representar, neste caso, um proletariado mítico ou uma (igualmente mítica) pura subjetividade atuante. Esta crítica vai obviamente na direção oposta à das duas primeiras. Neste caso, igualmente, a guisa de resposta, só podemos relembrar que a multidão não tem nada a ver com lógicas racionais tributárias do par amigo/inimigo. A multidão é o nome ontológico do pleno versus o vazio, da produção contra a sobrevivência parasitária. A multidão ignora a razão instrumental, tanto do exterior a ela mesma quanto para seu uso interno. E como um conjunto de singularidades, ela é capaz de estabelecer o máximo de mediações e soluções de compromisso consigo mesma, desde que sejam mediações emblemáticas do comum (a multidão operando exatamente como a linguagem).


1 Este artigo foi publicado pela primeira vez na revista Multitudes n.9, Ed. Exils, Paris com o título "Pour une definition ontologique de la multitude", p. 36-48. PARA UMA DEFINIÇÃO ONTOLÓGICA 16 DA MULTIDÃO