Em Java: “Havia uma espécie de estagnação agitada na qual, como observei certa
vez referindo-me à curiosa mistura de fragmentos importados de modernidade e relíquias
da tradição ultrapassada que caracterizavam o lugar, o futuro parecia quase tão
remoto como o passado. No meio deste cenário deprimente, no entanto, havia uma
vitalidade intelectual absolutamente surpreendente, uma verdadeira paixão
filosófica, paixão que, além disso, era popular, concentrada em descobrir, a
fundo, os enigmas existenciais. Camponeses miseráveis discutiam questões
relacionadas com o livre-arbítrio, comerciantes analfabetos falavam sobre as
qualidades de Deus, lavradores comuns tinham teorias sobre a relação entre a razão
e a paixão, a natureza do tempo ou a confiabilidade dos sentidos. E talvez
ainda mais importante, buscavam, avidamente, respostas para o problema do eu –
sua natureza, sua função e seu ‘modus operandi’ – com um tipo de intensidade
reflexiva que, entre nós, encontramos somente em ambientes altamente
sofisticados”. (Clifford Geertz).
Esta surpresa de Geertz ao encontrar a
filosofia e a reflexão viva sobre as questões da vida e da humanidade presente
em meio aos pobres pode, atualmente, e talvez sempre, se repetir. Basta que os
intelectuais, os acadêmicos e os “letrados” em geral se disponham a conhecer e
interagir com vários dos lutadores sociais e moradores das comunidades pobres
da nossa cidade, estado e País. E mais do que conhecer e interagir, estejam dispostos
a não tomar-lhes a voz; a não apropiar-se do seu conhecimento; a registrar a
autoria destes quando da elaboração das suas etnografias. Atualmente as
esquinas da nossa cidade estão abarrotadas de ideias, de concepções de mundo,
de opiniões sobre os mais variados assuntos. Os bares, restaurantes e bodegas
abrigam inúmeras reflexões filosóficas, teorias políticas, estratagemas. Os
canteiros de obras também acolhem, embora não permitam aflorar, a poesia
contida no coração e na criação de ‘braços rústicos’. O povo pensa, reflete,
investiga e elabora a partir das condições insalubres e inóspitas a que a
divisão do trabalho lhe submete. Certamente essa efervescência cultural e
filosófica dos pobres ainda causará muita surpresa nos intelectuais, como causou
em Geertz. Afinal, o saber burguês produzido em série nas universidades, como
se produz biscoitos numa indústria alimentícia, se considera monopolizador do
saber, e único legítimo e legitimador na sua produção. Mas para os interessados
em romper com essa lógica e dispostos a surpreenderem-se com a filosofia das
ruas e com todo o volume de conhecimento que brota dos becos, vielas, favelas e
comunidades, eu recomendo começar ouvindo a música do Hip Hop. Escute o RAP (Rhythm and Poetry), principalmente a música de artistas
como Edi Rock, Criolo Doido e GOG. Nessas
produções encontram-se boa parte da filosofia e do pensamento produzido longe
dos muros da universidade e da comunidade acadêmica. Também procure conversar
com os moradores da sua rua, do seu bairro, da sua cidade. Fale com os jovens,
decifre suas gírias, tente entender a sua lógica. Ande pelos bares, pelas
praças, pelas ruas da cidade. E principalmente, escute mais do que fale!
Por
Johnson Sales.