Pesquisar este blog

segunda-feira, 28 de março de 2022

A Perifobia e o Polo Criativo do Conjunto Ceará

 

Fobia

Quando consultamos os dicionários podemos encontrar que “Fobia” émedo mórbido, exagerado, de algo ou de alguma situação; ou ainda, falta de tolerância, aversão, intolerância, rejeição. O dicionário Michaelis, traz ainda a seguinte definição: “Estado de ansiedade desencadeado por uma violenta reação de medo, que se manifesta de forma recorrente, quando a pessoa se defronta com determinadas circunstâncias ou objetos específicos, mesmo apenas imaginados ou mencionados; ainda que esse medo seja, conscientemente, considerado infundado ou exagerado pelo paciente fóbico, ele não consegue se controlar e evitar a crise”. Entre as tantas definições existentes, essas parecem suficientes para nos ajudar a entender o fenômeno em questão.

 Periferia

Segundo D’andrea (2020), a definição quantitativa de periferia deve levar em consideração a questão: em relação a qual centro ela está referenciada. O mesmo autor faz uso de uma citação feita em uma música pelo rapper brasiliense GOG, para evidenciar uma noção qualitativa de periferia. O rapper afirma, na música “Brasília Periferia”, que “Periferia é periferia em qualquer lugar”. Esse sentimento de “pertença compartilhada” coloca sobre um mesmo “guarda-chuva”, grandes parcelas da população que, apesar de apresentar diferenças e variações internas, termina por se unificar por um conjunto de necessidades comuns, como a pacificação dos territórios em que vivem (esses lugares na sua maioria encontram-se controlados ou fortemente influenciados por grupos armados como milicias e facções criminosas); superação de déficits sociais como desemprego, falta de estrutura urbana, politicas públicas voltadas para a saúde, educação, emprego e renda, cidadania, cultura e inclusão socioeconômica, entre outros. Tais periferias também se identificariam pela manifestação de antagonismos compartilhados, como por exemplo o que entendem como “elites, burguesia, polícia, boys, patricinhas ou bairros ricos”. D’andrea diz que assim, o termo periferia se tornou “conceito”, e que “não possuindo profundidade teórica, ganhara em abrangência”, transformando dessa maneira, a sua fragilidade em fortaleza. Apesar da pouca profundidade e da amplitude da abrangência desse conceito, penso que ele seja adequado para colaborar com essa formulação. Afinal, me parece que para todos nós que viemos e/ou estamos na periferia, a percepção versada pelos rappers do Racionais MC’s – e lembrada por Tiaraju D’andrea - de que, de fato, “o mundo é diferente da ponte pra cá”, é uma máxima que nos junta e mobiliza nessas trincheiras de som e fúria que chamamos de periferia.

Perifobia – O medo mórbido, exagerado, da autoafirmação da periferia

Eles temem os que vêm “de baixo” e tentam destruir tudo o que eles criam. Assim poderíamos caracterizar os “perifóbicos”, aqueles que criticam violentamente a arte, a produção cultural e os costumes daqueles que não estão exatamente no “centro” do que eles consideram “civilizado”, limpinho e esteticamente tolerável. Mas não é só isso. A “Perifobia” também se dedica a negar espaço político, limitar direitos, impedir acesso a políticas públicas e, principalmente, reagir a qualquer tentativa de autoafirmação, ou autossuficiência da periferia. Para os “perifóbicos”, a dependência e posição de inferioridade da periferia é elemento central da sua fobia social, da sua distinção (BORDIEU 2017) e do seu poder político. Segundo os ditames da “Perifobia” qualquer coisa que “brote” na periferia só será tolerada e ou cultivada se tiver vinculada de alguma forma ao “centro”, seja ele político, econômico e/ou cultural. Fora disso, tudo deverá ser combatido, reprimido, exterminado. É que a autoafirmação, a autossuficiência e o empoderamento da periferia ameaçam o poder, a “superioridade”, os privilégios e distinções dos que se veem como centro.

 O Polo Criativo do Conjunto Ceará na mira da Perifobia

Desde que o movimento cultural do Conjunto Ceará começou a trabalhar a implementação de um polo criativo no espaço do polo de lazer da comunidade, que o projeto tem enfrentado a fúria do poder público. A intolerância foi manifestada de pronto pela secretaria regional que abrange o bairro (na época a SER-V) com ameaça de proibição da comercialização de bebidas nos quiosques da praça (região historicamente boêmia). Para barrar tal ameaça foram necessárias inúmeras reuniões, articulações e uma audiência pública da Câmara Municipal. Mas não sem antes enfrentar ataques de equipes de “fiscalização” com apreensão de equipamentos e multas pesadas contra os empreendedores locais.

Após vários anos de enfrentamentos e resistências, a SER-V resolveu reconhecer o polo criativo do Conjunto Ceará e publicar no diário oficial do município, o reconhecimento da Governança (coordenação formada por todos os equipamentos do bairro criativo) do polo de lazer. Alguns dias depois, o secretário da SER-V foi exonerado, e os ataques ao polo criativo retornaram com mais “visitas” da “fiscalização”, mais apreensões e mais multas.

Buscando a institucionalização e o reconhecimento oficial do polo criativo do Conjunto Ceará, o movimento cultural se articulou com a Câmara Municipal e aprovou um projeto de lei que instituía e regulamentava o polo criativo. O prefeito de Fortaleza, Roberto Cláudio, vetou o projeto impedindo o reconhecimento oficial da iniciativa.

Poderia se pensar que faltou e falta ao poder público uma compreensão sobre os conceitos de economia criativa, polo criativo ou desenvolvimento local articulado com a economia criativa, e justificar, assim, as ações deste contra o polo criativo do Conjunto Ceará. Mas isso não se sustenta diante do fato de que,  nesse espaço de tempo, a prefeitura de Fortaleza formulou o plano estratégico “Fortaleza 2040” que inclui a economia criativa como um eixo estratégico de desenvolvimento. Além disso, Fortaleza disputou e conseguiu a chancela da UNESCO como “cidade criativa do design” oferecendo, em contrapartida, a montagem de um “distrito criativo” (a grosso modo, uma versão maior de um polo criativo). Se não bastasse, governo e prefeitura de Fortaleza estão, nesse momento, empenhados em aportar milhões de reais para adquirir o edifício São Pedro, na Praia de Iracema, na orla de Fortaleza, e nele implantar um “distrito criativo”. Ou seja, o que à periferia é negado energicamente, é oferecido à região considerada nobre da capital cearense. O que nos leva a considerar a possibilidade de que, nesse caso, a "perifobia" seja a causa maior dos nossos infortúnios.

Governo investirá milhões para viabilizar Distrito Criativo na área "nobre" da cidade
O ápice da perseguição veio com o governo do estado (COHAB/SEPLAG) tentando vender, em um leilão, os prédios históricos: Sede do Centro Cultural Patativa do Assaré/CCPA (que abriga 40 pequenas lojas de empreendedores locais e um forte movimento cultural) e o prédio do Coletivo Território Criativo (que sedia o polo criativo do Conjunto Ceará e um conjunto de coletivos culturais e sociais que atuam colaborativamente).

Mais articulações, reuniões, mobilização de parlamentares, apelos na imprensa, audiência com Casa Civil e Secretaria da Cultura do governo do estado e órgãos da prefeitura, e a ocupação do prédio do CCPA por dezenas de coletivos culturais, derrotaram as intenções privatistas do governo e salvaram os dois imóveis e as suas atividades culturais e sociais.

Reforma do Polo de Lazer

Para não alongar demais a descrição dos horrores e do “terrorismo institucional” que se abateu sobre os empreendedores e coletivos culturais e criativos que atuam no local, vamos “saltar” direto para a reforma do polo de lazer. Depois de muitos anos de reivindicação por parte do movimento cultural e comunitário, o governo do estado em parceria com a prefeitura de Fortaleza, resolveu reformar o polo. O governo tentou impor um projeto arquitetônico para o espaço, mas a comunidade reagiu e com o apoio de estudantes de arquitetura da Universidade Federal do Ceará/UFC, construiu um projeto alternativo e, em reuniões tensas com representantes da Casa Civil e Secretaria da Cultura do governo do estado, além de órgãos da prefeitura de Fortaleza, parlamentares e coletivos que atuam no polo, conseguiu incorporar as demandas da comunidade ao projeto de reforma. Acordo feito, os coletivos emprestaram - a pedido da Casa Civil, e diante de uma promessa de que o imóvel seria reformado, ampliado e receberia a implementação de um HUB Social e de um Coworking como bases do polo criativo, e a ser gerenciado pelos coletivos com o apoio da Secretaria de Cultura do estado - o prédio sede do Coletivo Território Criativo (aquele salvo do leilão da COHAB/SEPLAG) que abrigava vários coletivos culturais, para alojar a construtora responsável pela reforma do polo de lazer.

Mas, no dia da assinatura da ordem de serviço, governador e prefeito atribuíram a conquista da comunidade a um político rival dessa mobilização comunitária e não alinhado com a implementação do polo criativo. Tentaram ainda retirar os empreendedores do local sem oferecer outro lugar para eles trabalharem durante as obras, e sem qualquer garantia de que eles poderiam, depois da reforma, voltar para os seus locais de trabalho. Os empreendedores e o movimento cultural resistiram. E isso, junto com toda uma ingerência e trapalhadas de políticos locais, terminou por gerar um atraso de 3(três) anos na reforma do polo de lazer.

Ao longo dos três anos de paralisação da obra, governo e prefeitura interromperam qualquer diálogo com a comunidade. O movimento cultural lançou então, como forma de denunciar o abandono e cobrar a reforma, o “S.O.S. Polo Resistente!”, um braço do Movimento “S.O.S. Conjunto Ceará” que busca o empoderamento da comunidade.

O retorno da obra da reforma, já em 2022, veio acompanhada de uma tragédia sociocultural. A construtora, sem aviso ou qualquer diálogo, demoliu o prédio sede do Coletivo Território Criativo, deixando sem espaço dezenas de coletivos culturais e sociais que atuam no polo de lazer do Conjunto Ceará, e desabrigando o Polo Criativo, o Hub Social e o Coworking, negociados com o governo estadual. Se o poder público, ao longo de uma década, não conseguiu leiloar a sede do polo criativo, desmontar a sua mobilização comunitária, ou desgastar o seu capital social, agora aplicou um golpe fatal contra a sua estrutura física, demoliu a sede do projeto, reduzindo a pó um estúdio de gravação e ensaio para artistas, bandas e grupos culturais; uma sala climatizada para reuniões com até 30 pessoas; um espaço de reuniões com capacidade de 150 pessoas; um escritório colaborativo utilizado pelos grupos e coletivos; uma cozinha; uma sala de gerência; e um anfiteatro externo para apresentações culturais, formações e eventos diversos.

Assim, o poder público (governo do estado e prefeitura de Fortaleza) disfere um duro golpe contra um projeto que por uma década vem tentando organizar os atores e ativos criativos do Conjunto Ceará para fomentar o desenvolvimento local, a autoafirmação e autossuficiência dessa comunidade que, não tendo vocação para a indústria convencional, tem na cultura e na criatividade as suas melhores chances de empoderamento.

"O Polo Criativo funciona como um elemento de distinção, em torno do qual, se articulam a superação dos estigmas e segregações, e se projetam as possibilidades e oportunidades de desenvolvimento do polo de lazer do Conjunto Ceará. O TC, através do Polo Criativo, reconecta o Conjunto Ceará com o seu passado de lutas e com as suas múltiplas identidades. O fomento à ampliação dos estoques de capital simbólico, especialmente de capital social e capital cultural, promovido pelo Polo Criativo, representa um recurso estratégico fundamental para o aumento da autoestima da comunidade, superação dos estigmas que dificultam o seu desenvolvimento, e para o seu reposicionamento econômico e social em relação à cidade e a si própria [SOUSA. 2016]".

Impedir ou dificultar a existência do polo criativo do Conjunto Ceará é atentar contra a autoafirmação dessa comunidade. É portanto, segundo as condições aqui descritas, uma ação de “perifobia”.

Johnson – Sociólogo.

 

Referências

BOURDIEU, Pierre. A distinção. Porto Alegre-RS: Editora Zouk, 2017

D’ANDREA, Tiaraju. DOSSIÊ SUBJETIVIDADES PERIFÉRICAS. Novos estud. CEBRAP 39 (1). Jan-Apr 2020. Disponível em https://www.scielo.br/j/nec/a/whJqBpqmD6Zx6BY54mMjqXQ/?format=html

SOUSA, MJS. Território criativo: um estudo sobre uma política pública de economia criativa no polo de lazer do conjunto Ceará em Fortaleza-CE. 2016. Disponível em https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/34407