Divulgo artigo do Professor Luís Fernando Tófoli. O texto me foi apresentado por Leonardo de Sá. Vale a pena conferir!
A epidemia involuntária e suas consequências
Data de publicação:
30/11/2012
Luís Fernando Tófoli *
Atualmente,
no Brasil, vivemos sob o grave e intenso impacto de uma epidemia que
altera a percepção da realidade e ameaça a nossa sociedade. Convido o
leitor a fazer um pequeno experimento pessoal: repita a frase acima a
diversas pessoas, de variados níveis socioeconômicos e educacionais,
perguntando que epidemia é essa. Não é difícil prever a resposta: crack.
Consideremos, no entanto, a possível existência de outra epidemia: a de
um conjunto de conceitos – memes – associados ao uso crack. Diferente
das garatujas das mídias sociais às quais este nome se encontra agora
ligado, um meme é, academicamente falando, uma ideia que tende a se
replicar e se espalhar como que por contaminação. Concepções políticas e
religiosas, por exemplo, seriam típicos memes. A esta epidemia memética
corresponderia o seguinte conjunto de ideias, todas questionáveis
diante da evidência disponível na literatura sanitária: 1) “vivemos uma
epidemia do uso do crack"; 2) "o usuário de crack não tem condições de
decidir por si mesmo"; 3) "a única solução possível para o usuário de
crack é a internação compulsória".
O termo epidemia do crack
tem sido repetido metodicamente nos meios de comunicação, e é muito
fácil aceitá-lo como verdadeiro. Entretanto, não dispomos de dados que
apontem que tenha havido crescimento inequívoco do uso de crack nas
grandes cidades brasileiras nos últimos anos. Parece claro, no entanto,
ainda que mais dados sejam necessários, que o uso do crack cresceu no
interior do Brasil. Mesmo assim, resta o desafio de esclarecer se o
impacto nestes novos e antigos territórios se deu pelo surgimento de
usuários ou porque houve a migração de consumidores do mercado irregular
(ainda que lícito) de cola de sapateiro e solventes para o mercado
ilegal do crack. A questão, portanto, não está fechada.
A
experiência clínica das iniciativas de redução de danos e sua tradição
de olhar o indivíduo com uso problemático de drogas ilícitas numa
perspectiva mais ampla de cuidados, têm demonstrado que o meme “todo
consumidor de crack perde sua autonomia" é inverídico. Há relatos e
evidências que indicam claramente que quando o dependente de uma droga
cujo uso está associado a grave comprometimento social – como o álcool,
os opiáceos e o crack – é tratado como um sujeito e sua vontade é levada
em consideração, resultados positivos podem ser atingidos.
É,
no entanto, no terceiro meme – o que indica a solução do encarceramento
compulsório ou involuntário como único possível – que residiria o maior
e mais perigoso erro dessa epidemia memética. Além da redução de danos,
existe um vasto conjunto de estratégias que deveriam ser utilizadas. As
respostas às intervenções variam muito de indivíduo para indivíduo, e
nenhuma medida tem como ser mais eficiente do que um conjunto delas, sem
falar na discussão sobre a reforma da legislação de drogas no país.
Isso não quer dizer que não existam casos que necessitem do tratamento
involuntário – quando a equipe de saúde assim decide, diante do risco do
paciente. Mas a melhor evidência disponível nos permite assumir que os
casos que exigem internação involuntária são a exceção e não a regra do
universo de usuários de crack. Por fim, quando analisamos a literatura
sobre tratamento compulsório "aquele determinado pelo poder público e
que no Brasil, até o momento, só pode ser aplicado caso a caso e não em
massa" descobrimos que ele é ineficiente como cuidado à saúde e vem
sendo criticado por sérias distorções éticas.
A epidemia
memética do crack estaria, portanto, assentada sobre distorções da
realidade que têm uma grande aceitabilidade pública. Mas, por que ela
seria um risco à nossa sociedade? Haveria outros problemas além do
relevante – e real – sofrimento pessoal e social causado pelo uso do
crack? Sim. A questão reside nos riscos de se interpretar o uso de crack
como uma doença transmissível e que, portanto, exigiria medidas
radicais de isolamento epidêmico. Diante disso, aceitar-se-ia o uso da
força como medida emergencial e assim se solapariam os direitos
constitucionais, como no caso da ceguidão branca e epidêmica apresentada
no romance Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago.
É,
portanto, extremamente importante que os trabalhadores dos sistemas
únicos de saúde e assistência social não se deixem levar pelo
ofuscamento que contamina a visão sobre o crack no Brasil e seduz os
políticos a soluções fáceis e autoritárias transvestidas de políticas
públicas, como no caso da internação compulsória de usuários do crack
proposta por Eduardo Paes [prefeito], na cidade do Rio de Janeiro. Da
mesma forma, devemos cobrar do ministro da Saúde, Alexandre Padilha, que
tem toda competência para separar o que é epidemia de ideias e o que é
agravo real, superar as pressões políticas e assumir um posicionamento
mais claro de seu discurso, de forma a não sugerir que haja apoio
federal a medidas higienistas e de caráter protofascista.
* Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC). Especial para a 'Radis'.
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