Eu não havia compreendido que Foucault tomava partido, sem o dizer, num grande debate moderno: a verdade é ou não é adequação ao seu objeto, assemelha-se ou não ao que enuncia, como supõe o senso comum? Na realidade, vê-se mal por que viés poderíamos saber se ela é semelhante, já que não temos outra fonte de informação que permita confirmá-la, mas passemos. Para Foucault, assim como para Nietzsche, William James, Austin, Wittgenstein, Ian Hacking e muitos outros, cada um com seus próprios pontos de vista, o conhecimento não pode ser o espelho fiel da realidade; da mesma maneira que Richard Rorty,1 Foucault também não crê nesse espelho, nessa concepção “especular” do saber; para ele, o objeto, em sua materialidade, não pode ser separado das molduras formais por meio das quais o conhecemos e que ele, com uma palavra mal escolhida, chama de “discurso”. Tudo está aí.
Mal compreendida, essa concepção da verdade como não correspondência ao real fez com que se acreditasse que, para Foucault, os loucos não eram loucos, e que falar de loucura era ideologia; nem mesmo um Raymond Aron compreendia de outra maneira a História da loucura, e me dizia isso sem rodeios; a loucura é demasiadamente real, basta ver um louco para sabê-lo, protestava ele, e tinha razão: o próprio Foucault professava que a loucura, pelo fato de não ser o que seu discurso disse, diz e dirá dela, não podia ser reduzida a nada.
O que é então que Foucault entende por discurso? Algo muito simples: é a descrição mais precisa, mais concisa de uma formação histórica em sua nudez, é a atualização de sua última diferença individual.4 Ir assim até a differentia ultima de uma singularidade datada exige um esforço intelectual de apercepção: é preciso despojar o acontecimento dos drapeados demasiado amplos que o banalizam e racionalizam. As consequências disso vão longe, como veremos.
Trecho do CAPÍTULO I Tudo é singular na história universal: o “discurso”
Em "Foucault - Seu Pensamento, Sua Pessoa"
(trad. de Marcelo Jacques de Morais, ed. Civilização Brasileira), o
historiador Paul Veyne procura esclarecer o pensamento do filósofo e
amigo Michel Foucault (1926-1984). O livro é uma resposta aos detratores do pensador francês, a quem Veyne
define como um "cético", que vê com desconfiança as concepções
universalistas, mas não da realidade dos fatos.
Fonte: Folha de São Paulo.
Autor: Paul Veyne
Editora: Civilização Brasileira
Área: Filosofia
Páginas: 256 Pág.
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