O jogo sempre vira na neblina e
nas ruas da metrópole, pensou. Do chão até o topo, a vida sempre muda a sorte. Ele
carregava entre os dedos o cigarro Souza Paiol
(fumo forte, sem filtro, envolto em palha, preso com uma pequena fita azul que lhe contorna
todo o diâmetro e sem a maioria das cerca de quatro mil substâncias tóxicas que
compõem as marcas industriais), prazer propositadamente sazonal, pois o mesmo conserva
o alcatrão e a nicotina e, portanto, convém administrar racionalmente. A fumaça
serpenteia pelo interior do veículo e embaça o para-brisa.
Vê-se forçado a abrir os vidros, o que libera os graves do rhythm and poetry que completa a estética urbana desse cenário de vídeo clipe. Poças de água de uma chuva recente se enfileiravam no
asfalto e certamente provocariam aquaplanagem,
não fosse aquela estratégica velocidade de não mais que quarenta quilômetros por
hora que assegurava uma sensação de mover-se em “câmera lenta” pelas
ruas desertas da cidade. Fazia frio. O aquecimento vinha da temperatura do motor em
baixa rotação. Essa noite parecia maior que as demais. No banco do carona, uma
daquelas razões irrefutáveis para se gostar da vida.
Como no Admirável Mundo Novo
de Aldous Huxley, o “Soma” também
se fazia necessário aqui para amortecer
os impactos corrosivos da labuta cotidiana; e para servir de catalisador dos
diferentes prazeres que a alma cobra. Corpos, fumaça, música, ritmo, neon, concreto,
LED, pontes, viadutos e esquinas se sucederam no caminho que terminou sob o
perfume acolhedor do incenso.
Mediante determinados efeitos e circunstâncias, a voz feminina é mesmo canto de sereia, principalmente, nas imediações do mar.
Mediante determinados efeitos e circunstâncias, a voz feminina é mesmo canto de sereia, principalmente, nas imediações do mar.
Não. Ele não conseguia, não nessas
condições, compatibilizar seu estado atual, talvez pelo entorpecer da luxúria,
com os recentes tempos passados de angústia e idealismo romântico. Pensava
maravilhado: A vida é surpreendente e o homem é instável demais.
Lingerie escura em pele clara,
sussurros, meia-luz em tons avermelhados, olhos penetrantes que em questão de
segundos reviram a alma.
Uma aliança de ouro 18k,
anatômica, acabamento polido e fosco, despencara e se punha a tilintar na pia do
banheiro como em um retumbante ritual, uma ode ao matrimônio transgredido e
resignificado como triunfo da fêmea rebelada.
O amargo do Campari, quando degustado sobre a pele arrepiada e entregue, parece
atenuado.
E quando o sol passa através das
janelas venezianas entreabertas, a vida já virou literatura. E viu seguido e
validado o que William Foote Whyte
registrou em seu clássico “Sociedade de Esquina” como “o conselho dado a jovens escritores, de que devem trabalhar a partir
de sua própria experiência”.
Don Johnson de Sales.
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