Cotejo:
Sociedade de Esquina – A Estrutura
Social de uma Área Urbana Pobre e Degradada de William Foot Whyte/ e Corpo e Alma – Notas Etnográficas de um Aprendiz de Boxe de Loic Wacquant).
“Dificuldades
objetivas. Perigo da observação superficial. Não “acreditar”. Não acreditar que
se sabe porque se viu; não fazer qualquer julgamento moral. Não se espantar.
Não se deixar levar. Procurar viver na sociedade indígena. Escolher bem os
informantes. [...] A objetividade deve ser buscada tanto na exposição como na
observação. Dizer o que se sabe, tudo o que se sabe, nada mais do que se sabe”. Marcel Mauss, Manual d’ethnographie, 1950.
Similitudes
“Agora
leio com frequência o conselho dado a jovens escritores, de que devem trabalhar
a partir de sua própria experiência”. Escreve William Foote
Whyte na página 285, do Anexo A, de seu livro. Talvez se de inicio, Whyte
tivesse se acomodado com sua condição pessoal “privilegiada” de, segundo ele,
nunca ter tido de lutar por nada, e produzido algo superficial sobre
determinada área urbana degradada, a antropologia como conhecemos, fosse
bastante mais pobre. Ou quem sabe, a crença na desestruturação das áreas
urbanas e na sua desorganização fosse maior entre antropólogos e demais atores
sociais, incluindo os próprios moradores dessas áreas. Como também, se Loic
Wacquant tivesse se resignado diante da sua condição física aparentemente
inadequada para a prática do boxe e da sua condição social diferenciada em
relação aos meninos do DeeDee, hoje, soubéssemos menos sobre a observação participante ou como preferiu
Wacquant, da “participação observante”.
Mas os dois autores fizeram de seus status e de suas limitações, alavancas para
promover mudanças nas suas vidas e nas suas obras (não necessariamente nesta
ordem). Tanto Whyte quanto Wacquant foram revolucionários em suas práticas
etnográficas. E mesmo que desprezássemos os seus métodos, o que seria por
demais, absurdo. Ainda assim, eles continuariam revolucionários, talvez não
mais revolucionando, mas incrivelmente revolucionários. Revolucionários
aventureiros do tipo mais romântico. Aquele tipo aventureiro que segundo o
médico e revolucionário argentino, Ernesto Che Guevara de La Sierna, “é capaz de entregar a própria pele para
provar as suas verdades”. Aqui, residem as singularidades da contribuição
desses dois autores. Ambos escolheram caminhos diferentes, trocaram de caminho
durante a jornada, trocaram de objeto de estudo, e foram tocados profundamente
pelos objetos que escolheram, ou pelos quais foram escolhidos. Essa questão, de
quem escolheu quem, é no mínimo, dúbia, na relação desses dois autores com o
seu objeto. Wacquant e Foote Whyte foram em relação às suas
obras e para os objetos que estudaram, mais do que estudiosos, ambos foram,
verdadeiros “agente sociais”. No prefácio da edição brasileira de Corpo e Alma, o autor apresenta uma
citação do jovem Marx, tirada dos
seus manuscritos de 1844, onde o pensador diz que, “o agente social é, antes de mais nada, um ser de carne, de nervos e de
sentidos – no duplo sentido de sensual e de significante – um ‘ser que sofre’ e
que participa do universo que o faz e que, em contrapartida, ele contribui para
fazer, com todas as fibras de seu corpo e de seu coração”. A partir de Corpo e Alma e de Street Corner Society, Whyte e Wacquant deram uma enorme contribuição
para estender essa definição de Karl Marx até o ponto de englobar e acolher em
seu seio o etnógrafo e sua “participação observante”. Os dois autores foram de
encontro à visão de que as comunidades urbanas degradadas são “desorganizadas”.
Wacquant, também contribuiu para o combate à noção, segundo ele, enraizada na
sociologia norte-americana desde os primeiros trabalhos da escola de Chicago,
das relações entre divisão racial e marginalidade urbana. A essa noção, loic
Wacquant chama de “falsa idéia”.
Em Sociedade de Esquina, a pesquisa começou como um estudo dos padrões
de amizade entre as pessoas. E em Corpo e
Alma, a ideia inicial era estudar a realidade cotidiana do gueto. Na pagina
284, do anexo A, de Sociedade de Esquina,
Whyte escreve: “Estou convencido de que a
evolução real das ideias na pesquisa não acontece de acordo com os relatos
formais que lemos sobre métodos de investigação. As ideias crescem, em parte,
como resultado de nossa imersão nos dados e do processo total de viver”. De
fato. Tanto para uma obra como para a outra, as ideias emergiram dialeticamente
do processo de imersão e do processo
total de viver como citou Whyte.
Loic Wacquant confessa
que chegou a academia de Boxe por engano e por acaso. Na verdade Wacquant
pretendia estudar o cotidiano do bairro de Woodlawn
e buscava um ponto de observação privilegiado quando “aterrissou” no gym da Rua 63 levado por um amigo
francês e judoca. O mundo de Loic Wacquant era outro muito diferente do gueto. Tanto
Loic Wacquant como William Foote Whyte - que segundo ele mesmo, nada sabia
sobre a vida nas fábricas, nos campos ou nas minas, a não ser aquilo que pudera
aprender nos livros - pertenciam à classe média. Foote Whyte pretendia realizar
um estudo de comunidade sobre Corneville partindo das relações de amizade entre
os seus moradores. Wacquant queria estudar e explicar as relações sociais no
gueto negro. Os dois pesquisadores tinham em comum a disposição de se inserir
em comunidades, para eles, totalmente estranhas. E ambos queriam como objeto de
estudo, essas comunidades. Ambos se desviaram do objeto inicial de estudo. Loic
Wacquant encantou-se pelo boxe e terminou por focar todo o seu trabalho
acadêmico neste esporte. Foote Whyte, por sua vez, foi “atraído pelas gangues
da esquina”.
História
pessoal
William
Foote Whyte é neto de um médico e de um inspetor
escolar (não fez referências as avós). Desde cedo se interessou por economia e
reforma social e tinha esperanças de seguir a carreira de escritor. Declarou-se
insatisfeito com a sua própria vida que considerou intelectualmente
estimulante, mas sem aventura. Chegou a Mostrar-se incomodado com o que nominou
como “estreitas fronteiras” da sua existência até então limitada ao universo da
classe média. O seu trabalho em Sociedade
de Esquina representou também a tentativa de superação dessa condição.
Já Loic Wacquant, é também membro da classe média, vem de uma pequena
cidade francesa, foi praticante de vários esportes na infância tais como
futebol, basquete, rugby e tênis. Estudante da universidade de Chicago foi
orientando de Pierre Bourdieu. Wacquant
fez de seu estudo acadêmico em Corpo e
Alma, também uma “ego-trip” e uma redescoberta do seu próprio corpo,
inclusive, como “meio técnico”, conforme escreve Marcel Mauss, que compreende o corpo como “o primeiro e mais natural objeto de técnica e, ao mesmo tempo, meio
técnico do homem”. Citação utilizada como nota de rodapé por Wacquant na
página 79 de Corpo e Alma. Loic
Wacquant considerava impossível por razões éticas e epistemológicas escrever
sobre a comunidade sem nela realizar o que chamou de “passeios sociológicos” ou
seja, sem inserir-se no campo.
Motivações
Loic
Wacquant contava desde o início com a inspiração e apoio
motivador de Pierre de Bourdieu. Depois, ao confrontar-se com uma experiência
transformadora, não desejada e não prevista, que lhe foi proporcionada pelo Boxe,
se viu motivado a atender a necessidade de dominar completamente essa
experiência.
Para William Foote Whyte, a motivação vem do
desejo de romper com o senso de banalidade que envolvia a sua vida e que o
oprimia. Ele queria ir além das fronteiras estreitas da sua própria existência
para escrever algo que realmente valesse a Pena. Também, e principalmente, o
seu interesse por economia e por reforma social, o motivou a viver e escrever Sociedade de Esquina.
Orientação
acadêmica e auxilio no trabalho
Wacquant
era vinculado à Universidade de Chicago
e Foote Whyte à Universidade de Harvard.
O primeiro teve como
orientador o filosofo e sociólogo Pierre Bourdieu,
contou ainda com a colaboração do sociólogo William Julius Wilson, autor de The Truly Disadvantaged (Chicago; The
University of Chicago press, 1987). Bourdieu
cumpriria mais tarde, um papel decisivo quando foi necessário intervir para que
Wacquant não trocasse – “na embriaguez do mergulho” – a carreira acadêmica pelo
sonho do Boxe profissional. O segundo contou com a orientação de L. J. Henderson, bioquímico, secretário
do Comitê Acadêmico, e que foi fundamental na reformulação dos seus planos de
trabalho e na adequação de suas pretensões, principalmente no tocante ao
tamanho da equipe a ser utilizada em Sociedade
de Esquina. Henderson, o levou a
enxergar a necessidade de certa perspicácia e razoabilidade nas ações. Foote
Whyte fez também várias entrevistas com professores de Harvard em busca de apoio. Ainda trabalhou por dois anos junto com John Howard, na época, também
pesquisador-júnior de Harvard e que
havia trocado o campo físico-química
pela sociologia e muito ajudou a clarear suas ideias. A procura de ajuda junto a
pessoas mais capacitadas e mais experientes do que ele no trabalho que estava
realizando, foi providencial para compensar a escassez de bibliografia
necessária para a realização de seu estudo. Também M. Arensberg foi fundamental para a definição dos seus métodos de
pesquisa. No doutorado, Foote Whyte foi orientado por W. Lloyd Warner. E contou ainda com a ajuda de Everett Hughes que chegou a promover um acordo durante a banca de
doutorado para assegurar a aprovação da tese de Foote Whyte que fora
questionada por motivações conceituais e políticas relacionadas com disputas
internas da academia, por Louis Wirth,
autor de significativo estudo sobre áreas pobres e degradadas. Hughes, ainda convenceu o departamento a
aceitar artigos publicados por Whyte, como revisão da literatura. Sem que o
autor tivesse que encaderná-los junto com o livro, como exigira inicialmente a
Universidade.
Algumas
referências teóricas e citações bibliográficas
Loic
Wacquant cita os manuscritos de 1844 de Karl Marx; trechos
de obras de Pierre Bourdieu; Marcel Mauss, Arthur Krystal, a romancista Joyce
Carol Oates que escreveu “On Boxing” (Garden City: Doubleday , 1987), entre
muitos outros.
Foote
Whyte cita Bronisław
Kasper Malinowski e Émile Durkheim cujas
influências são bastante perceptíveis em sua obra. Faz referência também a Pierre
Janet, Alex de Toqueville, cita a autobiografia de Lincoln Steffens como uma
obra que muito lhe impressionou, pois esta obra lhe mostrou “que um homem como
uma origem semelhante a dele poderia se afastar do seu modo de vida e adquirir
um conhecimento intimo de indivíduos e grupos com atividades e crenças muito
diferentes das suas”. Citou ainda Middletown (estudo sobre uma imaginária
cidade média americana, que possibilita investigar um sistema sociocultural
relativamente fechado. É considerado como pioneiro no estudo sociológico da
comunidade urbana) de cujo autor, Lynd,
começara a seguir a linha.
Métodos
William
Foote Whyte, sob a influência onipresente de Bronisław Malinowski, apresenta um
método completamente marcado pela observação
participante. Whyte também adota desde o inicio, o planejamento cuidadoso
de suas ações. Mas corroborando a sua afirmação de que as ideias crescem, em
parte, como resultado da imersão do pesquisador nos dados, e do que ele chamou
de “processo total de viver”, seu método comporta também mudanças de rumo. O
autor, que considera que muito do processo de análise se dá num plano inconsciente.
Acredita não ser possível apresentar um relato completo desse processo.
A escolha da comunidade
onde se daria o estudo que resultaria em Sociedade
de Esquina, não foi, segundo Whyte, feita com bases científicas. Mas sim,
derivou de uma imagem mental criada pelo autor, do que seria o tipo de
comunidade que ele estava buscando, e no qual, Cornerville se encaixava. A saber, um distrito pobre e degradado.
Ao elaborar o seu
projeto de pesquisa, Whyte procurou pessoas mais experientes e capacitadas do
que ele no tipo de trabalho que estava realizando e modificou seu plano a
partir dessas consultas e das contribuições recebidas.
O método de Foote Whyte
buscava inverter a forma como a comunidade era vista por grande parte da
literatura sociológica, ou seja, em termos apenas de problemas sociais, não
existindo como sistema social organizado. Foote Whyte teve, principalmente
devido a escassez de literatura adequada para o seu trabalho, que adaptar teorias
que pudessem lhe auxiliar. Começou por Malinowski
que lhe pareceu mais aproximado do seu trabalho. Embora os estudos
estivessem relacionados com “tribos primitivas” e o seu, com uma comunidade
urbana de uma grande cidade.
Whyte buscava a
objetividade, queria inicialmente, estabelecer o padrão de interação entre as
pessoas. Esse traço positivista pode possivelmente ser atribuído a certa
influência do pensamento de Durkheim sobre o autor.
Para desenvolver seus métodos de entrevista, Whyte chegou a
entrevistar psiconeuróticos num hospital.
Quando iniciou seu trabalho, o autor se via como economista,
e não contou com nenhum treinamento em sociologia ou antropologia. Sendo assim,
toda a sua metodologia foi se desenvolvendo de uma forma bastante empírica.
Foote Whyte demonstra uma permanente preocupação com o método. A utilização de
um informante-chave, que, no caso de Doc, era praticamente o informante
perfeito. Foi outro traço, senão o principal, do método de Foote Whyte. E o
que, certamente, maior contribuição ofereceu para o sucesso do seu trabalho.
Perceber que seria sempre um estranho para a comunidade, se
não fosse morar lá. Além de uma evolução do pensamento do autor em relação ao
aperfeiçoamento metodológico, é também, provavelmente, uma emergência dos
conhecimentos adquiridos com a leitura da obra de Malinowski.
Conhecimentos esses que passam a compor o seu “processo total de viver”.
Whyte manteve alguns
confortos fora do campo, fazendo uso de um quarto, pertencente a um amigo na
Universidade de Harvard para tomar um banho ocasional de banheira e chuveiro.
Tipo de regalia com as quais, Malinowski,
seu inspirador primeiro não pôde contar durante a produção do seu Argonautas do Pacífico Ocidental. E logo,
o autor de Street Corner Society, encontrou
um espaço revigorante no próprio campo, quanto instalou-se na casa dos Martini.
Whyte afirma na página 299, do Anexo A, de Sociedade
de Esquina que qualquer tensão sofrida no trabalho desaparecia enquanto
comia, bebia e depois dormia por uma, ou duas horas, na casa da família
Martini. Foote Whyte considera que sem esse ponto de apoio, teria sido
impossível para ele, realizar um estudo tão intensivo como o que ele realizou
em Cornerville.
Ao inserir-se na
comunidade, Whyte descobriu a importância das relações pessoais para a sua
aceitação. Foi aprendendo com a comunidade. Ou, com o que Loic Wacquant chamou
de “saber indígena” em Corpo e Alma.
Em dado momento (p.317) Foote Whyte se dá conta, durante a noite final do campeonato
de boliche, da importância da estatística para os métodos de pesquisa de campo.
O papel do informante
ganhou tanta importância no método de Foote Whyte que Doc foi gradativamente
passando de um informante-chave para um “colaborador” da pesquisa. De tal
forma, que Foote Whyte chega a admitir que algumas das suas interpretações são
mais de Doc do que propriamente suas. E que se tornara impossível
desemaranhá-las. Foote Whyte também aprendeu que não era necessário uma
“imersão total” e abandonou essa pretensão ao ser avisado por Doc que as
pessoas não esperavam que ele se comportasse igual a elas ou as imitasse. Mas,
bastava apenas que tivesse um interesse amigável por elas. O autor, no processo
de imersão, utilizou-se de expedientes como emprestar dinheiro, participar de
gangue, envolver-se nas eleições locais, praticar corrupção eleitoral,
participar de lutas comunitárias, e até envolver-se em incidentes passionais em
um bar. Isso tudo o levou a ultrapassar limites éticos e a cair numa crise de
consciência. Pois, tendo sido ele criado como “um respeitável cidadão de classe média, seguidor da lei” se viu “assumindo comportamentos que havia
aprendido a considerar imorais”. Além da violação da ética, Whyte concluiu
também que teria violado, do ponto de vista prático da pesquisa, a ética
profissional.
É muito interessante
examinar a obra de William Foote Whyte tendo em vista a sua passagem ao largo
de toda uma tradição sociológica que tratava de áreas pobres e degradas como
espaços “desorganizados”. Esse afastamento pode ter assegurado a quase pureza
do método de Whyte que depois de conhecer toda essa produção não utilizada, a
considerou, inútil e enganosa. Foote Whyte foi revolucionário em seus métodos e
entregou a própria pele para provar suas verdades, até o fim. Essa
autenticidade irritou a academia e por pouco não inviabilizou o seu
doutoramento. Mas, no final, seu método venceu e ele pôde aprender e também nos
ensinar “que é possível cometer erros
estúpidos e equívocos sérios, e ainda assim produzir um estudo de mérito”.
Loic
Wacquant me parece menos aflito em relação a questões
metodológicas em Corpo e Alma. Seu
método parece fluir mais facilmente através da sua imersão e vice-versa. E uma
imersão de tipo “total” parece ser o alicerce do seu método. Wacquant utiliza
como principal ferramenta de pesquisa o seu próprio “eu”, o corpo físico e os
sentidos, os significados e os significantes dispostos no campo como um
legítimo “ser que sofre”. O autor, não aparentando a mesma ansiedade que Foote
Whyte em relação aos métodos a serem desenvolvidos e utilizados no seu
trabalho. Não deixa de ser igualmente cuidadoso com eles. Loic Wacquant parece
buscar uma conversão moral e sensual ao cosmo como técnica de observação e de
análise “com a condição expressa de que
ela seja teoricamente instrumentada” (p. 11, 12). Para “permitir a aproximação através da prática dos esquemas cognitivos,
éticos, estéticos e conativos que põem para operar cotidianamente aqueles que o
habitam” (p. 12). Ou seja, durante toda a jornada do seu estudo, Wacquant
parece perseguir a comprovação da afirmação de seu mestre, Pierre Bourdieu, de que “aprendemos
com o corpo”. Desde o inicio,
Wacquant empenhou-se em registrar tudo em um diário etnográfico. Chegando a
juntar duas mil e trezentas páginas de notas brutas. Nesse diário o autor
registrava os detalhes (conversas, interações e acontecimentos) relacionados
com os desafios que o confrontavam com o seu próprio corpo.
Tal como Foote Whyte em
Sociedade de Esquina, Wacquant também
buscava outro objeto de estudo. Apenas uma estratégia de imersão. Era o que
inicialmente representava o Gym para
o estudo de Loic Wacquant. Assim sendo, os métodos a serem utilizados para
estudar a realidade cotidiana do gueto norte-americano, objetivo inicial do
autor, não poderiam ser os mesmos para dar conta de um estudo que agora levaria
em conta o próprio corpo como “instrumento
de investigação e vetor de conhecimento” (p.12).
Semelhante a Foote
Whyte, Wacquant também recusou a idéia (a qual julgava falsa) de que o gueto
seria um universo “desorganizado”. E se insurgia contra a noção que relacionava
divisão racial e marginalidade urbana. Ambos os autores, um da Universidade de
Chicago e o outro da Universidade de Harvard confrontavam-se com a visão da
famosa Escola Sociológica de Chicago.
Wacquant ao utilizar o
Boxe como ferramenta para se inserir na comunidade, acabou se vendo imerso numa
“prática intensamente corporal, numa
cultura totalmente cinética, num universo no qual o mais essencial se
transmite, se adquire e desdobra-se aquém da linguagem e da consciência. Enfim,
em uma instituição feita de homem (ns) e que se situa no limite prático e
teórico da prática” (p. 15). Loic Wacquant se viu imerso no encantador
mundo do Boxe. E resolveu fazer dele seu objeto de estudo. E de seu próprio
corpo, o instrumento privilegiado dessa investigação e aprendizado. Se o
próprio corpo de Wacquant seria a partir de agora o seu principal instrumento
de pesquisa e aprendizado seria preciso prepará-lo. E a preparação em si já
representaria ao mesmo tempo uma importante etapa do desenvolvimento
metodológico para o trabalho e os primeiros experimentos em campo. Por três
anos, em cerca de três a seis sessões por semana, Wacquant preparou, aprimorou
e fez funcionar seu instrumento de pesquisa no campo. Desenvolvendo e aplicando
seu método de “participação observante” com tanta profundidade que chegou a ser
seduzido por seu objeto. “na embriaguez
do mergulho, durante algum tempo, cheguei a pensar em interromper minha
carreira universitária para ‘passar para o lado’ dos profissionais”.
Escreveu na página 20 de Corpo e Alma.
Tal “embriaguez” também chegou a tomar conta de William Foote Whyte quando o
mesmo se pôs a imitar os garotos da esquina, até ser por eles contido. No caso
de Wacquant, seu orientador Pierre
Bourdieu foi fundamental para demovê-lo da ideia de trocar definitivamente
a Universidade pelo Gym. Esse deve
ser possivelmente, o maior risco do método da observação participante.
Principalmente quando ocorre uma exagerada empatia ou identificação extrema do
etnógrafo com o objeto de estudo. E talvez, o rompimento dos limites da
observação participante que também estão presentes nas atitudes de Foote Whyte que
chegou a participar de atos eticamente e profissionalmente contestáveis. Mereçam
mais a denominação de “participação observante” do que de “observação
participante”. Sem necessariamente ter que ficarem marcadas pelas consequências
éticas, morais e técnicas prejudiciais que possam vir a desencadear.
Se Foote Whyte contou
com Doc, seu informante-chave quase perfeito. Wacquant contou com DeeDee um
informante-chave “quase pai”. Ambos os informantes-chave cumpriram papéis
decisivos para o sucesso das duas obras. Sendo que Doc teve um desempenho bem
mais destacado do que o velho treinador.
Wacquant apresenta como
uma das vantagens do seu método da “participação observante” a eliminação do
“paralogismo (falso, mas que tem aparência de verdade. Para alguns, o
paralogismo é diferente do sofisma, pois não é produzido de má-fé, isto é, não
é intencionalmente produzido para enganar) Ecológico” que afeta a maioria dos
estudos sobre o Boxe.
Wacquant foi
inicialmente “traído” pelo seu recurso metodológico de utilizar-se do Boxe como
uma “janela” para o gueto. E logo depois foi agraciado pelo Boxe com a
oportunidade de desenvolver um novo método sensorial forjado empiricamente por,
e para, o estudo dessa arte que ele mesmo chegou a dizer, usando as palavras de
Thomas Hobbes, que proporciona aos boxeadores uma existência comparável ao
“estado de natureza” devido a ser miserável; brutal; e curta.
O método de Wacquant o
levou a conhecer concomitantemente o mais profundo do seu objeto de estudo e do
seu próprio “eu”. Fazendo com que a sua afirmação: “É o ‘pequeno ambiente’ do Gym como um todo, ‘como feixe de forças
físicas e morais’ que fabrica o boxeador”, possa valer igualmente, no seu
caso, para o etnógrafo e para sua específica etnografia. Por fim, o método de
Wacquant possibilitou, segundo ele próprio, organizar uma experiência de
aprendizagem em três objetivos principais:
Primeiro:
Apresentar dados etnográficos precisos e detalhados, produto da observação
direta e pela participação intensiva. Segundo:
Destacar desta base documental, alguns princípios organizacionais do Boxe; e terceiro: Esboçar uma reflexão sobre a
iniciação a uma prática da qual o corpo é ao mesmo tempo a sede, o instrumento
e o alvo.
Até no tocante a
organização do livro, Wacquant foi metódico. Resolveu organizá-lo com base no
princípio dos vasos comunicantes: “A proporção de análise e de relato, de
conceitual e de descritivo, invertendo-se progressivamente à medida que as
páginas avançam”.
Resultados
Wacquant
efetivamente ofereceu dados etnográficos precisos e detalhados sobre o universo
social do Boxe. E contribuiu para tornar esse universo menos mal conhecido;
lançou mais luz sobre os vínculos e rupturas que marcam a relação do Boxe com a
violência, especialmente nos guetos; comunicou sobre o Boxe, que essa arte
reside na fronteira entre natureza e cultura. E assim abriu um gigantesco
“portal multidimensional” através do qual é possível transitar por múltiplas
abordagens capazes de explorar tanto o “Boxe-natureza” quanto o “Boxe-cultura”,
misturá-los e estudá-los conjuntamente, olhar para eles com as lentes de
Hobbes, ou de Geertz, ou quem sabe até de Aristóteles. Afinal, o “estado de
natureza”, a “interpretação das culturas” ou mesmo a “potência” podem oferecer
analogias e ferramentas importantes para corroborar os resultados dos estudos
de Loic Wacquant a respeito do Boxe.
Para a etnografia,
Wacquant traz como importantes resultados, a desmistificação de vários aspectos
relacionados com o envolvimento do pesquisador com o objeto de estudo; ele
esclareceu na prática, os riscos do envolvimento profundo do pesquisador, e
realizou um tipo de relato que Geertz provavelmente
consideraria como uma descrição “densa”. Wacquant foi ao mesmo tempo
pesquisador e objeto já que chegou mesmo a fundir-se, em certos momentos, ao
universo estudado, convertendo-se em parte do campo. Se Foot Whyte imergiu no campo para encontrar
suas respostas. Loic Wacquant foi além. Aspirou o campo a sua volta e deixou-se
tomar pelo objeto. E essa contribuição é relevante não só para a antropologia
que desde Malinowski talvez não tivesse experimentado uma imersão tão
original.
Entregar a própria pele
para provar as suas verdades, é, na definição de Che Guevara, uma qualidade de
um tipo especial de aventureiro. Wacquant entregou a sua pele, o seu corpo, e a
sua alma. Talvez isso possa fazer dele mais do que um aventureiro do tipo
romântico e especial. Mas acima de tudo, um tipo especial de antropólogo, um
bom exemplo e motivação para a etnografia e para as ciências sociais.
Em relação aos
resultados de William Foote Whyte, o
relato de Angelo Ralph Orlandella sobre o impacto do trabalho deste cientista e
a influência sociológica do mesmo em seu comportamento, é apenas a ponta do
iceberg no tocante a contribuição deste intelectual para as ciências humanas,
para a etnografia e para a comunidade a qual estudou. A contribuição efetiva de
Whyte para a comunidade onde atuou é um importante diferencial do seu trabalho
e também uma distinção em relação ao trabalho de Wacquant. O autor de Corpo e Alma deixou um importante legado
para as ciências humanas e para o esporte que estudou e praticou. Mas sua
contribuição para o gueto onde realizou sua pesquisa, salvo os impactos
indiretos, não parece digna de comparar-se aos resultados de Foot Whyte que se
envolveu com as questões locais, procurou amenizar os dramas pessoais e sociais
dos moradores do local, participou de entidades comunitárias, conseguiu bolsa
da universidade para colaboradores locais de sua pesquisa, preocupou-se em
retornar os resultados para indivíduos e instituições da comunidade. Wacquant também protagonizou envolvimentos
pontuais com problemas das pessoas com as quais convivia e procurou também
ajudá-las. Mas até devido aos caminhos pelos quais seu estudo enveredou, não
teve um foco ampliado sobre a comunidade. Mas sim, restringiu seu foco ao Gym, ao boxe e ao seu público mais
doméstico.
Os erros políticos,
éticos e epistemológicos de Whyte aproximaram-no mais ainda da realidade
cotidiana de Cornerville e da forma que as pessoas daquele lugar viviam. Se a
maior riqueza, em minha opinião, do trabalho de Wacquant está relacionada com a
emergência do conhecimento sensorial impulsionado pela ação do corpo num
universo específico e denso; e seu impacto revolucionário no mundo acadêmico e,
sobretudo na etnografia. No caso de Foot Whyte vejo como o ponto mais alto da
sua contribuição a catalisação do que Ruth Benedict chamaria de diversas
“feições culturais” da comunidade de Cornerville para gerar uma obra com
potencial universalizante em se tratando de comunidades pobres e degradadas. O
legado de Whyte em “Sociedade de Esquina”.
Penso eu. Está mais relacionado com o coletivo do que com o individuo.
Embora, Orlandella evidencie também este resultado como derivado da sua ação.
Loic Wacquant se
revolucionou para revolucionar a etnografia. Foote Whyte revolucionou a
etnografia para, por meio disto, revolucionar a banalidade opressiva que
dominava a sua vida. Ambos fizeram uma jornada entre mundos diferentes. Foote
Whyte se arriscou mais na comunidade, e, portanto, sofreu mais hostilidades. E
teve que aprender a adaptar-se mais ao exterior. Wacquant se refugiou no Gym. E dessa forma, sofreu menos a
hostilidade do mundo estranho. Loic Wacquant teve a orientação firme de Pierre Bourdieu e a proteção quase
paternalista de DeeDee. Mas, nem por isso, deixou de viver todo o desgaste e a
pressão física e psicológica que oprime quem ousa pôr o corpo e a alma no
ringue. Foot Whyte por sua vez, saiu garimpando ajuda, informações,
orientações. Órfão até de uma bibliografia adequada para o seu trabalho, teve
que fabricar a rede, a canoa e os remos, e ainda lançar os “alevinos” no lago,
para só depois deles crescidos, aprender e praticar a pesca.
Considero o trabalho de
Wacquant, heroico, mágico, aventureiro e profundo. Mas confesso que me agrada
muito mais o experimentalismo sincero de Foote Whyte. Não que Wacquant também
não tenha sido sincero. Mas considero entregar-se em favor da comunidade,
hierarquicamente superior a entregar-se por um esporte, pela academia, ou por
si próprio. Deve ser alguma limitação teórica ou ideológica a qual ainda não
consegui superar. Ou até mesmo algum tipo de preconceito. Mas a verdade é que
me sinto mais impressionado pelo espírito reformador de William Foote Whyte.
Por Johnson Sales.
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