Diferenças e semelhanças
Ele foi pegar
um ônibus e se encontrou com o destino. Esta poderia ser uma, das muitas
descrições possíveis sobre a saga de Carlos Castaneda, o jovem estudante de
antropologia que buscava informações sobre plantas medicinais e conheceu um
feiticeiro índio que mudou a sua vida. O livro A Erva do Diabo (Referência a uma erva do gênero Datura
mencionada por Castaneda, e que acabou dando título
ao livro em várias traduções) traz nas suas pouco mais de trezentas páginas, a
longa jornada do antropólogo para se tornar feiticeiro. Castaneda, como Loic
Wacquant, mergulhou profundamente no seu objeto de estudo, contou com um
informante-chave, fez uso do próprio corpo (e alma) como principal instrumento
de estudo.
As
experiências de Castaneda e de Wacquant têm muitas semelhanças e também
diferenças. Tentaremos aqui examiná-las para melhor compreender as suas
colaborações para a etnografia, para a antropologia e para as ciências sociais
como um todo. Além de nos beneficiarmos com esses conhecimentos profundos que
foram acessados e disponibilizados por esses dois autores a partir do que Sócrates chamaria de “ascensão da alma até o lugar
inteligível”.
Loic Wacquant
foi tentar conhecer o gueto e teve a sua alma capturada pelo boxe. Esta
afirmação, também não parecerá tão absurda para quem tiver se dedicado à
leitura de “Corpo e Alma – Notas Etnográficas de um Aprendiz de Boxe” de
autoria desse sociólogo.
Wacquant
contou com o apoio e incentivo de Bourdieu.
Carlos Castaneda teve o incentivo primordial do Dr. Clement Meighan. Ambos realizaram trabalhos desafiadores e
revolucionários para a sua ciência e para o seu tempo. Ambos foram seduzidos
pelo seu objeto de estudo. Carlos Castaneda foi mais que seduzido. Castaneda
viu sua ciência branca e positivista relativizar-se diante da existência de
outras realidades apresentadas pelo velho índio Yaqui de Sonora.
Mas, tal qual Loic Wacquant, Castaneda conduziu seu projeto científico até o
fim e nos brindou com uma etnografia original e bela.
Homens
de Conhecimento
A jornada rumo ao conhecimento oferecia
para os dois autores, caminhos de relevos diferentes, mas, de horizontes iguais.
Para Loic Wacquant as regras estavam postas. Eram claramente anunciadas por
DeeDee. Para Carlos Castaneda, as exigências eram quase sempre veladas, as
decisões mais importantes eram anunciadas por augúrios. E diferente do Boxe,
onde há certa possibilidade de o aprendiz argumentar e contradizer o treinador
com palavras e até com ações exercendo uma furtiva democracia em relação aos
métodos e estratégias, principalmente quando está no ringue. No caso do
aprendiz de feiticeiro, o mestre Don Juan detinha unilateralmente o poder na
relação com o aprendiz. Para ambos os aprendizes os mestres eram também os
“informantes-chave” de suas pesquisas. Tanto para um, como para o outro, o
aprendiz que buscava o conhecimento deveria se caracterizar, como relata
Castaneda, por apresentar um propósito inflexível, frugalidade e solidez de
julgamento. E ambos não dispunham de liberdade para inovar.
“Ser
boxeador é apropriar-se, por impregnação progressiva, de um conjunto de
mecanismos corporais e de esquemas mentais tão estreitamente imbricados que
eles apagam a distinção entre o físico e o espiritual, entre o que emerge das
capacidades atléticas e o que diz respeito às faculdades morais e à vontade.”
(Wacquant, Loic, Corpo e Alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe, p.
34).
Trabalho: Pesado e árduo era o que se
exigia para formar um homem de conhecimento tanto no Gym como “no mundo dos brujos”.
Enquanto Dom Juan exigia do seu aprendiz concentração, atenção em cada detalhe,
educação da mente, do corpo e de todos os sentidos e uma disciplina rígida no
treinamento com trabalhos que iam desde mover-se cuidadosamente pelo chão até
achar o seu “Ponto”; capturar lagartos e costurar seus olhos para realizar um
feitiço; até cultivar cerimonialmente uma planta. DeeDee, por sua vez, cobrava
de seus aprendizes de boxeadores uma disciplina igualmente rígida que
aplicava-se à conduta dentro e fora do ringue e chegava mesmo a regular a
alimentação, a rotina de treinamento e até a prática sexual; além de uma
infinidade de sessões de exercícios físicos e preparação mental. Don Juan,
segundo Castaneda, “declarou que para ser
um homem de conhecimento, é preciso um trabalho exaustivo. Um trabalho
exaustivo demonstrava uma capacidade: (1) de fazer esforços dramáticos; (2) de
conseguir a eficiência; e (3) de enfrentar um desafio”. (Pag.246).
Os “DeeDee
Boys” que aparecem na narrativa de Loic Wacquant, inclusive ele próprio,
parecem praticantes contumazes desse trabalho exaustivo defendido por Dom Juan
como pré-requisito para se tornar um homem de conhecimento. E, tal qual o aprendiz
de feiticeiro, os aprendizes e praticantes do boxe, também aparentam serem
detentores dessa capacidade de realizar esforços dramáticos no Gym, no ringue e
na vida; de atingir a eficiência e enfrentar não apenas um, mas inúmeros e
sucessivos desafios. Das palavras de Wacquant, se pode inferir até mesmo que,
essas características poderiam funcionar como um divisor de águas em relação aos que prosseguirão na carreira de
boxeador e os que se perderão pelo caminho.
“Todos
participariam de uma mesma essência: a providência e a determinação individual
decidirão qual dos pequenos irá se tornar grande, contanto que ele tenha a
coragem e o talento necessários”. (Wacquant, Loic, Corpo e Alma, Pag. 54).
O homem de conhecimento relatado por
Castaneda tinha que ter respeito, medo, estar alerta, tinha de ter
autoconfiança e deveria seguir um “caminho com coração”. Já o pugilista
apresentado por Loic Wacquant vivia na linha tênue entre os vícios e armadilhas
das ruas e o que Wacquant chamou de “uma ilha de ordem e virtude”. Ou seja, o
homem de conhecimento de Wacquant transitava entre o “mundo fechado” do boxe “escudo
protetor contra as tentações e os riscos da rua” e as próprias ruas,
vivendo imerso concomitantemente nos dois universos.
“Caminho
com Coração”
“O
caminho com coração é uma maneira metafórica de asseverar que, a despeito de
ser transitório, a pessoa ainda assim tem de prosseguir e tem de ser capaz de
encontrar satisfação e realização pessoal no ato de escolher a alternativa mais
acessível e identificar-se completamente com Ela”. (Castaneda, Carlos, A Erva
do Diabo – Os ensinamentos de Dom Juan, pag. 250).
Loic Wacquant, ao encontrar o Boxe, teria
encontrado um caminho “com coração”. Carlos Castaneda o teria encontrado ao
imergir no mundo dos Xamãs e da feitiçaria. Os dois autores teriam completado o
caminho metafórico da síntese que Dom Juan, segundo Castaneda, fazia do
fundamento lógico de todo o seu conhecimento. A saber, “encontrar o caminho com coração e depois percorrer a sua extensão”
(Pag. 251). Significando, escreve Castaneda, “que a identificação com a alternativa acessível era o suficiente para
ele” (idem).
Método
em Castaneda e em Loic Wacquant
Loic Wacquant acumulou
duas mil e trezentas páginas de anotações, gravou entrevistas e conversou com
vários praticantes do boxe, recolhendo as suas declarações espontâneas. Além de
contar com o acesso livre ao conhecimento de DeeDee, que lhe esclarecia
diretamente as dúvidas e questionamentos. Para apreender o conhecimento
buscado, Wacquant fez uso do seu corpo, mente e sentidos trabalhando por meio
da educação por exercícios, rotinas e práticas sensoriais:
“É
com todos os sentidos que nos convertemos pouco a pouco ao mundo do boxe e a
seus jogos; para dar toda a força a essa proposição, seria preciso poder
restituir todo o conjunto de odores (a secreção assoprada com toda a força
pelas narinas, o suor que flua no ar, o fedor da prancha de abdominais, o
cheiro do couro das luvas), os barulhos cadenciados dos golpes, cada aparelho
com o seu ruído próprio, cada exercício com a sua tonalidade, cada pugilista
com a sua própria maneira de fazer “estalar” o speed bag; o bater ou o galope
dos pés que ressoam no chão ou que escorregam e rangem na lona do ringue, os
bufados de cansaço, os assobios, chiados, assopros e gemidos, os gritos e
suspiros característicos de cada atleta e, sobretudo, a disposição coletiva e a
sincronização dos corpos, que, somente por serem vistas, já bastam para
produzir efeitos pedagógicos duráveis, sem esquecer da temperatura, cuja
variação e intensidade não são as menores das propriedades do salão. Sua
combinação produz uma espécie de ‘embriaguez sensorial’, que é parte integrante
da educação do aprendiz de boxeador.” (Wacquant, Loic, Corpo e Alma, Pag.90).
Durante o seu
aprendizado, o Corpo e a Alma de Loic Wacquant atuaram praticamente no seu
estado natural. Contando apenas (e isso de forma alguma é pouco) com seus sentidos
e com os processos, físicos, químicos e psicológicos derivados do uso destes.
Wacquant contou com a
disposição de DeeDee que entre uma excentricidade ou outra, sempre mostrou-se
solícito no cumprimento de seu papel, parece-me que, não formal, de
informante-chave. DeeDee era direto e explícito; sem rodeios.
Wacquant construiu sua
obra cientifica anotando opiniões e depoimentos, registrando em fotos, gravando
e transcrevendo e ainda inferindo de suas sensações e percepções e
decodificando linguagens e expressões muito próprias de um universo específico
e limitado.
Carlos Castaneda também
teve um informante-chave. Só que o seu era muitas vezes, pouco colaborativo,
estranho, arredio e monopolista exagerado do controle pessoal e social da
direção e do fluxo do saber. Posicionando-se, muito mais incisivamente do que o
fazia DeeDee, no topo da hierarquia que separa o mestre do aluno. Muitas vezes
Dom Juan não permitia que Castaneda registrasse seus ensinamentos. Fazer
fotografias, nem pensar!
Castaneda precisava, de
vez em quando, guardar tudo na memória e só depois escrever. Todo o fluxo de
informações era controlado unilateralmente por Dom Juan que definia sua forma e
fluidez de acordo com critérios muito próprios e raramente explicitados. O
velho índio Yaqui se utilizava de metáforas e mitos e ensinava a partir de um
conjunto de símbolos de sua cultura. Se os processos de aprendizagem de Loic
Wacquant se davam sob o guarda-chuva de uma apurada e aprofundada cognição. Com
Castaneda a cognição se dava a partir de novos processos particulares do mundo
dos Xamãs.
“Minha
tarefa mudou misteriosamente de uma mera coleta de dados antropológicos para a
internalização dos novos processos cognitivos do mundo dos xamãs”. (Pag. 14).
Outra diferença
fundamental no ferramental utilizado pelos dois autores para o seu aprendizado,
reside no fato de que, Castaneda, diferentemente de Wacquant, usou e abusou de
substâncias externas ao seu organismo para deflagrar os processos físico-químicos,
psíquicos e cognitivos dos quais necessitava na sua jornada em busca do
conhecimento pretendido.
- A Datura Inoxia que continha o “aliado” de qualidades consideradas femininas, era possessivo; violento e imprevisível. Esse “aliado” causava efeito nocivo sobre o caráter dos seus seguidores e oferecia poder superfluido;
- A Psilocybe Mexicana era masculino; desapaixonado; gentil e previsível. Dava êxtase. E tinha efeito benéfico sobre o caráter dos seus seguidores;
O “aliado” era um
veiculo, um auxiliar. Um “aliado” era domesticável.
Utilizando-se dessas
substâncias, Castaneda pode viver um processo de aprendizado e também de
apreensão das realidades estudadas, diferente de qualquer coisa que as
tradicionais ferramentas de pesquisa e estudo de sua época, e da atual,
pudessem possibilitar. Castaneda foi além do Corpo e da Alma, juntou a eles,
efeitos potencializadores dos seus sentidos e da sua imaginação. Wacquant
estudou uma realidade mais simples, mais restrita e mais concreta apesar das
sensualidades exploradas, registradas, inferidas e ou decodificadas. Castaneda,
por sua vez, estudou mais do que uma realidade. Ou pelo menos, mais de um
estado de realidade. Na verdade, dois estados diferentes de realidade, a realidade comum e a realidade não comum. E mais, o autor terminou por
aceitar a existência de uma realidade separada: A realidade do consenso especial. Que surge quando a certeza de que
a realidade da vida cotidiana seja implicitamente real, entra em colapso.
Talvez, o tipo de
estudo e pesquisa realizados por Castaneda, não fossem possíveis de serem
levado a termos sem a ajuda das substâncias utilizadas pelo cientista. De fato,
no campo em que o mesmo realizou seu trabalho, seria impensado agir de outra
forma. Se o tivesse feito, muito provavelmente, não estaríamos agora analisando
e nos deleitando com essa obra-prima da etnografia.
Castaneda e Wacquant
efetivamente “viveram seus campos”. Realizaram um mergulho muito profundo nos
seus objetos de estudo. Foram “capturados” pelo objeto e desvencilharam-se
serena e conscientemente para “arrastar” para fora dos universos específicos,
dos quais, esses objetos eram próprios, ensinamentos e aprendizagens
inimagináveis, se considerados à revelia dos métodos desenvolvidos pelos dois
autores e, que possibilitaram a realização desses tipos inovadores e originais
de pesquisa científica antropológica.
Conclusão
A
Erva do Diabo com seu mundo de
energias, feitiços, brujos e profunda reflexão sobre o humano, a natureza, o
infinito e os caminhos com coração; e
Corpo e Alma com a desafiadora
expedição ao mundo sensual e social do boxe. Mostraram a magnitude da
envergadura cientifica de Loic Wacquant e de Carlos Castaneda. E nos levam a
pensar sobre as qualidades ideais ou idealizáveis que possamos imaginar para um
etnógrafo que deseje inovar como esses dois inovaram. Acredito que se relermos
atentamente essas duas obras, talvez, possamos começar a vislumbrar tais
qualidades. E desconfio que elas tenham algo a ver com a utilização do Corpo e da
alma e de todos os Sentidos estimulados de forma puramente endógena, ou não,
para trilhar a grande jornada do conhecimento, por um caminho com coração e apoiado por um informante-chave ou por um aliado.
Desde que isto nos leve sempre a um reencontro conosco, e a uma vida vivida com
mais dignidade e com mais vontade científica. O etnógrafo é também um Brujo, um
Pugilista, um Diablero. É um homem e uma mulher. É alguém capaz de se entregar
de Corpo e Alma e se deixar guiar por
um velho índio ou por um velho desportista, ambos capazes de trazer o “novo”
para suas vidas e, até mesmo de abalar toda a sua estrutura formal de
conhecimento. Deixar-se tocar e até envolver-se e modificar-se profundamente
pelo objeto. Para depois poder compartilhar sua experiência com a academia, com
a ciência e com a sociedade. Estas, certamente, são qualidades inerentes aos
grandes etnógrafos. Pois com Loic Wacquant e com Carlos Castaneda, se deu
assim.
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