Gotículas entravam pela janela e
respingavam levemente sobre a página cento e vinte e sete de Ruído Branco. O romance de Don Delillo que usa como pano de
fundo um acidente industrial de grandes proporções para abordar
interdependência e a relação entre o indivíduo e a comunidade, corrobora, em
certo nível, o momento atual em que uma pandemia varre a paciência e estremece
a esperança em um pais dividido entre a solidariedade e o egoísmo.
Choveu a madrugada inteira,
relâmpagos e trovões assustavam os gatos, mas Thomas, o gato adulto, encontrou
refúgio sobre uma tela na altura do forro e por lá ficou a noite inteira. Isso
me fez pensar na relação entre os animais e a natureza nesses tempos modernos e
urbanos em demasia.
Tempo frio já incentiva a
reflexão, tempo frio em isolamento social a torna quase inevitável. Gatos,
chuva, indivíduos, comunidade, relâmpagos e trovões parecem se completar para
formar o caos particular que emerge da minha mente durante a quarentena
recomendada pela Organização Mundial da Saúde, adotada pelo governo estadual e
odiada pelos capitalistas insensíveis e por aqueles que politizam a doença e a
morte de milhares de pessoas. Esses são tempos de ferro e ferrugem.
Uma xícara de cevada adoçada com
mel natural aquece a manhã e me faz pausar a leitura, justamente quando
Babette, lá pela página cento e sessenta e um, se mostrava assustada com o
avanço da ciência que podia até usar micróbios desenvolvidos em laboratório
para devorar nuvens tóxicas. Quanto maior o avanço da ciência, mais primitivo o
medo das pessoas, sentencia Delillo.
O Corona vírus seria um vírus
desenvolvido em laboratório e deliberadamente solto no mundo para instalar o
caos e beneficiar a China, diziam alguns. Outros acreditavam que os Estados
Unidos da América, e não o gigante asiático, seria o culpado pela pandemia. E
havia ainda os que negavam a existência do vírus a despeito das milhares de
mortes e milhões de infecções pelo mundo.
Atos de solidariedade e
oportunismo se misturavam e se multiplicavam com pessoas colhendo doações,
preparando cestas básicas e distribuindo; outros se oferecendo para fazer as
compras de quem estava no grupo de risco e não podia deixar o isolamento;
artistas fazendo transmissões ao vivo pela internet para arrecadar fundos para
os necessitados e também para divulgar marcas e faturar num período em que os
shows estavam suspensos; lideranças religiosas oferecendo orações e pedindo
dinheiro. Surgiu até uma pastora cobrando o dízimo sobre a ajuda financeira
emergencial dada pelo governo aos mais pobres. Segundo ela, foi Deus que mandou
o presidente disponibilizar o dinheiro, portanto, nada mais justo que os fiéis
repassarem dez por cento disso para a igreja. Nada demais, apenas os humanos
sendo cada vez mais... Humanos.
Minha filosofia de quarentena foi
interrompida por batidas no portão, tive que ir abrir para a minha cunhada que
chegava carregada de sacolas do mercantil e paramentada com máscara e luvas
trazendo ainda um jornal do dia, onde se podia acompanhar as últimas notícias
da pandemia e do caos político, sanitário e institucional no qual se encontrava
mergulhado o pais.
Não pude deixar de relacionar
esse momento com a forma com que Don Delillo encerra o Ruído Branco,
constatando, na fila de um supermercado, que tudo o que precisamos, fora o amor
e o alimento, se encontra ali, nas páginas dos tabloides. No nosso caso,
acrescentaria a internet, as redes sociais e as lives.
No mais, o dia segue frio, a
leitura agradável, e a anormalidade se torna cada vez mais normal. São doze
horas e quarenta e oito minutos de uma terça feira, vinte e um de abril, de
dois mil e vinte. E o planeta Terra vive uma pandeia que expõe o que há de pior
e de melhor na espécie humana que, tal qual o Corona vírus, se espalha dificultando
a respiração do planeta.
Don Johnson de Sales.
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