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quarta-feira, 21 de agosto de 2013

A Alegoria da Caverna de Platão comentada à luz do pensamento de Margaret Mead e Ruth Benedict





Em Margaret Mead


Para o pensamento de Margaret Mead, que se dispôs a tratar do “condicionamento das personalidades sociais dos dois sexos(Mead, Margaret, Sexo e Temperamento, p.9), e terminou por esclarecer questões relevantes envolvendo as diferenças de temperamento, ou como ela mesma chamou no prefácio da edição de 1950, do seu livro “Sexo e Temperamento”, “diferenças entre dons individuais inatos, sem consideração de sexo” (idem), a situação proposta por Sócrates oferece uma oportunidade interessante para analisar a perspectiva de uma sociedade – se nos for permitido a “licença poética” ou a liberdade imaginativa de considerar que a visão dos prisioneiros acorrentados na caverna possa ser tratada como a visão de uma dada sociedade, para efeito de análise - que visse o ser humano sem as “diferenças sexuais biologicamente dadas” (para usar um termo de Mead), já que ao ver apenas sombras refletidas na parede e vozes distorcidas pelo eco da caverna, esses seres não teriam como diferenciar os temperamentos de homens e mulheres, associando a este ou aquele sexo determinado dom individual inato e descartando sua presença no sexo oposto. Encarar a visão dos prisioneiros da caverna da alegoria de Platão, como a de “uma dessas sociedades simples que através de séculos de isolamento da corrente principal da História humana, conseguiram desenvolver culturas mais extremas e surpreendentes do que é possível sob condições históricas de grande intercomunicação entre povos e a resultante heterogeneidade(Sexo e Temperamento, p.275) numa concessão à imaginação, pode nos possibilitar, aceitando as mesmas evidências, apreciar a implicação dos resultados, os quais interessaram a Margaret Mead.  Por esta singular “sociedade de acorrentados”, os dois sexos não seriam distinguidos claramente e suas diferenças muito menos. Dessa forma, tal sociedade ao analisar o comportamento humano (ou das sombras humanas, no seu caso) estaria supostamente livre das barreiras geradas pelas bases biológicas muitas vezes consideradas como determinantes do desenvolvimento humano. Mesmo que não se possa dizer que pela prática da observação constante e atenta os acorrentados de Sócrates não pudessem fazer associações entre as diferentes siluetas de homens e mulheres que transitam em forma de vultos, projetados no fundo de sua caverna, certamente, podemos acreditar, que os mesmos, não dispunham das condições necessárias, para poder atribuir determinados temperamentos percebidos (como uma sombra que gesticulasse de forma mais incisiva, ou outra sombra de silueta diferente que se mostrasse mais delicada em relação aos gestos, ou mesmo pela entonação das vozes que apesar de distorcidas pelo eco da caverna, ainda assim, pudessem ser percebidas como mais ou menos agudas ou carregadas por sentimentos de cólera ou serenidade), mesmo que os prisioneiros acorrentados de frente para a parede conseguissem distinguir dois tipos principais de siluetas, uma masculina e outra feminina e a eles atribuíssem, num método de classificação rudimentar, os temperamentos observados às características estéticas das sombras, não seria possível a eles, dada ás suas condições de limitações físicas e operacionais, conhecer aspectos biológicos capazes de embasar uma diferenciação mais acentuada entre os dois sexos.


Assim, Platão, por meio de Sócrates, forneceu as bases para a possibilidade de uma utopia baseada no pensamento de Mead. Teríamos nos acorrentados da caverna da alegoria socrática, a visão de uma civilização alegórica, capaz, devido à sua existência singular, de evitar, como escreveu Margaret Mead, “guiar-se por categorias como idade ou sexo, raça ou posição hereditária numa linha familial” (Sexo e Temperamento, p.301). Para essa “civilização alegórica” seria perfeitamente possível pensar sua “sociedade”, e o mundo, a partir destas bases. Poderiam os membros da civilização dos acorrentados da caverna estando livres das terríveis barreiras, geradas pela atribuição de temperamentos distintos e exclusivos para um ou outro sexo, o que, no pensamento de Margareth Mead, pode vir a significar empecilhos para o desenvolvimento humano e social, apontarem para outras perspectivas de desenvolvimento e ultrapassar fronteiras inimagináveis para as habilidades e talentos humanos. E se, o pensamento de Mead realmente estiver correto na sua conclusão de que “... as personalidades dos dois sexos são socialmente produzidas” (p.293), então, os prisioneiros da caverna de Platão estariam aptos, pelo menos hipoteticamente falando, a realizar o programa comunista citado por Mead, “no qual, os dois sexos são tratados quase tão igualmente quanto permitem suas diferentes funções fisiológicas(p.293). Descarto aqui a possibilidade de realização do programa fascista, também abordado por Mead no seu texto e devido a Sócrates concluir sua fala em A alegoria da caverna, dizendo: 


“Devemos assimilar o mundo que apreendemos pela vista à estada na prisão, a luz do fogo que ilumina a caverna à ação do sol. Quanto à subida e à contemplação do que há no alto, considera que se trata da ascensão da alma até o lugar inteligível, e não te enganarás sobre minha esperança, já que desejas conhecê-la. Deus sabe se há alguma possibilidade de que ela seja fundada sobre a verdade. Em todo o caso eis o que me aparece tal como me aparece; nos últimos limites do mundo inteligível aparece-me a ideia do Bem, que se percebe com dificuldade, mas que não se pode ver sem concluir que ela é a causa de tudo o que há de reto e de belo”. 


Baseando-me num princípio moral e ideológico pessoal de que o bem não deve, principalmente nesse caso, ser associado a um programa fascista, e inferindo que Sócrates via na trajetória de sua alegoria uma busca pelo limite do mundo inteligível o qual ele associava à ideia de bem, considerei como hipótese de realização para a sociedade dos acorrentados da caverna, unicamente, o tal programa comunista.


Mas devido a um dos acorrentados ter sido levado à superfície e mantido contato com outras civilizações, assumindo compulsoriamente e da forma mais dolorosa, física e psicologicamente, a condição de inadaptado a qual Mead definiu como sendo a de Qualquer individuo que, por disposições inatas ou acidente da primeira educação, ou mediante as influências contraditórias de uma situação cultural heterogênea, foi culturalmente “cassado”. O indivíduo para quem as ênfases mais importantes de sua sociedade parecem absurdas, irreais, insustentáveis ou completamente erradas (p.277). O inadaptado de Platão se vê nessa condição por duas vezes seguidas. A primeira vez é quando é tirado do interior da caverna, desacorrentado de sua vida cotidiana, afastado repentinamente “da pertinência espiritual à sua própria sociedade” (idem) que “se desmancha” diante dos seus sentidos (ibidem), ao mesmo tempo em que, o mesmo vai tomando consciência da vida pralem das sombras e dos sons alterados do interior da caverna. Agora, ele encontra-se exposto a um novo mundo, em relação ao qual, sua pertinência é inexistente e seu estado é de total inadaptação. De início, todas as “ênfases mais importantes” desse novo mundo que lhe envolveu “parecem absurdas, irreais, insustentáveis ou completamente erradas”


Platão descreve, através de Sócrates, toda a angústia da experiência do inadaptado oriundo da sociedade dos acorrentados da caverna. E o faz, misturando duas agonias concomitantes, uma física e outra psicológica. Sócrates diz:


O que ele poderia responder se lhe dissessem que, antes, ele só via coisas sem consistência, que agora ele está mais perto da realidade, voltado para objetos mais reais, e que está vendo melhor? O que ele responderia se lhe designassem cada um dos objetos que desfilam, obrigando-o com perguntas, a dizer o que são? Não acha que ele ficaria embaraçado e que as sombras que ele via antes lhe pareceriam mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora? E se o forçassem a olhar para a própria luz, não achas que os olhos lhe doeriam, que ele viraria as costas e voltaria para as coisas que pode olhar e que as consideraria verdadeiramente mais nítidas do que as coisas que lhe mostram? E se o tirarem de lá à força, se o fizessem subir o íngreme caminho montanhoso, se não o largassem até arrastá-lo para a luz do sol, ele não sofreria e se irritaria ao ser assim empurrado para fora? E, chegando à luz, com os olhos ofuscados pelo brilho, não seria capaz de ver nenhum desses objetos, que nós afirmamos agora serem verdadeiros”.


Mas como acredita Mead, o comportamento social independente do sexo pode ser condicionado pela educação, e o inadaptado de Sócrates, passado o primeiro momento de angústia, choque e estranhamento, se educa na nova forma de perceber e interpretar o mundo:


 Platão descreve, por meio da oratória de Sócrates, esse processo de educação socialmente condicionadora:


“É preciso que ele se habitue, para que possa ver as coisas do alto. Primeiro, ele distinguirá mais facilmente as sombras, depois, as imagens dos homens e dos outros objetos refletidas na água, depois os próprios objetos. Em segundo lugar, durante a noite, ele poderá contemplar as constelações e o próprio céu, e voltar o olhar para a luz dos astros e da lua mais facilmente que durante o dia para o sol e para a luz do sol. Finalmente, ele poderá contemplar o sol, não o seu reflexo nas águas ou em outra superfície lisa, mas o próprio sol, no lugar do sol, o sol tal como é. Depois disso, poderá raciocinar a respeito do sol, concluir que é ele que produz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível, e que é de algum modo, a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna”. 


Agora reeducado, e com um novo comportamento socialmente condicionado. O egresso da sociedade dos acorrentados da caverna será conduzido por Sócrates a uma imersão em um novo estágio de inadaptação. Dessa vez, na sua sociedade de origem. Diz Sócrates:



“... Nesse momento, se ele se lembrar de sua primeira morada, da ciência que ali se possuía e de seus antigos companheiros, não acha que ficaria feliz com a mudança e teria pena deles? Quanto às honras e louvores que eles se atribuíam mutuamente outrora, quanto às recompensas concedidas àquele que fosse dotado de uma visão mais aguda para discernir a passagem das sombras na parede e de uma memória mais fiel para lembrar-se com exatidão daquelas que precedem certas outras ou, que lhes sucedem as que vêm juntas, e que, por isso mesmo, era o mais hábil para conjeturar a que viria depois, acha que nosso homem teria inveja dele, que as honras e a confiança assim adquiridas entre os companheiros lhe dariam inveja? Ele não pensaria antes, como o herói de Homero, que mais vale “viver como escravo de um lavrador” e suportar qualquer provação do que voltar à visão ilusória da caverna e viver como se vive lá? Reflita ainda nisto: suponha que esse homem volte à caverna e retome o seu antigo lugar. Desta vez, não seria pelas trevas que ele teria os olhos ofuscados, ao vir diretamente do sol? E se ele tivesse que emitir de novo um juízo sobre as sombras e entrar em competição com os prisioneiros que continuaram acorrentados, enquanto sua vista ainda está confusa, seus olhos ainda não se recompuseram, enquanto lhe deram um tempo curto demais para acostumar-se com a escuridão, ele não ficaria ridículo? Os prisioneiros não diriam que, depois de ter ido até o alto, voltou com a vista perdida...”.



O ex-liberto da caverna agora reintegrado a sua sociedade de origem, experimenta novamente a inadaptação vivendo um processo parecido com o que Margaret Mead descreveu como “o caso do indivíduo cujos dotes temperamentais sua sociedade não tem emprego nem se quer tolerância”. Admitamos, que no caso da utilização dos personagens de Platão como figuras hipotéticas destinadas unicamente a facilitar uma análise de aspectos do pensamento de Margaret Mead sob a luz de suas singulares visões, muito se perde, principalmente devido aos traços evidenciados por Platão em relação aos prisioneiros não tratarem diretamente de aspectos de seu temperamento, e muito menos, abordar qualquer características sexuais dos mesmos que pudessem facilitar o trabalho de análise. Apesar disto, busquemos conseguir um aproveitamento satisfatório dos elementos passíveis de associação, comparação e exame. Platão se volta mais para os aspectos cognitivos relacionados com a interpretação do mundo. Mas, quando descreve atitudes, disputas, choques de visão e as reações causadas e sofridas por pessoas supostamente acorrentadas e imersas em um mundo de significações culturais e limitação física extrema, não é difícil inferir dessa situação, que o temperamento humano figura como base de muitas, se não de todas essas reações. E usando de um pouco mais de generosidade em relação à “licença poética” e a concessão à imaginação, a qual é necessária para tornar possível este trabalho. Reservemo-nos também a licença para revezar a análise, ora em relação à visão que os personagens têm do mundo exterior, ora em relação a sua percepção das relações entre si, e ora em relação ao seu próprio temperamento e situações pessoais, onde couber, e se couber. 


Poderia se imaginar, em decorrência da saga vivida por um dos acorrentados que transitou entre duas civilizações diferentes, a dos acorrentados no interior da caverna e a do mundo exterior, que o “programa comunista” citado por Margareth Mead seria inviabilizado ou estaria francamente comprometido. Já que ao ser reeducado pelo mundo exterior que (se for considerado como similar à nossa civilização) inevitavelmente representará uma sociedade tal “que insista em que a mulher siga um padrão especial de personalidade, definido como feminino” (p.295), violando “também a individualidade de muitos homens” (idem), este homem, regressando à sociedade dos acorrentados da caverna possa desfazer as condições singulares que permitiam que essa “civilização” pudesse levar a termos o Programa. Mas, Margaret Mead se mostra tolerante com a existência das barreiras que dificultam a atuação em igualdade de homens e mulheres e chega a afirmar que “a remoção de todas as barreiras econômicas e legais contra a participação das mulheres no mundo em pé de igualdade” (p.298) com o sexo masculino “poderá constituir, em si mesma, um movimento de padronização no sentido da eliminação em massa da diversidade de atitudes que é um produto de civilização adquirido a um preço muito alto” (idem). Tal afirmação representa, em minha opinião, um recuo teórico que seria desnecessário e evitável, caso a autora tivesse incorporado como auxiliar e complementar ao conceito de igualdade, o conceito de equidade, como, a prerrogativa de tratar de forma diferente, necessidades e demandas diferentes, tendo como princípio a igualdade de condições, e a diferenciação dessas, quando for necessário equiparar condições humanas, culturais e sociais, discrepantes, adaptando as regras aos casos específicos, com o objetivo de deixá-las mais justas.


Porém, se Mead, acredita que “Uma tal civilização não sacrificaria os proveitos de milhares de anos durante os quais a sociedade edificou padrões de diversidade...  E que, ...Os ganhos sociais seriam conservados... E também que, ...onde temos agora padrões de comportamento para mulheres e padrões de comportamento para homens, teríamos então padrões de comportamento que expressariam os interesses dos indivíduos, com muitos tipos de talentos. E ainda mais, “Haveria códigos éticos e simbolismos sociais, uma arte e um estilo de vida, congeniais a cada dote”, então, nossa Sociedade dos Acorrentados da Caverna, segue como o lugar privilegiado para a realização dessa utopia. Afinal, mesmo que fosse modificada pelo egresso em suas condições singulares de interpretação do mundo, no tocante às diferenças de sexo, poderia ainda, a partir de sua visão descomprometida inicial, preservar os “avanços” conquistados pela civilização que pensa o mundo a partir da divisão social dos sexos segundo os temperamentos específicos e excludentes  a eles atribuídos - na fala da própria Mead – arbitrariamente. E avançar para a síntese imaginada pela autora e que segundo ela, nos levaria a “tecer assim uma estrutura social menos arbitrária, na qual, cada dote humano diferente encontrará um lugar adequado” (Mead, Margareth, Sexo e Temperamento, p.303).



Ruth Benedict


Que feições culturais os aprisionados da caverna de Platão conseguiriam perceber nas sombras desfilando em sua parede? E destas, compreenderiam alguma? 



Se tomarmos como base o pensamento de Ruth Benedict, concluiremos que pela observação permanente e atenciosa do comportamento das sombras refletidas pelo fogo na parede de sua prisão, seria possível que os prisioneiros da caverna, ao analisarem repetições e atribuírem a elas, significados, descobrissem recorrências de comportamentos que uma vez associadas a manifestações religiosas, artísticas e sociais típicas, possibilitassem identificar determinadas feições culturais atribuíveis aos grupos de sombras observados. É claro, estamos tratando aqui de um enorme esforço imaginativo válido apenas como ferramenta para viabilização deste texto.



No entanto, se considerarmos a contribuição de Franz Boas na introdução do livro “Padrões de Cultura” de Ruth Benedict, pensaremos que, mesmo que hipoteticamente pudessem perceber feições culturais nos grupos de sombras a transitar pela parede de sua caverna, os prisioneiros acorrentados dificilmente poderiam compreendê-las. Pois Boas afirma que “quase nenhuma feição cultural é compreensível quando separada do conjunto de que faz parte” (Benedict, Ruth, Padrões de Cultura, p.8). E certamente, levando em consideração sua situação peculiar na alegoria, os acorrentados de Sócrates não teriam como acessar o conjunto de que faziam parte qualquer dessas feições culturais rudemente observadas. Sendo assim, os seres acorrentados na caverna, poderiam até aproximar-se de compreender os vultos humanos projetados pelo fogo como indivíduos vivendo em sua cultura, sem, no entanto, jamais compreender essa cultura como vivida pelos seus inviduos, o que para Boas seria a forma como deveria ser compreendida.



Partindo da definição de antropologia feita por Ruth Benedict no seu livro Padrões de Cultura:



“A antropologia ocupa-se dos seres humanos como produtos da vida em sociedade. Fixa sua atenção nas características físicas e nas técnicas industriais, nas convenções e valores que distinguem uma comunidade de todas as outras que pertencem a uma tradição diferente.”



Sendo assim, resta pouco valor antropológico nas observações dos acorrentados da Alegoria da Caverna de Platão. Eles, podendo apenas observar sombras e ouvir vozes distorcidas à distância, pouco saberão da vida em sociedade dos vultos que passam diante de si. Menos ainda conhecerão dos valores e convenções de tais siluetas. Sobre as técnicas industriais desses povos, nada além de algumas ferramentas em uso ou sendo transportadas poderão conhecer. E mesmo assim, em se tratando de apenas sombras, seu conhecimento sobre tais ferramentas e as técnicas utilizadas em sua manipulação fatalmente serão pouco expressivas e bastante toscas.



No tocante à sua própria vivência em sociedade (dos acorrentados da caverna), isto poderá ser considerado, caso reconheçamos que são seres humanos vivendo sobre costumes comuns, fazendo uso de linguagens comuns, compartilhando de forma de vida comum, regras comuns de conduta e interagindo, mesmo com todas as limitações, com o mundo exterior e com a sua própria realidade. Se esses aspectos de sua existência forem suficientes para considerá-los como uma sociedade ou parte dela, então, poderemos considerar sua forma de ver, interpretar, pensar e intervir no mundo, como a forma de ver, interpretar, pensar e intervir no mundo, de uma dada sociedade.



Também os conhecimentos antropológicos que os acorrentados de Sócrates puderem inferir do movimento das sombras na parede da caverna, serão considerados, conhecimentos válidos e importantes de uma dada sociedade sobre outra, num contexto em que pertencem a uma tradição diferente (p.13)



Poderá se objetar que os comportamentos e costumes dos seres presos por correntes no interior da caverna, são muito restritos e limitados para serem considerados para efeito de se imaginar que formem algum tipo de sociedade válida para este estudo. A isto responderemos com uma citação de Benedict no primeiro capítulo, página 13, segundo parágrafo de Padrões de Cultura:



Para o antropologista, os nossos costumes e os de uma tribo da nova Guiné (peço licença para incluir aqui: E dos acorrentados da caverna imaginada por Sócrates) são dois (novamente complemento: ou três) esquemas possíveis, que tratam do mesmo problema. E cumpre ao antropologista enquanto antropologista, evitar toda e qualquer apreciação de um em favor do outro”.



Ruth Benedict defende que ninguém ver o mundo de forma pura e totalmente livre de preconceitos. Pelo contrário, para a autora, todo olhar se encontra condicionado por um conjunto de costumes, instituições e modos de pensar. No caso dos acorrentados de Sócrates, podemos identificar alguns costumes condicionantes da sua forma de ver o mundo. Como por exemplo, o costume de premiar aquele que consegue discernir com maior habilidade dentre as figuras que passam; intuir quais virão em seguida, aquelas que virão sozinhas e as que virão acompanhadas. Costume baseado no reconhecimento de habilidades e seu incentivo e celebração. E o ato de nomear sombras como se fossem seres reais, pode muito bem ser visto pelo filósofo, como um embaçamento do pensamento dos não esclarecidos. Só esses costumes, já são o suficiente para condicionar toda uma gama de juízos e valores sobre a vida social. Os bons, ou os melhores filhos dessa sociedade, numa visão baseada nesses costumes, poderiam ser aqueles com maior facilidade para nomear sombras; para reter na memória os movimentos dos vultos e suas sequências mais exatas; perceber as sucessões e repetições das aparições das siluetas; talvez até desenvolver técnicas para estudar e padronizar essas aparições. Quem sabe até gerando uma ciência especializada nesses fenômenos. Seriam esses observadores mais hábeis e capacitados que receberiam as maiores honras nessa hipotética sociedade. Os mesmos poderiam organizar suas habilidades em métodos com o intuito de repassá-las para gerações futuras. E sendo essas habilidades as mais valorizadas em sua sociedade, eles também passariam a gozar do status e de todos os bônus possíveis para os mestres detentores e semeadores do saber mais valorizado por sua gente. Essa forma de olhar para o mundo, condicionada pelos costumes que a originaram, teria grande peso na definição do pensamento daquela sociedade. Incidiria, segundo Benedict, diretamente sobre o seu conceito do que é ou não verdade.



“... Nem mesmo nas suas concepções filosóficas ele consegue subtrair-se a esses estereótipos, até os seus conceitos do verdadeiro e do falso são ainda referidos aos seus particulares costumes tradicionais.” (Benedict, Ruth, Padrões de Cultura, p.14). Tal forma de olhar para o mundo e de interagir com o outro soam como uma manifestação do etnocentrismo; Aparecem como uma incapacidade de examinar outro a não ser pelas lentes da sua própria cultura.



É bem possível que as sombras de seres humanos que são refletidas cotidianamente na parede da caverna, apesar de serem consideras como seres reais pelos aprisionados, não sejam consideradas humanas. Afinal, elas se mexem, movem pernas, braços, cabeça e os aprisionados não. As sombras não são vistas observando sombras, classificando-as, ouvindo atentamente seus sons, exercitando a imaginação a partir delas. Ou seja, não apresentam costumes e características comportamentais semelhantes ás da sociedade dos acorrentados da caverna. E se os acorrentados consideram a si próprios e aos seus iguais como seres humanos; e compartilham dessas singularidades comportamentais, isto os torna radicalmente diferentes das sombras. Por qual motivo então elas haveriam de serem consideradas tão humanas quanto eles?



Ruth Benedict escreveu no final do primeiro parágrafo na décima nona página de Padrões de Cultura:



“O que defendemos, é a inevitabilidade de cada motivação familiar, tentando sempre identificar os nossos modos locais de comportamento, como comportamento, ou os nossos próprios hábitos em sociedade, como natureza humana”.



“Ora, o homem moderno fez dessa tese uma das circunstâncias vitais do seu pensar e da sua conduta prática, mas as fontes de que ela provém recuam até ao que, a avaliar pela sua existência universal entre povos primitivos, parece ser uma das mais primitivas distinções humanas, a diferença qualitativa entre “o meu próprio” grupo fechado, e o que a ele é estranho”.



“... Fora do grupo fechado não há seres humanos.”



A sociedade dos acorrentados da caverna vivia seus infortúnios e seus júbilos; tocava a sua existência segundo seus costumes e forma de ver a vida; e sua idiossincrasia lhe bastava para compreender a si mesmos e interpretar o mundo. Mas, eis que Sócrates resolveu complicar as coisas. Libertou um dos seus e o arrastou até a superfície, pra fora da caverna e pra dentro de uma nova realidade. 



“Há sociedades em que a natureza perpetua o mais tênue modo de comportamento por meio de mecanismos biológicos, mas tais sociedades não são de homens, são de insetos” (Benedict, Ruth, Padrões de Cultura, p.24).



E agora todo o conjunto de costumes que condicionava a visão de mundo do recém-liberto estaria confrontado com uma realidade na qual, seus hábitos pareciam não fazer sentido, ou serem meras inversões do comportamento local. Sua sabedoria e todo o conhecimento adquirido e acumulado durante toda uma existência, agora seriam encarados como a mais ingênua das ignorâncias. E o que era status em sua sociedade da caverna, nesse novo mundo, era digno de pena. Essa “glorificação do filósofo” como detentor do saber, em detrimento do liberto da caverna que tem o seu conhecimento apresentado como ilusões, distorções ou simples sombras de saber por Sócrates, também nos diz muito sobre a forma etnocêntrica de apresentação e representação da cultura do outro. E dessa forma o egresso da caverna se viu numa situação bastante desfarovável em relação a cultura do novo mundo que conhecera.



Porém, para sua sorte imediata e para sua futura desventura, Ruth Benedict parecia ter razão ao atribuir um papel enorme ao processo cultural de transmissão da tradição (p.27). E assim foi possível familiarizar-se, conhecer e adotar novos comportamentos baseados na tradição nova de costumes e hábitos antes desconhecidos e tão diferentes dos seus anteriores durante a vida na caverna.



“No princípio Deus deu um vaso a cada povo, um vaso de barro, e por este vaso bebiam a sua vida”. (provérbio dos índios Digger).



E o vaso de barro do liberto da caverna, quebrou. Teria que beber a vida por outro vaso. Como no caso do velho índio Romão, citado por Benedict na página 34 de Padrões de Cultura, para o egresso da caverna de Platão, aquilo que tinha atribuído significado à vida de seu povo, também havia se quebrado.



“... É preciso que ele se habitue, para que possa ver as coisas do alto. Primeiro, ele distinguirá mais facilmente as sombras, depois, as imagens dos homens e dos outros objetos refletidas na água, depois os próprios objetos. Em segundo lugar, durante a noite, ele poderá contemplar as constelações e o próprio céu, e voltar o olhar para a luz dos astros e da lua mais facilmente que durante o dia para o sol e para a luz do sol. Finalmente, ele poderá contemplar o sol, não o seu reflexo nas águas ou em outra superfície lisa, mas o próprio sol, no lugar do sol, o sol tal como é...” (Sócrates em A Alegoria da Caverna). 


Se para o índio Romão, “os rituais domésticos de tomarem os alimentos, as obrigações do sistema econômico, a sucessão dos cerimoniais nas aldeias, o estado de possessos na dança do urso, os padrões do bem e do mal – tudo desaparecera, e com isso a forma e o significado da sua vida” (p34). Para o liberto da alegoria da caverna, não foi diferente. Para ele, desaparecera a arte de contemplar as sombras, as técnicas de identificar siluetas, o costume de ouvir os sons e tentar atribui-los a cada figura imediatamente projetada na parede. Para ele desaparecera toda a noção do que é real ou não, como havia em sua sociedade de acorrentados.


Tal qual para o índio Romão, para o egresso da caverna, o mergulho dos vasos seguia, só que os vasos eram diferentes. Os deles, se quebraram, desapareceram. Ambos haviam (usando termos de Benedict), feito a forquilha entre duas culturas cujos valores e modos de pensamento eram incomensuráveis.

Mas, diferente de Romão, que não tinha mais como retornar ao contexto da vida bebida pelo vaso dado por Deus ao seu povo, e só podia seguir em frente, bebendo a vida de sabor agridoce pelo vaso de outros povos. O liberto da Alegoria da Caverna voltou à fonte onde sua gente bebia a vida pelo próprio vaso.



Sócrates volta a situar o homem liberto na caverna. O conduz de volta para seu mundo anterior. E se antes de ser liberto, ele e seus companheiros acorrentados no interior da caverna, havia feito escolhas em um arco cultural, e a partir dessas escolhas, orientado sua vida, seus interesses e as necessidades suas no ambiente de que dispunham para viver. Ao ser liberto e arrastado ao mundo exterior, teve suas opções alargadas e ou confrontadas com as escolhas anteriores feitas por sua sociedade. Fez outras escolhas no grande arco. Descartou opções anteriores. O ambiente era outro, os interesses possíveis eram outros, as atividades também eram diferentes.



Benedict escreve na página 34 de “Padrões de Cultura”:



“Também em cultura temos de imaginar um grande arco em que alinham os interesses possíveis que o ciclo da vida humana, ou o ambiente, ou as várias atividades do homem fornecem.”



“O seu caráter distintivo, como cultura, depende da escolha de certos segmentos desse arco.”



Dois espíritos (como chama Ruth Benedict) de cultura postos em confronto, em estranhamento, a partir do retorno do antigo membro da sociedade dos acorrentados da caverna.



“... Os prisioneiros não diriam que, depois de ter ido até o alto, voltou com a vista perdida, que não vale mesmo a pena subir até lá? E se alguém tentasse retirar os seus laços, fazê-los subir, você acredita que, se pudessem agarrá-lo e executá-lo, não o matariam?” (Sócrates em A Alegoria da Caverna).



De fato o pensamento de Ruth Benedict parece ecoar nos tempos de Platão, confirmar-se nas engenhosas construções literárias deste autor, e jorrar pela eloquência de Sócrates. E toda a experiência do homem acorrentado na caverna, que é liberto, e tem que reaprender a pensar o mundo; sua noção do que é verdade; seu comportamento; e redefinir seus interesses, parece corroborar com a ideia da autora, de que as culturas inicialmente condicionadas por características ambientais ou decorrentes das demandas físicas do homem, não são imutáveis, e nem resistem tanto a processos de deculturação e aculturação. Afinal, toda a cultura dos homens acorrentados da alegoria de Sócrates fora edificada a partir de suas condições físicas e ambientais, e em virtude das suas necessidades humanas, e encontravam-se enraizadas profundamente em sua concepção de mundo. Mas, quando um desses homens foi submetido a outros interesses, apresentado a outras condições físicas e ambientais, exposto à outra concepção de mundo, foi possível reeducá-lo.



“As instituições que as culturas humanas erigem pelas indicações dadas pelo ambiente ou em virtude das necessidades físicas do homem, não se mantém sem se desviarem do impulso original tão integralmente como facilmente se julga”. (Benedict, Ruth, Padrões de Cultura, p.47).



O egresso da caverna ao se deparar com novas feições culturais no novo mundo ao qual havia sido enviado, tratou de colhê-las de acordo com suas necessidades. 



Benedict aborda essa questão na página sessenta e nove do seu livro Padrões de Cultura. A autora afirma que as culturas são mais do que a soma de suas particulares feições constituintes. E diz que são formadas por conjuntos culturais que utilizam diversos elementos para o seu próprio fim. Segundo ela, esse fim, escolhe nas circunvizinhanças as feições culturais possíveis que podem lhe servir. Ruth Benedict acredita que nesse processo de escolha, o fim, além de selecionar as feições que pode ou não utilizar, também descarta algumas e remodela outras de acordo com as suas necessidades. Esse processo não seria necessariamente consciente durante o seu desenvolvimento, segundo a cientista.



Sendo assim, o egresso da caverna, não necessariamente trocou um conjunto de feições culturais por outro. Pode ter acontecido uma preservação de diversos elementos e feições culturais de sua educação e condicionamentos originais, complementados com a coleta de novas feições culturais próprias do novo ambiente no qual foi inserido e ainda com a adaptação de antigas feições à nova realidade e às suas novas necessidades. A alegoria de Sócrates pode – sob a perspectiva do pensamento de Ruth Benedict – não ter gerado simplesmente um choque entre culturais antagônicas, mas, muito mais, uma adaptação, uma mistura, e em certo ponto, até uma fusão proporcionada pelo entrelaçamento de feições culturais distintas. Claro que isso tudo não seria dado de forma harmônica e pacífica. As culturas, ambas estandardizadas (para ficar com outro termo de Benedict) certamente se agarrariam aos seus objetivos específicos não compartilhados com a outra. E, se no final, estiverem corretos os postulados de Benedict, tais como:



“A diversidade das culturas resulta não apenas da facilidade com que as sociedades elaboram ou repudiam aspectos possíveis da existência. É devida ainda mais a um complexo entretecimento de feições culturais”. (p.49).



“Todos os padrões de comportamento são relativos” (p.58).



Então, talvez não se precise chegar a um dos possíveis desfechos trágicos considerados por Sócrates. Ou seja, diante do completo estranhamento da cultura exterior, provocada pelas dificuldades de readaptação do homem, que levado ao mundo externo, foi depois reinserido na caverna; e mediante a possibilidade de serem também alçados ao outro mundo, os habitantes da caverna poderem levar à morte quem tentar realizar tal empresa. Talvez fosse possível a coexistência de modos de vida e de visões de mundo enriquecidos mutuamente, transformados, aperfeiçoados. Talvez os homens da caverna se livrassem das correntes, mas optassem por continuar morando lá, rejeitando a moradia nas casas da superfície. Aos homens do mundo exterior, caberia entender essa forma de existência, como uma, entre tantas possíveis, e tão válidas quanto a sua. Também poderiam aprender a reconhecer e classificar sombras com maior perfeição; ganhariam outras dimensões, focos e possibilidades para sua visão. 



Mas também, uma das sociedades poderia experimentar sua aniquilação gradual diante da estandardização da outra. No caso, a aparentemente mais ameaçada seria a Sociedade dos Acorrentados da Caverna. Devido às dificuldades ambientais e as condições físicas as quais submete seus membros e ainda pela ação implacável da ciência do mundo exterior, que tende a reduzir a meras ingenuidades e ignorâncias todo o conhecimento, as práticas, os costumes e todo o modo de vida duramente desenvolvido no interior da caverna, entre os acorrentados. Mas essa também pode estar sendo uma análise etnocêntrica de nossa parte. Nada garante que o contrário não possa acontecer. Apenas, a história nunca documentou algo semelhante. Tudo é possível. Inclusive a morte de uma dada civilização. 



Na página 66 de Padrões de Cultura, Ruth Benedict cita Osvald Spengler e sua obra O Declínio do Ocidente, para falar de periodicidade em relação ao ponto culminante de realização cultural de civilizações. O autor comentado por Benedict, segundo ela, parte da tese de que as configurais culturais tem, como qualquer organismo, um âmbito de vida que não podem ultrapassar. Seria, segundo Benedict, a tese do deperecimento fatal das civilizações. Uma exposição, diz Ruth Benedict, escorada numa analogia, que não pode passar de uma analogia, com o ciclo vital de nascimento, vida e morte dos organismos vivos. Onde para Spengler, cada civilização tem a sua juventude vigorosa, a sua virilidade forte e a sua velhice em desintegração.



Por todas as razões já abordadas e justificadas neste texto, optei por utilizar a Alegoria da Caverna de Platão como ferramenta de auxílio no estudo do pensamento de Ruth Benedict. Procurei apresentar os homens acorrentados no interior da caverna como uma sociedade, um povo menos complexo. Resta esperar que tal construção possa ter se mostrado convincente, e contado com certa generosidade como subsídio à imaginação. Pois tal empreendimento é de grande importância para o resultado deste trabalho.



“Todo o problema da formação dos padrões-de-hábito do individuo sob a influência do costume tradicional, melhor do que por qualquer outro meio se pode compreender, presentemente, recorrendo ao estudo dos povos menos complexos”. (Benedict, Ruth, Padrões de Cultura, p.69).



Se a Sociedade dos Acorrentados da Caverna forneceu importante material para submeter ao pensamento de Ruth Benedict; e se do contrário, foi possível tentar olhar para o desenvolvimento do pensamento de Benedict, através da lente dos acorrentados da caverna de Platão. Também a figura do homem acorrentado em primeiro momento, depois desacorrentado, levado à superfície e novamente inserido no seu ambiente anterior, me possibilitou compará-lo ao Homem Fáustico e ao Homem Apolíneo. 



Aproveitando a citação de Ruth Benedict nas páginas 66 e 67 de Padrões de Cultura, para tentar analisar a trajetória daquele povo pouco complexo da caverna, à luz da distinção que Spengler faz das duas grandes ideias do destino, simbolizadas pelo homem Apolíneo do mundo clássico e o Fáustico, do mundo moderno.



È possível ver no povo da caverna de Platão, seres experimentando os dois destinos. O mundo dos acorrentados no interior da caverna vivia muito próximo do destino Apolíneo do mundo clássico.  “No universo do homem Apolíneo, não havia lugar para o querer, e o conflito era um mal a que filosoficamente não ligava grande importância. A ideia do aperfeiçoamento da personalidade de fora para dentro era lhe estranha, e considerava a vida sempre sujeita à sombra da catástrofe que do exterior a ameaçava brutalmente. Os seus trágicos desenlaces eram destruições irresponsáveis do agradável panorama da existência normal”.



Na descrição de Sócrates fica evidente que a limitação física e ambiental diminuía em muito os horizontes “normais” do querer. Viam pouco, sabiam pouco do muito que poderiam dispor fora da caverna, e pela sua condição de acorrentados e praticamente imobilizados o seu querer poderia direcionar-se prioritariamente para a liberdade. Mas pelo relato de Sócrates, esse conceito não lhes era familiar, e talvez devido ao condicionamento cultural, não demonstravam, nem mesmo, considerar-se presos. De inicio, o conflito só parecia existir no tocante a alguma divergência relacionada às interpretações das sombras e dos sons que vinham de fora. Sócrates não se refere no inicio de sua narração, a qualquer temor de catástrofes que viessem ameaçá-los do exterior. A vida apesar das correntes e do isolamento, parecia ser acolhida por eles como parte de um panorama normal de existência.  Porém, quando um dos prisioneiros foi libertado, levado ao mundo exterior, deculturado e aculturado e novamente inserido entre eles, então podemos imaginar – apoiados na descrição de Sócrates, que o conflito se instala, a catástrofe exterior surge como possibilidade de desenlaces trágicos e irresponsáveis e ameaça considerável ao panorama da existência normal daquele “povo”.



Um dos homens da sociedade dos acorrentados da caverna viveu a catástrofe e sobreviveu a ela, mas não era mais o mesmo. Ou pelo menos, seu destino havia mudado radicalmente. O egresso da caverna, após viver toda a angústia e o terror da catástrofe Apolínea, passara a beber a vida por outro vaso e seu destino havia se transformado. Agora partilhava do destino Fáustico, cuja representação é de uma força que infindavelmente combate obstáculos. A sua versão do curso da vida individual é a de um desenvolvimento interno, e as catástrofes da existência, são a culminação inevitável das suas volições seletivas e das suas experiências. O conflito é a essência da existência. Sem ele a vida individual não tem significado e só os valores mais superficiais da existência se podem atingir. Não é difícil imaginar essa mudança em relação ao destino do egresso da caverna. Como também é concebível que toda a sua “civilização” de acorrentados passe a viver – a partir do seu retorno – o mesmo processo que ele passou, e que possa ser conduzida a essa mesma transição de tipo de destino, ou não.



A civilização dos acorrentados da caverna, certamente se agarrará ao vaso de barro que Deus lhe deu e pelo qual bebe a sua vida, conscientes ou não, de que, a preservação ou destruição do vaso, definirá o seu futuro destino entre o Apolíneo e o Faústico.



A manutenção dos seus padrões de cultura dependerá em último caso da sua condição de fazer prevalecer os conjuntos de elementos e feições culturais mais adequadas aos seus costumes e hábitos e as suas tradições. E mesmo os compartilhando, enlaçando, combinando e adaptando em relação a padrões de tradições diferentes, não deixar que se perca seu espírito. Não deixar que se quebre o vaso que Deus deu ao seu povo, e pelo qual, ele bebe a própria vida.




Por Johnson Sales.


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