Em Margaret Mead
Para o
pensamento de Margaret Mead, que se dispôs a tratar do “condicionamento das personalidades sociais dos dois sexos” (Mead, Margaret, Sexo e Temperamento, p.9),
e terminou por esclarecer questões relevantes envolvendo as diferenças de
temperamento, ou como ela mesma chamou no prefácio da edição de 1950, do seu
livro “Sexo e Temperamento”, “diferenças entre dons individuais inatos,
sem consideração de sexo” (idem), a situação proposta por Sócrates oferece
uma oportunidade interessante para analisar a perspectiva de uma sociedade – se
nos for permitido a “licença poética” ou a liberdade imaginativa de considerar que
a visão dos prisioneiros acorrentados na caverna possa ser tratada como a visão
de uma dada sociedade, para efeito de análise - que visse o ser humano sem as “diferenças sexuais biologicamente dadas”
(para usar um termo de Mead), já que ao ver apenas sombras refletidas na parede
e vozes distorcidas pelo eco da caverna, esses seres não teriam como diferenciar
os temperamentos de homens e mulheres, associando a este ou aquele sexo
determinado dom individual inato e
descartando sua presença no sexo oposto. Encarar a visão dos prisioneiros da
caverna da alegoria de Platão, como a de “uma
dessas sociedades simples que através de séculos de isolamento da corrente
principal da História humana, conseguiram desenvolver culturas mais extremas e
surpreendentes do que é possível sob condições históricas de grande
intercomunicação entre povos e a resultante heterogeneidade” (Sexo e Temperamento, p.275) numa concessão
à imaginação, pode nos possibilitar, aceitando as mesmas evidências, apreciar a implicação dos resultados, os quais interessaram a
Margaret Mead. Por esta singular “sociedade
de acorrentados”, os dois sexos não seriam distinguidos claramente e suas
diferenças muito menos. Dessa forma, tal sociedade ao analisar o comportamento
humano (ou das sombras humanas, no seu caso) estaria supostamente livre das
barreiras geradas pelas bases biológicas muitas vezes consideradas como
determinantes do desenvolvimento humano. Mesmo que não se possa dizer que pela
prática da observação constante e atenta os acorrentados de Sócrates não pudessem
fazer associações entre as diferentes siluetas de homens e mulheres que
transitam em forma de vultos, projetados no fundo de sua caverna, certamente,
podemos acreditar, que os mesmos, não dispunham das condições necessárias, para
poder atribuir determinados temperamentos percebidos (como uma sombra que
gesticulasse de forma mais incisiva, ou outra sombra de silueta diferente que
se mostrasse mais delicada em relação aos gestos, ou mesmo pela entonação das
vozes que apesar de distorcidas pelo eco da caverna, ainda assim, pudessem ser
percebidas como mais ou menos agudas ou carregadas por sentimentos de cólera ou
serenidade), mesmo que os prisioneiros acorrentados de frente para a parede
conseguissem distinguir dois tipos principais de siluetas, uma masculina e
outra feminina e a eles atribuíssem, num método de classificação rudimentar, os
temperamentos observados às características estéticas das sombras, não seria
possível a eles, dada ás suas condições de limitações físicas e operacionais, conhecer
aspectos biológicos capazes de embasar uma diferenciação mais acentuada entre
os dois sexos.
Assim, Platão,
por meio de Sócrates, forneceu as bases para a possibilidade de uma utopia
baseada no pensamento de Mead. Teríamos nos acorrentados da caverna da alegoria
socrática, a visão de uma civilização alegórica, capaz, devido à sua existência
singular, de evitar, como escreveu Margaret Mead, “guiar-se por categorias como idade ou sexo, raça ou posição hereditária
numa linha familial” (Sexo e Temperamento, p.301). Para essa “civilização
alegórica” seria perfeitamente possível pensar sua “sociedade”, e o mundo, a
partir destas bases. Poderiam os membros
da civilização dos acorrentados da caverna estando livres das terríveis barreiras,
geradas pela atribuição de temperamentos distintos e exclusivos para um ou
outro sexo, o que, no pensamento de Margareth Mead, pode vir a significar
empecilhos para o desenvolvimento humano e social, apontarem para outras perspectivas
de desenvolvimento e ultrapassar fronteiras inimagináveis para as habilidades e
talentos humanos. E se, o pensamento de Mead realmente estiver correto na sua
conclusão de que “... as personalidades
dos dois sexos são socialmente produzidas” (p.293), então, os prisioneiros
da caverna de Platão estariam aptos, pelo menos hipoteticamente falando, a
realizar o programa comunista citado
por Mead, “no qual, os dois sexos são
tratados quase tão igualmente quanto permitem suas diferentes funções fisiológicas”
(p.293). Descarto aqui a
possibilidade de realização do programa
fascista, também abordado por Mead no seu texto e devido a Sócrates
concluir sua fala em A alegoria da
caverna, dizendo:
“Devemos assimilar o mundo que apreendemos pela
vista à estada na prisão, a luz do fogo que ilumina a caverna à ação do sol.
Quanto à subida e à contemplação do que há no alto, considera que se trata da
ascensão da alma até o lugar inteligível, e não te enganarás sobre minha
esperança, já que desejas conhecê-la. Deus sabe se há alguma possibilidade de
que ela seja fundada sobre a verdade. Em todo o caso eis o que me aparece tal
como me aparece; nos últimos limites do mundo inteligível aparece-me a ideia do
Bem, que se percebe com dificuldade, mas que não se pode ver sem concluir que
ela é a causa de tudo o que há de reto e de belo”.
Baseando-me num
princípio moral e ideológico pessoal de que o bem não deve, principalmente
nesse caso, ser associado a um programa fascista, e inferindo que Sócrates via
na trajetória de sua alegoria uma busca pelo limite do mundo inteligível o qual
ele associava à ideia de bem,
considerei como hipótese de realização para a sociedade dos acorrentados da caverna, unicamente, o tal programa comunista.
Mas devido a um dos acorrentados ter sido levado à
superfície e mantido contato com outras civilizações, assumindo compulsoriamente
e da forma mais dolorosa, física e psicologicamente, a condição de inadaptado a qual Mead definiu como
sendo a de Qualquer individuo que, por
disposições inatas ou acidente da primeira educação, ou mediante as influências
contraditórias de uma situação cultural heterogênea, foi culturalmente
“cassado”. O indivíduo para quem as
ênfases mais importantes de sua sociedade parecem absurdas, irreais,
insustentáveis ou completamente erradas (p.277).
O inadaptado de Platão se vê nessa
condição por duas vezes seguidas. A primeira vez é quando é tirado do interior
da caverna, desacorrentado de sua vida cotidiana, afastado repentinamente “da pertinência espiritual à sua própria
sociedade” (idem) que “se desmancha”
diante dos seus sentidos (ibidem), ao mesmo tempo em que, o mesmo vai
tomando consciência da vida pralem das sombras e dos sons alterados do interior
da caverna. Agora, ele encontra-se exposto a um novo mundo, em relação ao qual,
sua pertinência é inexistente e seu
estado é de total inadaptação. De
início, todas as “ênfases mais
importantes” desse novo mundo que lhe envolveu “parecem absurdas, irreais, insustentáveis ou completamente erradas”.
Platão descreve,
através de Sócrates, toda a angústia da experiência do inadaptado oriundo da sociedade
dos acorrentados da caverna. E o faz, misturando duas agonias
concomitantes, uma física e outra psicológica. Sócrates diz:
“O que ele poderia responder se lhe dissessem
que, antes, ele só via coisas sem consistência, que agora ele está mais perto
da realidade, voltado para objetos mais reais, e que está vendo melhor? O que
ele responderia se lhe designassem cada um dos objetos que desfilam,
obrigando-o com perguntas, a dizer o que são? Não acha que ele ficaria
embaraçado e que as sombras que ele via antes lhe pareceriam mais verdadeiras
do que os objetos que lhe mostram agora? E se o forçassem a olhar para a própria luz, não
achas que os olhos lhe doeriam, que ele viraria as costas e voltaria para as
coisas que pode olhar e que as consideraria verdadeiramente mais nítidas do que
as coisas que lhe mostram? E se o tirarem de lá à força, se o fizessem subir o
íngreme caminho montanhoso, se não o largassem até arrastá-lo para a luz do
sol, ele não sofreria e se irritaria ao ser assim empurrado para fora? E, chegando à luz, com os olhos ofuscados pelo
brilho, não seria capaz de ver nenhum desses objetos, que nós afirmamos agora
serem verdadeiros”.
Mas como acredita
Mead, o comportamento social independente do sexo pode ser condicionado pela
educação, e o inadaptado de Sócrates,
passado o primeiro momento de angústia, choque e estranhamento, se educa na
nova forma de perceber e interpretar o mundo:
Platão descreve, por meio da oratória de
Sócrates, esse processo de educação socialmente condicionadora:
“É preciso que ele se habitue, para que possa ver as
coisas do alto. Primeiro, ele distinguirá mais facilmente as sombras, depois,
as imagens dos homens e dos outros objetos refletidas na água, depois os
próprios objetos. Em segundo lugar, durante a noite, ele poderá contemplar as
constelações e o próprio céu, e voltar o olhar para a luz dos astros e da lua
mais facilmente que durante o dia para o sol e para a luz do sol. Finalmente,
ele poderá contemplar o sol, não o seu reflexo nas águas ou em outra superfície
lisa, mas o próprio sol, no lugar do sol, o sol tal como é. Depois disso,
poderá raciocinar a respeito do sol, concluir que é ele que produz as estações
e os anos, que governa tudo no mundo visível, e que é de algum modo, a causa de
tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna”.
Agora
reeducado, e com um novo comportamento socialmente condicionado. O egresso da sociedade dos acorrentados da caverna
será conduzido por Sócrates a uma imersão em um novo estágio de inadaptação. Dessa vez, na sua sociedade
de origem. Diz Sócrates:
“... Nesse
momento, se ele se lembrar de sua primeira morada, da ciência que ali se possuía
e de seus antigos companheiros, não acha que ficaria feliz com a mudança e
teria pena deles? Quanto às honras e louvores que eles se atribuíam mutuamente
outrora, quanto às recompensas concedidas àquele que fosse dotado de uma visão
mais aguda para discernir a passagem das sombras na parede e de uma memória
mais fiel para lembrar-se com exatidão daquelas que precedem certas outras ou,
que lhes sucedem as que vêm juntas, e que, por isso mesmo, era o mais hábil
para conjeturar a que viria depois, acha que nosso homem teria inveja dele, que
as honras e a confiança assim adquiridas entre os companheiros lhe dariam
inveja? Ele não pensaria antes, como o herói de Homero, que mais vale “viver
como escravo de um lavrador” e suportar qualquer provação do que voltar à visão
ilusória da caverna e viver como se vive lá? Reflita ainda nisto: suponha que
esse homem volte à caverna e retome o seu antigo lugar. Desta vez, não seria
pelas trevas que ele teria os olhos ofuscados, ao vir diretamente do sol? E se
ele tivesse que emitir de novo um juízo sobre as sombras e entrar em competição
com os prisioneiros que continuaram acorrentados, enquanto sua vista ainda está
confusa, seus olhos ainda não se recompuseram, enquanto lhe deram um tempo
curto demais para acostumar-se com a escuridão, ele não ficaria ridículo? Os
prisioneiros não diriam que, depois de ter ido até o alto, voltou com a vista
perdida...”.
O ex-liberto da caverna
agora reintegrado a sua sociedade de origem, experimenta novamente a inadaptação vivendo um processo parecido
com o que Margaret Mead descreveu como “o
caso do indivíduo cujos dotes temperamentais sua sociedade não tem emprego nem
se quer tolerância”. Admitamos, que no caso da utilização dos personagens
de Platão como figuras hipotéticas destinadas unicamente a facilitar uma
análise de aspectos do pensamento de Margaret Mead sob a luz de suas singulares
visões, muito se perde, principalmente devido aos traços evidenciados por
Platão em relação aos prisioneiros não tratarem diretamente de aspectos de seu
temperamento, e muito menos, abordar qualquer características sexuais dos
mesmos que pudessem facilitar o trabalho de análise. Apesar disto, busquemos conseguir
um aproveitamento satisfatório dos elementos passíveis de associação,
comparação e exame. Platão se volta mais para os aspectos cognitivos
relacionados com a interpretação do mundo. Mas, quando descreve atitudes,
disputas, choques de visão e as reações causadas e sofridas por pessoas
supostamente acorrentadas e imersas em um mundo de significações culturais e
limitação física extrema, não é difícil inferir dessa situação, que o
temperamento humano figura como base de muitas, se não de todas essas reações. E
usando de um pouco mais de generosidade em relação à “licença poética” e a
concessão à imaginação, a qual é necessária para tornar possível este trabalho.
Reservemo-nos também a licença para revezar a análise, ora em relação à visão
que os personagens têm do mundo exterior, ora em relação a sua percepção das
relações entre si, e ora em relação ao seu próprio temperamento e situações
pessoais, onde couber, e se couber.
Poderia se
imaginar, em decorrência da saga vivida por um dos acorrentados que transitou
entre duas civilizações diferentes, a dos acorrentados
no interior da caverna e a do mundo
exterior, que o “programa comunista”
citado por Margareth Mead seria inviabilizado ou estaria francamente
comprometido. Já que ao ser reeducado pelo mundo exterior que (se for
considerado como similar à nossa civilização) inevitavelmente representará uma sociedade tal “que insista em que a mulher
siga um padrão especial de personalidade, definido como feminino” (p.295), violando
“também a individualidade de muitos
homens” (idem), este homem, regressando
à sociedade dos acorrentados da caverna possa desfazer as condições
singulares que permitiam que essa “civilização” pudesse levar a termos o Programa. Mas, Margaret
Mead se mostra tolerante com a existência das barreiras que dificultam a
atuação em igualdade de homens e mulheres e chega a afirmar que “a remoção de todas as barreiras econômicas e
legais contra a participação das mulheres no mundo em pé de igualdade” (p.298)
com o sexo masculino “poderá constituir,
em si mesma, um movimento de padronização no sentido da eliminação em massa da
diversidade de atitudes que é um produto de civilização adquirido a um preço
muito alto” (idem). Tal afirmação representa, em minha opinião, um recuo teórico que seria desnecessário e
evitável, caso a autora tivesse incorporado como auxiliar e complementar ao
conceito de igualdade, o conceito de equidade, como, a prerrogativa de tratar
de forma diferente, necessidades e demandas diferentes, tendo como princípio a
igualdade de condições, e a diferenciação dessas, quando for necessário
equiparar condições humanas, culturais e sociais, discrepantes, adaptando as regras
aos casos específicos, com o objetivo de deixá-las mais justas.
Porém, se Mead,
acredita que “Uma tal civilização não
sacrificaria os proveitos de milhares de anos durante os quais a sociedade
edificou padrões de diversidade... E
que, ...Os ganhos sociais seriam conservados... E também que, ...onde temos agora padrões de comportamento
para mulheres e padrões de comportamento para homens, teríamos então padrões de
comportamento que expressariam os interesses dos indivíduos, com muitos tipos
de talentos. E ainda mais, “Haveria
códigos éticos e simbolismos sociais, uma arte e um estilo de vida, congeniais
a cada dote”, então, nossa Sociedade
dos Acorrentados da Caverna, segue como o lugar privilegiado para a
realização dessa utopia. Afinal, mesmo que fosse modificada pelo egresso em
suas condições singulares de interpretação do mundo, no tocante às diferenças
de sexo, poderia ainda, a partir de sua visão descomprometida inicial,
preservar os “avanços” conquistados pela civilização que pensa o mundo a partir
da divisão social dos sexos segundo os temperamentos específicos e
excludentes a eles atribuídos - na fala
da própria Mead – arbitrariamente. E avançar para a síntese imaginada pela
autora e que segundo ela, nos levaria a “tecer
assim uma estrutura social menos arbitrária, na qual, cada dote humano
diferente encontrará um lugar adequado” (Mead, Margareth, Sexo e Temperamento,
p.303).
Ruth Benedict
Que
feições culturais os aprisionados da
caverna de Platão conseguiriam perceber nas sombras desfilando em sua parede? E
destas, compreenderiam alguma?
Se
tomarmos como base o pensamento de Ruth Benedict, concluiremos que pela
observação permanente e atenciosa do comportamento das sombras refletidas pelo
fogo na parede de sua prisão, seria possível que os prisioneiros da caverna, ao
analisarem repetições e atribuírem a elas, significados, descobrissem
recorrências de comportamentos que uma vez associadas a manifestações religiosas,
artísticas e sociais típicas, possibilitassem identificar determinadas feições culturais atribuíveis aos grupos
de sombras observados. É claro, estamos tratando aqui de um enorme esforço
imaginativo válido apenas como ferramenta para viabilização deste texto.
No
entanto, se considerarmos a contribuição de Franz
Boas na introdução do livro “Padrões
de Cultura” de Ruth Benedict, pensaremos que, mesmo que hipoteticamente
pudessem perceber feições culturais
nos grupos de sombras a transitar pela parede de sua caverna, os prisioneiros
acorrentados dificilmente poderiam compreendê-las. Pois Boas afirma que “quase
nenhuma feição cultural é compreensível quando separada do conjunto de que faz
parte” (Benedict, Ruth, Padrões de Cultura, p.8). E certamente, levando em
consideração sua situação peculiar na alegoria, os acorrentados de Sócrates não teriam como acessar o conjunto de que
faziam parte qualquer dessas feições culturais
rudemente observadas. Sendo assim, os seres acorrentados na caverna, poderiam
até aproximar-se de compreender os vultos humanos projetados pelo fogo como
indivíduos vivendo em sua cultura, sem, no entanto, jamais compreender essa
cultura como vivida pelos seus inviduos, o
que para Boas seria a forma como
deveria ser compreendida.
Partindo
da definição de antropologia feita por Ruth Benedict no seu livro Padrões de Cultura:
“A antropologia
ocupa-se dos seres humanos como produtos da vida em sociedade. Fixa sua atenção
nas características físicas e nas técnicas industriais, nas convenções e
valores que distinguem uma comunidade de todas as outras que pertencem a uma
tradição diferente.”
Sendo
assim, resta pouco valor antropológico nas observações dos acorrentados da Alegoria da
Caverna de Platão. Eles, podendo apenas observar sombras e ouvir vozes
distorcidas à distância, pouco saberão da vida em sociedade dos vultos que
passam diante de si. Menos ainda conhecerão dos valores e convenções de tais
siluetas. Sobre as técnicas industriais desses povos, nada além de algumas
ferramentas em uso ou sendo transportadas poderão conhecer. E mesmo assim, em
se tratando de apenas sombras, seu conhecimento sobre tais ferramentas e as
técnicas utilizadas em sua manipulação fatalmente serão pouco expressivas e
bastante toscas.
No
tocante à sua própria vivência em sociedade (dos acorrentados da caverna), isto
poderá ser considerado, caso reconheçamos que são seres humanos vivendo sobre
costumes comuns, fazendo uso de linguagens comuns, compartilhando de forma de
vida comum, regras comuns de conduta e interagindo, mesmo com todas as
limitações, com o mundo exterior e com a sua própria realidade. Se esses
aspectos de sua existência forem suficientes para considerá-los como uma sociedade
ou parte dela, então, poderemos considerar sua forma de ver, interpretar,
pensar e intervir no mundo, como a forma de ver, interpretar, pensar e intervir
no mundo, de uma dada sociedade.
Também os
conhecimentos antropológicos que os acorrentados
de Sócrates puderem inferir do movimento das sombras na parede da caverna,
serão considerados, conhecimentos válidos e importantes de uma dada sociedade
sobre outra, num contexto em que
pertencem a uma tradição diferente (p.13).
Poderá
se objetar que os comportamentos e costumes dos seres presos por correntes no
interior da caverna, são muito restritos e limitados para serem considerados
para efeito de se imaginar que formem algum tipo de sociedade válida para este
estudo. A isto responderemos com uma citação de Benedict no primeiro capítulo,
página 13, segundo parágrafo de Padrões
de Cultura:
“Para o antropologista, os nossos costumes e
os de uma tribo da nova Guiné (peço licença para incluir aqui: E dos
acorrentados da caverna imaginada por Sócrates) são dois (novamente complemento: ou três) esquemas possíveis, que tratam do mesmo problema. E cumpre ao
antropologista enquanto antropologista, evitar toda e qualquer apreciação de um
em favor do outro”.
Ruth
Benedict defende que ninguém ver o mundo de forma pura e totalmente livre de
preconceitos. Pelo contrário, para a autora, todo olhar se encontra
condicionado por um conjunto de costumes, instituições e modos de pensar. No
caso dos acorrentados de Sócrates,
podemos identificar alguns costumes condicionantes da sua forma de ver o mundo.
Como por exemplo, o costume de premiar aquele que consegue discernir com maior
habilidade dentre as figuras que passam; intuir quais virão em seguida, aquelas
que virão sozinhas e as que virão acompanhadas. Costume baseado no
reconhecimento de habilidades e seu incentivo e celebração. E o ato de nomear
sombras como se fossem seres reais, pode muito bem ser visto pelo filósofo, como
um embaçamento do pensamento dos não esclarecidos. Só esses costumes, já são o
suficiente para condicionar toda uma gama de juízos e valores sobre a vida
social. Os bons, ou os melhores filhos dessa sociedade, numa visão baseada nesses
costumes, poderiam ser aqueles com maior facilidade para nomear sombras; para
reter na memória os movimentos dos vultos e suas sequências mais exatas;
perceber as sucessões e repetições das aparições das siluetas; talvez até
desenvolver técnicas para estudar e padronizar essas aparições. Quem sabe até
gerando uma ciência especializada nesses fenômenos. Seriam esses observadores
mais hábeis e capacitados que receberiam as maiores honras nessa hipotética
sociedade. Os mesmos poderiam organizar suas habilidades em métodos com o
intuito de repassá-las para gerações futuras. E sendo essas habilidades as mais
valorizadas em sua sociedade, eles também passariam a gozar do status e de
todos os bônus possíveis para os mestres detentores e semeadores do saber mais
valorizado por sua gente. Essa forma de olhar
para o mundo, condicionada pelos costumes que a originaram, teria grande
peso na definição do pensamento daquela sociedade. Incidiria, segundo Benedict,
diretamente sobre o seu conceito do que é ou não verdade.
“... Nem mesmo
nas suas concepções filosóficas ele consegue subtrair-se a esses estereótipos,
até os seus conceitos do verdadeiro e do falso são ainda referidos aos seus
particulares costumes tradicionais.” (Benedict, Ruth, Padrões de Cultura, p.14).
Tal
forma de olhar para o mundo e de interagir com o outro soam como uma
manifestação do etnocentrismo; Aparecem como uma incapacidade de examinar outro
a não ser pelas lentes da sua própria cultura.
É
bem possível que as sombras de seres humanos que são refletidas cotidianamente
na parede da caverna, apesar de serem consideras como seres reais pelos
aprisionados, não sejam consideradas humanas. Afinal, elas se mexem, movem
pernas, braços, cabeça e os aprisionados não. As sombras não são vistas observando
sombras, classificando-as, ouvindo atentamente seus sons, exercitando a
imaginação a partir delas. Ou seja, não apresentam costumes e características
comportamentais semelhantes ás da sociedade
dos acorrentados da caverna. E se os acorrentados consideram a si próprios
e aos seus iguais como seres humanos; e compartilham dessas singularidades
comportamentais, isto os torna radicalmente diferentes das sombras. Por qual
motivo então elas haveriam de serem consideradas tão humanas quanto eles?
Ruth
Benedict escreveu no final do primeiro parágrafo na décima nona página de Padrões de Cultura:
“O que
defendemos, é a inevitabilidade de cada motivação familiar, tentando sempre
identificar os nossos modos locais de comportamento, como comportamento, ou os nossos próprios hábitos em sociedade, como
natureza humana”.
“Ora, o homem
moderno fez dessa tese uma das circunstâncias vitais do seu pensar e da sua
conduta prática, mas as fontes de que ela provém recuam até ao que, a avaliar
pela sua existência universal entre povos primitivos, parece ser uma das mais
primitivas distinções humanas, a diferença qualitativa entre “o meu próprio”
grupo fechado, e o que a ele é estranho”.
“... Fora do
grupo fechado não há seres humanos.”
A sociedade dos
acorrentados da caverna vivia seus infortúnios e seus júbilos; tocava a sua
existência segundo seus costumes e forma de ver a vida; e sua idiossincrasia
lhe bastava para compreender a si mesmos e interpretar o mundo. Mas, eis que
Sócrates resolveu complicar as coisas. Libertou um dos seus e o arrastou até a
superfície, pra fora da caverna e pra dentro de uma nova realidade.
“Há sociedades
em que a natureza perpetua o mais tênue modo de comportamento por meio de
mecanismos biológicos, mas tais sociedades não são de homens, são de insetos” (Benedict,
Ruth, Padrões de Cultura, p.24).
E agora todo o
conjunto de costumes que condicionava a visão de mundo do recém-liberto estaria
confrontado com uma realidade na qual, seus hábitos pareciam não fazer sentido,
ou serem meras inversões do comportamento local. Sua sabedoria e todo o
conhecimento adquirido e acumulado durante toda uma existência, agora seriam
encarados como a mais ingênua das ignorâncias. E o que era status em sua
sociedade da caverna, nesse novo mundo, era digno de pena. Essa “glorificação
do filósofo” como detentor do saber, em detrimento do liberto da caverna que
tem o seu conhecimento apresentado como ilusões, distorções ou simples sombras
de saber por Sócrates, também nos diz muito sobre a forma etnocêntrica de
apresentação e representação da cultura do outro. E dessa forma o egresso da
caverna se viu numa situação bastante desfarovável em relação a cultura do novo
mundo que conhecera.
Porém, para sua
sorte imediata e para sua futura desventura, Ruth Benedict parecia ter razão ao
atribuir um papel enorme ao processo cultural de transmissão da tradição
(p.27). E assim foi possível familiarizar-se, conhecer e adotar novos
comportamentos baseados na tradição nova de costumes e hábitos antes
desconhecidos e tão diferentes dos seus anteriores durante a vida na caverna.
“No princípio
Deus deu um vaso a cada povo, um vaso de barro, e por este vaso bebiam a sua
vida”. (provérbio dos índios Digger).
E o vaso de
barro do liberto da caverna, quebrou. Teria que beber a vida por outro vaso. Como
no caso do velho índio Romão, citado por Benedict na página 34 de Padrões de
Cultura, para o egresso da caverna de Platão, aquilo que tinha atribuído
significado à vida de seu povo, também havia se quebrado.
“... É preciso que
ele se habitue, para que possa ver as coisas do alto. Primeiro, ele distinguirá
mais facilmente as sombras, depois, as imagens dos homens e dos outros objetos
refletidas na água, depois os próprios objetos. Em segundo lugar, durante a
noite, ele poderá contemplar as constelações e o próprio céu, e voltar o olhar
para a luz dos astros e da lua mais facilmente que durante o dia para o sol e
para a luz do sol. Finalmente, ele poderá contemplar o sol, não o seu reflexo
nas águas ou em outra superfície lisa, mas o próprio sol, no lugar do sol, o
sol tal como é...” (Sócrates em A Alegoria da Caverna).
Se para o índio
Romão, “os rituais domésticos de tomarem
os alimentos, as obrigações do sistema econômico, a sucessão dos cerimoniais nas
aldeias, o estado de possessos na dança do urso, os padrões do bem e do mal –
tudo desaparecera, e com isso a forma e o significado da sua vida” (p34).
Para o liberto da alegoria da caverna,
não foi diferente. Para ele, desaparecera a arte de contemplar as sombras, as
técnicas de identificar siluetas, o costume de ouvir os sons e tentar atribui-los
a cada figura imediatamente projetada na parede. Para ele desaparecera toda a
noção do que é real ou não, como havia em sua sociedade de acorrentados.
Tal qual para o
índio Romão, para o egresso da caverna,
o mergulho dos vasos seguia, só que os vasos eram diferentes. Os deles, se
quebraram, desapareceram. Ambos haviam (usando termos de Benedict), feito a forquilha entre duas culturas cujos
valores e modos de pensamento eram incomensuráveis.
Mas,
diferente de Romão, que não tinha mais como retornar ao contexto da vida bebida
pelo vaso dado por Deus ao seu povo, e só podia seguir em frente, bebendo a
vida de sabor agridoce pelo vaso de outros povos. O liberto da Alegoria da Caverna voltou à fonte onde
sua gente bebia a vida pelo próprio vaso.
Sócrates
volta a situar o homem liberto na caverna. O conduz de volta para seu mundo
anterior. E se antes de ser liberto, ele e seus companheiros acorrentados no
interior da caverna, havia feito escolhas em um arco cultural, e a partir dessas escolhas, orientado sua vida, seus
interesses e as necessidades suas no ambiente de que dispunham para viver. Ao
ser liberto e arrastado ao mundo exterior, teve suas opções alargadas e ou
confrontadas com as escolhas anteriores feitas por sua sociedade. Fez outras
escolhas no grande arco. Descartou
opções anteriores. O ambiente era outro, os interesses possíveis eram outros,
as atividades também eram diferentes.
Benedict
escreve na página 34 de “Padrões de Cultura”:
“Também em
cultura temos de imaginar um grande arco em que alinham os interesses possíveis
que o ciclo da vida humana, ou o ambiente, ou as várias atividades do homem
fornecem.”
“O seu caráter
distintivo, como cultura, depende da escolha de certos segmentos desse arco.”
Dois
espíritos (como chama Ruth Benedict) de cultura postos em confronto, em
estranhamento, a partir do retorno do antigo membro da sociedade dos acorrentados
da caverna.
“... Os
prisioneiros não diriam que, depois de ter ido até o alto, voltou com a vista
perdida, que não vale mesmo a pena subir até lá? E se alguém tentasse retirar
os seus laços, fazê-los subir, você acredita que, se pudessem agarrá-lo e
executá-lo, não o matariam?” (Sócrates em
A Alegoria da Caverna).
De
fato o pensamento de Ruth Benedict parece ecoar nos tempos de Platão,
confirmar-se nas engenhosas construções literárias deste autor, e jorrar pela
eloquência de Sócrates. E toda a experiência do homem acorrentado na caverna,
que é liberto, e tem que reaprender a pensar o mundo; sua noção do que é
verdade; seu comportamento; e redefinir seus interesses, parece corroborar com
a ideia da autora, de que as culturas inicialmente condicionadas por
características ambientais ou decorrentes das demandas físicas do homem, não
são imutáveis, e nem resistem tanto a processos de deculturação e aculturação.
Afinal, toda a cultura dos homens acorrentados da alegoria de Sócrates fora
edificada a partir de suas condições físicas e ambientais, e em virtude das
suas necessidades humanas, e encontravam-se enraizadas profundamente em sua
concepção de mundo. Mas, quando um desses homens foi submetido a outros
interesses, apresentado a outras condições físicas e ambientais, exposto à
outra concepção de mundo, foi possível reeducá-lo.
“As instituições
que as culturas humanas erigem pelas indicações dadas pelo ambiente ou em
virtude das necessidades físicas do homem, não se mantém sem se desviarem do
impulso original tão integralmente como facilmente se julga”. (Benedict, Ruth,
Padrões de Cultura, p.47).
O
egresso da caverna ao se deparar com novas feições
culturais no novo mundo ao qual havia sido enviado, tratou de colhê-las de
acordo com suas necessidades.
Benedict
aborda essa questão na página sessenta e nove do seu livro Padrões de Cultura. A autora afirma que as culturas são mais do que
a soma de suas particulares feições constituintes. E diz que são formadas por conjuntos
culturais que utilizam diversos elementos para o seu próprio fim. Segundo ela, esse fim, escolhe nas circunvizinhanças as feições culturais possíveis que podem lhe servir. Ruth Benedict acredita que
nesse processo de escolha, o fim,
além de selecionar as feições que pode ou não utilizar, também descarta algumas
e remodela outras de acordo com as suas necessidades. Esse processo não seria
necessariamente consciente durante o seu desenvolvimento, segundo a cientista.
Sendo
assim, o egresso da caverna, não necessariamente trocou um conjunto de feições culturais por outro. Pode ter
acontecido uma preservação de diversos elementos e feições culturais de sua educação e condicionamentos originais,
complementados com a coleta de novas feições
culturais próprias do novo ambiente no qual foi inserido e ainda com a
adaptação de antigas feições à nova
realidade e às suas novas necessidades. A alegoria de Sócrates pode – sob a
perspectiva do pensamento de Ruth Benedict – não ter gerado simplesmente um
choque entre culturais antagônicas, mas, muito mais, uma adaptação, uma
mistura, e em certo ponto, até uma fusão proporcionada pelo entrelaçamento de feições culturais distintas. Claro que
isso tudo não seria dado de forma harmônica e pacífica. As culturas, ambas estandardizadas (para ficar com outro
termo de Benedict) certamente se agarrariam aos seus objetivos específicos não
compartilhados com a outra. E, se no final, estiverem corretos os postulados de
Benedict, tais como:
“A diversidade
das culturas resulta não apenas da facilidade com que as sociedades elaboram ou
repudiam aspectos possíveis da existência. É devida ainda mais a um complexo
entretecimento de feições culturais”. (p.49).
“Todos os
padrões de comportamento são relativos” (p.58).
Então,
talvez não se precise chegar a um dos possíveis desfechos trágicos considerados
por Sócrates. Ou seja, diante do completo estranhamento da cultura exterior,
provocada pelas dificuldades de readaptação do homem, que levado ao mundo externo,
foi depois reinserido na caverna; e mediante a possibilidade de serem também
alçados ao outro mundo, os habitantes da caverna poderem levar à morte quem
tentar realizar tal empresa. Talvez fosse possível a coexistência de modos de
vida e de visões de mundo enriquecidos mutuamente, transformados,
aperfeiçoados. Talvez os homens da caverna se livrassem das correntes, mas
optassem por continuar morando lá, rejeitando a moradia nas casas da
superfície. Aos homens do mundo exterior, caberia entender essa forma de
existência, como uma, entre tantas possíveis, e tão válidas quanto a sua. Também
poderiam aprender a reconhecer e classificar sombras com maior perfeição;
ganhariam outras dimensões, focos e possibilidades para sua visão.
Mas
também, uma das sociedades poderia experimentar sua aniquilação gradual diante
da estandardização da outra. No caso, a aparentemente mais ameaçada seria a Sociedade dos Acorrentados da Caverna.
Devido às dificuldades ambientais e as condições físicas as quais submete seus
membros e ainda pela ação implacável da ciência do mundo exterior, que tende a
reduzir a meras ingenuidades e ignorâncias todo o conhecimento, as práticas, os
costumes e todo o modo de vida duramente desenvolvido no interior da caverna,
entre os acorrentados. Mas essa também pode estar sendo uma análise
etnocêntrica de nossa parte. Nada garante que o contrário não possa acontecer.
Apenas, a história nunca documentou algo semelhante. Tudo é possível. Inclusive
a morte de uma dada civilização.
Na
página 66 de Padrões de Cultura, Ruth
Benedict cita Osvald Spengler e sua
obra O Declínio do Ocidente, para
falar de periodicidade em relação ao ponto culminante de realização cultural de
civilizações. O autor comentado por Benedict, segundo ela, parte da tese de que
as configurais culturais tem, como
qualquer organismo, um âmbito de vida que não podem ultrapassar. Seria,
segundo Benedict, a tese do deperecimento
fatal das civilizações. Uma exposição, diz Ruth Benedict, escorada numa
analogia, que não pode passar de uma analogia, com o ciclo vital de nascimento, vida e morte dos organismos vivos.
Onde para Spengler, cada civilização
tem a sua juventude vigorosa, a sua virilidade forte e a sua velhice em
desintegração.
Por
todas as razões já abordadas e justificadas neste texto, optei por utilizar a
Alegoria da Caverna de Platão como
ferramenta de auxílio no estudo do pensamento de Ruth Benedict. Procurei
apresentar os homens acorrentados no interior da caverna como uma sociedade, um
povo menos complexo. Resta esperar
que tal construção possa ter se mostrado convincente, e contado com certa
generosidade como subsídio à imaginação. Pois tal empreendimento é de grande
importância para o resultado deste trabalho.
“Todo o problema
da formação dos padrões-de-hábito do individuo sob a influência do costume
tradicional, melhor do que por qualquer outro meio se pode compreender,
presentemente, recorrendo ao estudo dos povos menos complexos”. (Benedict,
Ruth, Padrões de Cultura, p.69).
Se
a Sociedade dos Acorrentados da Caverna
forneceu importante material para submeter ao pensamento de Ruth Benedict; e se
do contrário, foi possível tentar olhar para o desenvolvimento do pensamento de
Benedict, através da lente dos
acorrentados da caverna de Platão. Também a figura do homem acorrentado em
primeiro momento, depois desacorrentado, levado à superfície e novamente
inserido no seu ambiente anterior, me possibilitou compará-lo ao Homem Fáustico e ao Homem Apolíneo.
Aproveitando
a citação de Ruth Benedict nas páginas 66 e 67 de Padrões de Cultura, para tentar analisar a trajetória daquele povo pouco complexo da caverna, à luz da
distinção que Spengler faz das duas
grandes ideias do destino, simbolizadas pelo homem Apolíneo do mundo clássico e o Fáustico,
do mundo moderno.
È
possível ver no povo da caverna de
Platão, seres experimentando os dois destinos. O mundo dos acorrentados no interior da caverna vivia muito próximo do destino
Apolíneo do mundo clássico. “No universo do homem Apolíneo, não havia
lugar para o querer, e o conflito era um mal a que filosoficamente não ligava
grande importância. A ideia do aperfeiçoamento da personalidade de fora para
dentro era lhe estranha, e considerava a vida sempre sujeita à sombra da
catástrofe que do exterior a ameaçava brutalmente. Os seus trágicos desenlaces
eram destruições irresponsáveis do agradável panorama da existência normal”.
Na
descrição de Sócrates fica evidente que a limitação física e ambiental diminuía
em muito os horizontes “normais” do querer. Viam pouco, sabiam pouco do muito
que poderiam dispor fora da caverna, e pela sua condição de acorrentados e
praticamente imobilizados o seu querer poderia direcionar-se prioritariamente
para a liberdade. Mas pelo relato de Sócrates, esse conceito não lhes era
familiar, e talvez devido ao condicionamento cultural, não demonstravam, nem
mesmo, considerar-se presos. De inicio, o conflito só parecia existir no
tocante a alguma divergência relacionada às interpretações das sombras e dos
sons que vinham de fora. Sócrates não se refere no inicio de sua narração, a
qualquer temor de catástrofes que viessem ameaçá-los do exterior. A vida apesar
das correntes e do isolamento, parecia ser acolhida por eles como parte de um
panorama normal de existência. Porém,
quando um dos prisioneiros foi libertado, levado ao mundo exterior, deculturado
e aculturado e novamente inserido entre eles, então podemos imaginar – apoiados
na descrição de Sócrates, que o conflito se instala, a catástrofe exterior
surge como possibilidade de desenlaces trágicos e irresponsáveis e ameaça
considerável ao panorama da existência normal daquele “povo”.
Um
dos homens da sociedade dos acorrentados
da caverna viveu a catástrofe e sobreviveu a ela, mas não era mais o mesmo.
Ou pelo menos, seu destino havia mudado radicalmente. O egresso da caverna, após viver toda a angústia e o terror da
catástrofe Apolínea, passara a beber a
vida por outro vaso e seu destino
havia se transformado. Agora partilhava do destino Fáustico, cuja representação é de uma força que
infindavelmente combate obstáculos. A sua versão do curso da vida individual é
a de um desenvolvimento interno, e as catástrofes da existência, são a
culminação inevitável das suas volições seletivas e das suas experiências. O
conflito é a essência da existência. Sem ele a vida individual não tem
significado e só os valores mais superficiais da existência se podem atingir. Não
é difícil imaginar essa mudança em relação ao destino do egresso da caverna. Como também é concebível que toda a sua
“civilização” de acorrentados passe a
viver – a partir do seu retorno – o mesmo processo que ele passou, e que possa
ser conduzida a essa mesma transição de tipo de destino, ou não.
A
civilização dos acorrentados da caverna,
certamente se agarrará ao vaso de barro
que Deus lhe deu e pelo qual bebe a sua vida, conscientes ou não, de que, a
preservação ou destruição do vaso, definirá o seu futuro destino entre o
Apolíneo e o Faústico.
A
manutenção dos seus padrões de cultura
dependerá em último caso da sua condição de fazer prevalecer os conjuntos de
elementos e feições culturais mais
adequadas aos seus costumes e hábitos e as suas tradições. E mesmo os
compartilhando, enlaçando, combinando e adaptando em relação a padrões de
tradições diferentes, não deixar que se perca seu espírito. Não deixar que se quebre o vaso que Deus deu ao seu povo, e pelo qual, ele bebe a própria
vida.
Por Johnson Sales.
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