Passamos na casa do amado, mas pela lei do inimigo e por seu muro fomos barrados.
Disse a mim mesmo: talvez seja uma benção; o que verá em Jerusalém afinal?
Verá tudo que não suporta ver, quando suas casas começam a aparecer ao lado da via.
Nem tudo no encontro do amado é alegria, e nem toda ausência o magoa.
Já que alegria do encontro cessa com a partida, tal alegria não era então garantida.
Se seus olhos virem Jerusalém uma vez, só verão a Jerusalém por onde olhar.
Em Jerusalém, um quitandeiro da Geórgia, entediado com sua mulher, pensa em tirar férias ou pintar a casa;
Em Jerusalém, uma Torá, e um homem de meia-idade, vindo de Alto Manhattan, ensina os jovens poloneses como ler a Torá;
Em Jerusalém, um policial da Etiópia fecha uma rua no mercado;
uma metralhadora no ombro de um colono adolescente,
um chapéu cumprimentando o Muro das Lamentações,
turistas europeus loiros que não veem absolutamente nada de Jerusalém, mas você os vê tirando fotos uns dos outros ao lado de uma mulher que vende nabo nas praças todo dia.
Em Jerusalém, há cercas de manjericão
Em Jerusalém, há barricadas de cimento
Em Jerusalém, soldados marcham com suas botas sobre as nuvens;
Em Jerusalém, rezamos sobre o asfalto;
Em Jerusalém, qualquer um está em Jerusalém, exceto você.
A História me olhou sorrindo:
“Você pensou mesmo que sua vista os perderia e notaria somente os outros?
Lá estão eles, diante de você, o texto principal,
do qual você é a nota e a margem.
Pensou, meu filho, que uma visita afastaria da face da cidade o denso lenço da realidade, apenas para você ver o que bem desejar?”
Em Jerusalém, estão todos os jovens, exceto você.
E ela, gazela ao longe, seu destino é perdê-la;
Persegue-a desde sempre, desde o primeiro olhar de adeus.
Meu filho, tenha pena de si, pois o vejo esvair.
Em Jerusalém, qualquer um está em Jerusalém, exceto você.
Ó escriba da História, espere.
A cidade tem dois tempos:
Um estrangeiro, confiante, de passo igual feito sonâmbulo.
E outro, coberto, mascarado, caminha sem voz.
Jerusalém se conhece, pergunte lá a qualquer um, lhe dirá
Toda coisa na cidade fala, se você perguntar, ela fala.
Em Jerusalém o Crescente curva-se, como feto,
sobre seus semelhantes, fincados nos domos;
entre eles, ao longo do tempo,
laços paternais se firmaram. Em Jerusalém, há construções cujas pedras são citações da Bíblia e do Alcorão Em Jerusalém, a beleza é um octógono azul coberto, meu prezado, por um domo dourado, que me parece um espelho convexo, que vê o céu nele abreviado,
Acariciando-o, aproximando-o, distribuindo-o
qual cestas básicas aos cercados —
fieis de braços erguidos após o sermão de sexta-feira.
Em Jerusalém o céu se espalha sobre as pessoas.
Protetor e protegido; carregamo-lo nos ombros, sim, se um dia os tempos oprimirem suas luas. Em Jerusalém, há colunas de mármore escuro, de fumaça parecem ser as veias.
Há janelas mais altas que mesquitas e igrejas,
que puxam a manhã pela mão,
mostrando-lhe como se pinta em cores:
A manhã diz: “não, é assim”.
“Não, não, é assim”, as janelas dizem.
Após longa discussão, acordo firmado:
a manhã é livre fora os limites das soleiras,
mas se quiser entrar terá que acatar
as leis das janelas do Misericordioso.
Em Jerusalém há uma escola erguida por um mameluco
que do além-rio era;
e no mercado de escravos em Isfahan foi vendido
para um mercador de Bagdá que em Alepo vivia,
mas cujo príncipe temia o azul que havia
em seu olho esquerdo e por isso fora entregue à caravana que para o Egito partia.
Poucos anos se passaram, Conquistador dos Mongóis tornou-se e Soberano dos soberanos.
Em Jerusalém há aromas que sintetizam Babel e Índia num boticário no bairro de Khan Ezzeit
Juro que o aroma fala uma língua que se você presta atenção chega a compreender
Quando lançaram suas bombas de gás em minha direção, aquele aroma me disse: “ignore-os”.
Dissipado o gás, o aroma espalhou-se e me disse: “viu?”
Em Jerusalém, contradições serenam;
milagres não são negados,
de pano se parecem: retalhos, velhos e novos;
Os milagres aqui são palpáveis
Em Jerusalém, se apertar a mão de um ancião,
ou tocar numa edificação, verá, meu prezado,
que em sua palma, um poema foi gravado — quiçá dois.
Em Jerusalém, apesar das seguidas desgraças,
há inocência no ar, há ar de infância,
Vê pompas anunciando um país
ao vento entre duas balas. Em Jerusalém, os túmulos em fileiras,
linhas na história da cidade sendo a terra, seu livro.
Todos passaram por aqui. Jerusalém recebe a todos, fieis e infiéis.
Caminhe por ela e leia seus testemunhos em todos as línguas da terra.
Nela estão negros, turcomanos, eslavos e bósnios;
tártaros, turcos, gente do bem e do mal;
pobres, abastados; devassos e devotos.
Nela estão todos que na terra pisaram,
E que eram do livro as margens,
mas que no texto principal se transformaram.
Ó, escriba da História, o que houve para nos excluir?
Acaso a cidade ficou tão pequena só para nós?
Ó velho, reescreva e releia, vejo que cometeu um grave erro!
O olho se fecha e se abre
O motorista do carro amarelo nos conduz ao norte
Os portões se distanciam
Jerusalém fica para trás
Vejo-a no espelho do lado
Mudando de cor ao sol antes de sumir
Um sorriso me surpreendeu
Não sei como conseguiu se infiltrar,
e quando, atento, mirei-o de perto, disse me:
“Você, quem chora atrás do muro, é tolo ou enlouqueceu?
Não deixe seu olho chorar;
você, parte esquecida do texto principal
Não chore, ó árabe, e saiba que:
Em Jerusalém, qualquer um está em Jerusalém,
Mas eu só vejo você, em Jerusalém”.
(Tradução de Safa A.C. Jubran)
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